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“O Mercado de Aves”, de Frans Snyders: houve um tempo em que a abundância de alimentos já foi considerada arte.
“O Mercado de Aves”, de Frans Snyders: houve um tempo em que a abundância de alimentos já foi considerada arte.| Foto: Reprodução

A pintura a óleo retrata a vida na Europa do século XVII: um homem barbado é visto entre vários animais mortos – um cisne, um faisão, um cervo – que mais tarde talvez sejam servidos num exuberante banquete.

Durante algum tempo, esta réplica do "O Mercado de Aves”, do pintor flamenco Frans Snyders, esteve à mostra no refeitório da Universidade de Cambridge, onde os estudantes fazem suas refeições num bufê e se reuniam duas vezes por semana em jantares formais.

Mas havia um problema: alguns dos alunos dessa instituição britânica de elite não tinham estômago para saborear sua comida diante de uma enorme pintura barroca retratando carcaças de animais, de acordo com o que eles disseram aos administradores.

"Alguns comensais não se sentiam à vontade por causa do que estava na parede”, disse um porta-voz do Fitzwilliam Museum, que tinha emprestado a pintura para a universidade, de acordo com o jornal Daily Telegraph. "As pessoas que não consomem carne a consideram repugnante. Eles pediram que ela fosse retirada”.

Hughes Hall, o departamento de Cambridge responsável pelo refeitório, cedeu às exigências de seus alunos veganos e vegetarianos. Em dezembro passado, os administradores retiraram a obra de arte e a devolveram ao museu, que desde então montou uma exibição especialmente para mostrar a obra controversa – e para contextualizar algumas das reclamações em torno do quadro.

Quando novas reclamações circularam pela Internet na semana passada, alguns riram do episódio. Uma pessoa no Twitter disse que o episódio mostra que o “politicamente correto deu errado”.

"Deixem de ser jovenzinhos privilegiados chorões em universidades de elite”, tuitou outra pessoa. “Vegetariano, vegano, sei lá, não me importo: reclamar da arte não vai fazer de você um durão”.

Victoria Espley, superintendente do Hughes Hall, disse que essas reações são absurdas porque a universidade troca regularmente suas obras de arte. “Qualquer debate quanto a essa pintura que estava emprestava do Fitzwilliam Museum é bobagem”, disse ela, ríspida.

Num informe à imprensa para a exibição, as curadoras Victoria Avery e Melissa Calaresu foram mais sérias, mas defenderam os alunos ofendidos. Para elas, as reclamações são apenas uma visão contemporânea sobre o antigo problema de como os hábitos alimentares dos seres humanos afetam o meio-ambiente.

Numa entrevista por e-mail ao Washington Post, Calaresu, historiadora cultural, disse que a inclusão de animais diferentes no quadro simboliza o poder e expressa a mesma variedade dos cardápios contemporâneos. “Aos olhos contemporâneos, parece uma cena de morte, mas todos aqueles animais eram consumidos na época”, escreveu ela.

Cenas semelhantes talvez estivessem em exibição em refeitórios que serviam aqueles mesmos animais no cardápio. Os pássaros canoros que aparecem no quadro, por exemplo, geralmente estavam nos livros de receita do período.

Os líderes da Sociedade Vegana & Vegetariana de Hughes Hall demoraram para responder aos pedidos de entrevista.

Criado em 2017, o clube pretende unir os alunos de uma das faculdades mais cosmopolistas do campus, organizando jantares coletivos e pressionando a administração para terem mais opções sem carne no cardápio. Antes e depois de o quadro ter sido retirado, o clube organizou versões veganas de “jantares formais” quinzenais onde vestidos longos não eram incomuns e onde paletós e gravatas eram obrigatórios.

Os refeitórios ganharam importância como cenário da guerra cultural travada nas universidades norte-americanas. Ficou famoso um escândalo por causa de sanduíches orientais servidos na progressista Universidade Oberlin, escola de artes em Ohio, considerados uma apropriação cultural. (A máquina de revolta da Internet não ajuda, aumentando e distorcendo o que começou com um artigo de jornal universitário com a opinião de apenas seis alunos).

Mas, como o Fitzwilliam Museum tenta mostrar, até mesmo as pessoas na época de Snyders se preocupam com o que elas comiam e como isso as afetava enquanto indivíduos.

Além da obra de Snyders, na verdade uma réplica do original que está num museu de São Petersburgo, a mostra inclui outras obras que talvez gerem reação do público, como uma que retrata um banquete com um cisne e pavão e um molde feito de biscoito de gengibre dos seios da rainha Maria II da Inglaterra. Há outras curiosidades também. Entre elas, um caderno de Newton no qual o físico declara seu amor por bolo e marmelada, e também uma receita de salada de John Evelyn, um naturalista do século XVII.

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