O socialismo de Chávez e Maduro obrigou o venezuelano a fazer uma cruel e indesejada dieta forçada, especialmente para a crescente parcela mais pobre da população. No início deste ano, uma nova versão de um relatório conhecido como Enquete Nacional de Condições de Vida (Encovi), elaborado por um consórcio de universidades venezuelanas, colocou números na crise que a população já sente cotidianamente na pele: a investigação mostrou que 72,7% da população do país perdeu peso no último ano, perdendo em média 8,7 quilos.
A porcentagem de venezuelanos capazes de fazer três refeições por dia despencou: entre 2015 e 2016, a parcela da população que comia café da manhã, almoço e jantar passou de 88,7% para 67,5%.
A Encovi também demonstrou uma mudança abrupta nos modos de alimentação dos venezuelanos, que passaram a depender de uma dieta mais pobre e menos variada (quase metade dos consultados considerava sua alimentação “monótona”, com pouca diversidade de produtos, ou “deficiente”). O consumo de itens como carne de gado, frango, leite, pescado, ovos e frutas tem caído anualmente, sendo substituídos por hortaliças e tubérculos, muito mais baratos e de menor valor nutricional. Mais de 93% dos venezuelanos consideraram sua renda insuficiente para a compra de alimentos.
As dificuldades financeiras se manifestam na economia de modo geral, mudando até mesmo hábitos corriqueiros como o de comer fora de casa – o número de venezuelanos que dizem comer pelo menos ocasionalmente em restaurantes despencou de cerca de 45% em 2014 para menos de 20% no ano passado.
O anunciado socialismo chavista falha até mesmo em promover uma diminuição da diferença entre as parcelas mais ricas e pobres da população – os maiores consumidores de itens como carne e frutas ainda são as famílias consideradas “não pobres”, enquanto o restante da população tem como os principais alimentos a farinha de milho e o arroz.
Em uma tentativa desesperada de compensar a deficiência calórica de sua alimentação, são também aqueles em situação de pobreza extrema os que consomem mais açúcar. No último ano, a incidência de diabetes aumentou no país.
Caos econômico
Os problemas alimentares não surgiram do nada. A Venezuela vive hoje uma grande depressão econômica, em proporções jamais registradas em sua história. O PIB do país tem caído sucessivamente desde 2014 e a inflação cresce a ponto de jogar grande parte da população na indigência. Só no ano passado, o PIB se retraiu mais que 18% - e a previsão do Fundo Monetário Internacional (FMI) para este ano é de nova queda acentuada, na ordem de 12%. A inflação para o ano que vem é prevista pelo FMI em mais de 2.300% (isso mesmo: dois mil e trezentos por cento!).
E o que causou tamanha crise? A queda nos preços do pétroleo? Errado. É preciso voltar alguns anos antes para saber a real razão do inferno venezuelano. Mas tem a ver com socialismo, autoritarismo e outras pragas comuns na América Latina.
Quando Hugo Chávez chegou à presidência da Venezuela, em 1998, ele não prometia socialismo. Naquele momento, encarnou a insurreição, a rebelião, a interrupção, mesmo a antipolítica – mas não o socialismo propriamente dito.
Ele prometeu acabar com a pobreza, a desigualdade e as crianças de rua, sem deixar muito claro como. Talvez os primeiros sinais de suas intenções sejam suas declarações dois anos depois, em 2000, quando disse que Cuba era o “mar da felicidade”, e que a Venezuela estava indo para lá. Ou, possivelmente, a Lei de Terra e Desenvolvimento Agrário imposta em 2001, que permitiu ao chavismo ocupar quase 4 milhões de hectares da propriedade privada em 16 anos. Deu certo a reforma agrária chavista? A maioria está atualmente improdutiva.
Na mesma época, a “burguesia” e o “neoliberalismo” começaram a aparecer no discurso oficial – como inimigos a serem combatidos. Em seguida, vieram as “missões sociais” para mitigar o analfabetismo e massificar o acesso à saúde primária, o ensino médio, a alimentação e a habitação, entre outras coisas.
Algumas medidas, apesar do sucesso inicial, logo tiveram sua fragilidade evidenciada quando a economia baseada na exportação de petróleo entrou em colapso. O regime chavista, hoje embandeirado por Maduro, atribui a crise à “guerra econômica”, ao “assédio financeiro global iniciado nos EUA” e a “100 anos de economia rentista e dependente do petróleo”.
Essas foram as respostas oferecidas por um exasperado Nicolás Maduro em novembro deste ano, para o único jornalista a quem concedeu entrevista exclusiva em muitos anos, o catalão Jordi Évole. E por que o chavismo não conseguiu mudar a “economia rentista” que critica? Porque “os tempos econômicos para a transformação não são tão rápidos como os tempos políticos, e quando a revolução começou a levantar o esforço econômico, tivemos a queda mais abrupta e trágica dos preços do petróleo”, afirma Maduro. Dezoito anos se negando a deixar o poder e mais de 900 bilhões de dólares em rendas petroleiras não foram suficientes para a Revolução Bolivariana.
Corrupção, clientelismo e ineficiência
José Manuel Puente, economista e professor da Escola de Governo Blavatnik da Universidade de Oxford e do Instituto de Estudos Superiores de Administração da Venezuela, afirma que o projeto chavista é uma grande fraude para a sociedade venezuelana. “Na Venezuela, o modelo rentista foi aprofundado, exacerbado. O que estamos vendo é uma revolução rentista que alcançou ilusões de harmonia às vezes, basicamente graças ao choque petroleiro”, diz.
