Se O caminho da servidão, de Friedrich Hayek, é a obra polêmica que explica como um regime totalitário se desenvolve, sua contrapartida em quadrinhos é V de Vingança, que conta a história de um revolucionário mascarado que luta contra um governo tirânico.
Por trás de sua teatralidade sangrenta e de seu herói cativante, os quadrinhos e o filme neles baseado contam como os regimes totalitários se formam em meio a repúblicas inicialmente livres e funcionais. No filme, autoridades do governo fabricam uma arma biológica e fomentam conflitos a fim de justificar uma rápida tomada de poder para o suposto bem do povo. Ao longo da narrativa, uma teoria do governo dá ainda mais força às ações do regime e o Estado passa a ser visto como a melhor opção para resolver quaisquer problemas.
Crise fabricada
Nas cenas de abertura de V de Vingança, o justiceiro explode um prédio na região metropolitana de Londres. Após a explosão, o Alto Chanceler convoca uma reunião com o primeiro escalão do governo. Ele inventa uma mentira para ser disseminada entre a população, na esperança de aplacar seus medos e manter sua confiança. A mídia deve fazer a explosão parecer um ato deliberado do governo e, ao mesmo tempo, alertar a população para os riscos de “se agarrar ao edifício de um passado decadente”.
De acordo com O Caminho da Servidão, o declínio rumo à tirania ocorre quando os indivíduos abdicam de seus direitos ao longo do tempo, muitas vezes apaticamente, e o governo vai perigosamente se espalhando como uma metástase sobre a vida das pessoas. Cedo ou tarde, um indivíduo corrupto se torna chefe de um governo inchado e pode reinar com poder absoluto.
Em V de Vingança, porém, o processo é imediato. No mundo distópico, agentes do governo e médicos corrompidos trabalham para fabricar uma epidemia com o intuito de criar uma crise em seu país. Tomados pelo medo, ninguém questiona quando a polícia implementa toques de recolher, os indivíduos desaparecem à noite e todos os meios de comunicação ficam sob o controle das autoridades.
O governo como o protetor
Como a Inglaterra do filme, os Estados Unidos hoje enfrentam inúmeros desafios. Políticos recomendam o governo como a solução para nossa crise: um sistema universal garante cuidados médicos para todos, regulamentações adequadas podem garantir água e ar limpos e apenas (mais) regulamentações são capazes de conter a violência armada. Em cada caso, diante de cada crise, o governo – não os indivíduos ou as instituições – é responsável por corrigir todos os problemas.
Não é uma arma biológica que está sendo usada para justificar a centralização extrema, e sim uma série de problemas criados para gerar medo. Políticos como Alexandria Ocasio-Cortez alertam que as mudanças climáticas acabarão com o mundo. A mídia descreve uma “epidemia de violência armada” que exige ações políticas ousadas – apesar da constante redução da violência armada. Se esses fatos fossem verdadeiros, se o mundo fosse mesmo enfrentar um tsunami apocalíptico daqui a 12 anos, faria sentido reformar todos os edifícios dos Estados Unidos em busca de energia verde. Se a violência armada fosse realmente uma epidemia, talvez isso justificasse a revogação da Segunda Emenda, como alguns defendem.
Os Estados Unidos viram muitos países sucumbirem à tirania e, por mérito próprio, suas instituições continuam fortes demais para que o país siga pelo caminho da servidão com indícios tão frágeis como ocorreu com a Inglaterra de V de Vingança. Mas se isso acontecer, o caminho provavelmente será o que C.S. Lewis descreve como “gradual – uma ladeira suave, macia sob os pés, sem reviravoltas repentinas, sem marcos, sem sinalização”.
Múltiplas interpretações
À primeira vista, o espectador médio pode considerar o governo de Donald Trump e a oposição a ele como a analogia mais precisa de V de Vingança. Até certo ponto, essa análise é válida. Os traços populistas de Trump e o seu repúdio à imigração espelham a retórica do vilão do filme, o Alto Chanceler Adam Sutler. No entanto, o herói justiceiro do filme é um anarquista ávido e é a partir desse detalhe muitas vezes esquecido que a verdadeira comparação do filme pode ser desenhada.
Embora se possa encontrar semelhanças pessoais entre Trump e Sutler, são as tendências centralizadoras da esquerda e de sua filosofia de governo – não de Trump e seu populismo – que criam o melhor paralelo.
Vemos, em V de Vingança, que as autoridades reinantes têm pouca consideração por quaisquer instituições históricas que possam ter levado o país à prosperidade – elas até mesmo insinuam que essas instituições são inerentemente imorais. Isso reflete a aversão atual da esquerda pela sociedade ocidental. Estátuas de ex-líderes são removidas e depredadas. Cristóvão Colombo é submetido anualmente a calúnias no dia que leva seu nome. O cânone da literatura ocidental é difamado como racista e removido do currículo escolar. Os indivíduos e a cultura que criaram o excepcionalismo norte-americano não são mais ideais a serem reverenciados, e sim sistemas opressivos a serem desconstruídos. A igreja, as instituições de caridade e a livre iniciativa não são vistas como soluções para os males da sociedade, e sim como a causa.
Cada uma das similaridades mencionadas – a crise, o governo como protetor e a difamação das instituições privadas – revela uma teoria de governo e sociedade endêmicas à esquerda norte-americana. Para qualquer problema, o governo é apresentado como o meio para resolvê-lo. Desemprego, educação, saúde e meio ambiente: tudo se resolve apenas com regulamentações e, em alguns casos, com o controle direto – nunca por meio da inovação e da escolha pessoal.
Em O Caminho da Servidão, Hayek adverte que um governo centralizador só pode levar à tirania. V de Vingança, então, permanece como um aviso dessa tendência.
Desrespeito pelas instituições tradicionais
Em um discurso para a multidão, o protagonista de V de Vingança diz que “honestidade, justiça e liberdade são mais do que palavras; são perspectivas”.
Diferentemente das autoridades de V de Vingança, a população e nossas autoridades precisam de três coisas para combater os três elementos do que poderia ser chamado de “perspectiva centralizadora”: a análise precisa dos problemas, a compreensão de que o melhor caminho a ser seguido provavelmente não se dará pela intervenção estatal e, finalmente, a busca por soluções nos indivíduos e nas instituições que servem à nação.
A solução não é uma ação reacionária, e sim uma ampla rejeição da “perspectiva centralizadora” que ameaça nos aproximar do mundo distópico de V de Vingança.
Tradução de Giovani Domiciano Formenton.
©2019 FEE. Publicado com permissão. Original em inglês.