Há quase 20 dias, o Brasil se tornou palco de um caso inédito na história do direito, que diz respeito tanto à causa da defesa da vida humana desde a concepção quanto ao crescente ativismo pelos direitos dos animais. Trata-se o pedido impetrado pela Ordem dos Advogados do Brasil no Rio de Janeiro (OAB-RJ) para que o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento do estado suspenda a eutanásia da égua Flor, portadora de uma doença infecciosa que, mesmo assintomática, lhe sentencia à morte. Ocorre que a equina está prenhe, com previsão para dar à luz em meados de dezembro e, com base na lei que garante aos bebês humanos o direito de nascer, pleiteia uma chance para o filhote – que pode herdar a patologia.
No pedido, Flor é representada pelo próprio presidente da Comissão de Proteção e Defesa dos Animais, Reynaldo Velloso, que, em entrevista para a Gazeta do Povo, argumentou que a equiparação do potrinho à vida humana é justa, dado que o animal é capaz de experimentar o sofrimento. "Diante disso, eu basicamente aplico ao animal não-humano o direito ao nascimento previsto para o animal-humano”, diz Velloso, defendendo que não se deve olhar apenas pelo ponto de vista jurídico, mas da compaixão.
A questão, contudo, abrange uma série de pressupostos éticos que, na prática, dizem respeito ao valor que se dá a vida humana. Se um animal deve ser protegido porque é capaz de sofrer, um feto humano cujo sistema nervoso central ainda não tenha se desenvolvido não carece de proteção? Ou, se todos os animais são detentores do direito inalienável ao nascimento e à vida, destruir um formigueiro no quintal pode ser considerado assassinato em massa?
“É importante pontuar duas questões simples: a pessoa humana se distingue de um animal por 1) Ato - a concepção Aristotélica daquilo que é - e 2) sua classificação biológica, do ponto de vista da genética. Toda pessoa humana é ser humano, e não apenas quando estamos tratando de Direito à vida e de outros direitos, mas em todos os outros departamentos do conhecimento”, explica o advogado Thiago Vieira, especialista em Estado Constitucional e Liberdade Religiosa pela Universidade Mackenzie.
“Trata-se daquilo que o professor Francisco Razzo ensina, quando nos remete ao fato de que o status pessoal não pode ser limitado à certas qualidades psicológicas. Os animais são avaliados por métricas empiricamente constatadas, diferente da vida humana que possui valor intrínseco e natural”, avalia Vieira.
Autor do livro “Contra O Aborto” e professor de filosofia da Faculdade São Bento, Razzo corrobora o argumento. "Discordo do argumento central, de que não há diferença entre a égua e uma pessoa. Existe uma diferença ontológica e real entre o cavalo e o ser humano. O estatuto dos direitos dos animais pode, sim, incluí-los como membros de uma comunidade de direito, mas é possível ampliar os direitos dos animais sem esvaziar os dos humanos. O problema é quando ocorre o oposto", explica.
Neste sentido, o esvaziamento do direito reservado ao humano ocorre, justamente, quando o argumento pela defesa da vida se restringe às capacidades do ser em questão. “Não é o sofrimento, os sentimentos ou as vontades que definem a pessoa como ser humano, já que a vida humana possui um fim em si mesma, um valor intrínseco. Eis o erro daqueles que dão à vida humana um status de relativização: impor-lhe condicionantes. Creditar à humanidade esta visão simplista, permitiria que tirássemos a vida, por exemplo, de bebês, deficientes, relativamente incapazes, incapazes e assim por diante. Precisamos ter cuidado para não chegar na concepção Benthamista de vida: “um cavalo ou um cão adultos são muito mais racionais, [...] do que um bebê de um dia”, defende Vieira.
Na entrevista à Gazeta do Povo, Velloso reconhece que a aplicação de direitos exclusivos aos seres humanos a animais pode ter grande impacto jurídico - como o hábito de comer carne, por exemplo. Vieira alerta, entretanto, que a questão pode impactar até mesmo a constitucionalidade da utilização ritualística de animais em cultos, como forma de garantir a liberdade religiosa das religiões de matriz africana - assunto já decidido pelo STF no RE 494601/RS.
Nada disso significa, entretanto, que os animais devam ser tratados de forma degradante - ou mesmo que, mediante aplicação dos direitos já reservados aos animais, a égua Flor não possa dar à luz ao potrinho. "Sou bastante simpático à causa dos direitos dos animais e acho que é uma capacidade humana de conseguir, de alguma forma, inscrever na natureza aquilo que nós somos enquanto seres que conseguem dimensionalizar a vida a partir da caridade e da compaixão”, destaca Razzo. A fonte do tratamento, contudo, é que deve ser diferente. “A dignidade dos animais é resultado da dignidade humana. É porque temos dignidade que tratamos os animais assim”, diz Vieira.