Puente se refere aos quase 900 bilhões de dólares em rendas que a Venezuela recebeu do petróleo entre 1999 e 2014, o maior montante desde 1917. “Você não pode falar de reivindicação real dos mais humildes quando, depois de 18 anos e toda essa riqueza, acabou tendo a pobreza duplicada (de 45% em 1999 para 82% em 2017), perda de peso verificada da população, contração econômica de -35%, a inflação mais alta do mundo e níveis de escassez nunca antes vistos”, afirma. “Uma grande oportunidade para transformar esta sociedade foi perdida”.
O fracasso reside no contraste entre “o potencial de riqueza e a extraordinária pobreza que a Venezuela experimenta após uma suposta revolução socialista”, diz Puente.
A política econômica é resumida pelo economista em cinco linhas: controles de preço; controles de câmbio; controles da taxa de juros; controles no mercado de trabalho; nacionalizações e expropriações que impactaram negativamente o investimento direto na Venezuela. Para ele, o “gasto social” que o chavismo tem feito é o maior da história contemporânea da Venezuela, mas só serviu para gerar ilusões, não lançando as bases para uma mudança estrutural na economia e na sociedade. “Todo esse dinheiro foi perdido em corrupção, clientelismo e ineficiência”, assinala.
José Manuel Puente acrescenta: o declínio nos preços do petróleo não pode ser considerado necessariamente a origem do colapso macroeconômico. “Em 2017, prevê-se que a Venezuela tenha a maior taxa de contração econômica de todos os países membros da OPEP (Organização dos Países Exportadores de Petróleo) e a taxa de inflação mais alta do mundo. O ciclo de contração econômica começou antes do declínio nos preços do petróleo, e é devido à má gestão da política econômica nos últimos anos”, aponta.
Violência
Para Pedro Enrique Rodríguez, psicólogo clínico venezuelano e professor do Instituto de Psicologia da Universidad del Valle, na Colômbia, o chavismo é claramente um projeto socialista autoritário. “A Venezuela está entre as visões autoritárias e fortemente militarizadas da história contemporânea”, rotula. Os impactos dessa política na psicologia social venezuelana, segundo o especialista, são variados. Rodríguez estima que eles se manifestam em dois padrões de comportamento – um político, que teria sido criado deliberadamente, e um social, que pode ou não ser deliberado.
“Para criar o padrão político, o chavismo usou uma estratégia psicossocial clássica: a polarização política. Ele criou dois sujeitos sociais diferenciados: o chavista e o opositor radical. Dois sujeitos de certa forma caricaturados pelo ambiente polarizado e, ao mesmo tempo, com diferentes graus de sofrimento psicossocial, que não teriam desenvolvido se a polarização não fosse uma necessidade do projeto chavista”, define Rodríguez.
O padrão de comportamento social tem várias manifestações, incluindo a violência e a alta incidência de crimes na Venezuela – os especialistas identificam correlações entre o período chavista e o aumento sustentado nos índices de violência, anualmente.
No ano passado, o índice de homicídios chegou a 70,1 por cem mil habitantes, colocando o país em segundo lugar no ranking mundial – no Brasil, que também enfrenta uma grave crise de segurança pública, esse índice é menos da metade, com 30,5 casos a cada cem mil pessoas registrados no ano passado, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS).
O economista José Manuel Puente estima que o aumento do desemprego e a queda dos salários reais são incentivos claros para um aumento na criminalidade. “O que é incrível é que mesmo entre 2004 e 2013 isso tenha acontecido, com tanto dinheiro e com a ilusão de harmonia que a Venezuela viveu”, afirma.
Além da violência, outro fenômeno identificado por Pedro Enrique Rodríguez como padrão social resultante do “Socialismo Bolivariano” é o migratório. De acordo com organizações civis que monitoram a diáspora venezuelana, mais de dois milhões de pessoas emigraram nos últimos 18 anos, e os pedidos internacionais de asilo feitos por venezuelanos aumentaram 8.828% entre 2012 e 2016, saltando de 505 para mais de 34,2 mil.
Corrupção
De acordo com o cientista político Ronal F. Rodríguez, professor e pesquisador do Observatório da Venezuela na Universidad del Rosario (Colômbia), o chavismo tentou contornar a crise aos olhos do mundo usando uma estratégia discursiva que buscou simpatia em contextos geográficos alheios à realidade venezuelana. “O governo venezuelano tem usado historicamente o termo ‘socialismo’ para tentar enaltecer as ações e decisões que toma. A linguagem na política também é usada com uma lógica de combate para tentar ganhar certas legitimações”, diz.
O Observatório da Universidad del Rosario estudou as “missões sociais” implementadas como políticas públicas na Venezuela desde 2004. “Na época, eram bastante inovadoras. Não eram instituições propriamente estatais, mas trabalhavam por meio de figuras paralelas, o que lhes permitiu proceder de forma mais expedita com os recursos e resolver problemas chave”, diz Rodríguez. Apesar do êxito inicial em áreas como a alfabetização, agora prevalece um grande contraste com o estado atual da educação na Venezuela.
“Hoje, a desestruturação da educação é absoluta”, entende. “O modelo que foi implementado há uma década, e que teve alguns sucessos no curto prazo, também gerou um abatimento que causou o reaparecimento de problemas que já tinham sido resolvidos”. Rodríguez destaca que a precariedade institucional das “missões” as transformou em um terreno fértil para a corrupção. “Como elas não têm os mesmos procedimentos de vigilância e controle que as políticas públicas têm no quadro institucional, elas acabaram sendo uma fonte de enriquecimento para alguns setores da própria Revolução Bolivariana”, indica Rodríguez.
Para o cientista político, existe uma “lógica cubana” por trás da narrativa socialista venezuelana: “Muitos dizem que a fila para comprar produtos básicos é algo que é feito em nome da ‘dignidade’. Eles procuram confundir a dignidade com o sofrimento”.
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