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Jacques Maritain foi, sem dúvida, o pensador católico mais influente do século XX. Dificilmente outro intelectual dessa época exerceu tamanha influência em tantas pessoas e grupos religiosos durante sua trajetória acadêmica. Foi um filósofo raiz, preocupou-se, inicialmente, com a epistemologia e com o problema da verdade, e só quando foi necessário falou de política e sociedade. Era de fato um grande filósofo, sua capacidade de compreensão das filosofias modernas era tão profunda quanto da filosofia escolástica e clássica. Suas aulas eram, ao mesmo tempo, uma história da filosofia e um esforço real de produção de ideias independentes. Suas ideias, aliás, consolidaram quase que por completo a Doutrina Social da Igreja Católica, influenciando a guinada política e teológica do Concílio Vaticano II. Talvez seja dele ‒ ao menos 50% ‒ a tendência pós-concílio de usar diplomacias ao invés de enfrentamentos aos ditos “erros modernos”.
Jacques Maritain nasceu em 18 de novembro de 1882, em Paris, filho de Paul Maritain e Geneviève Favre, e foi criado em um ambiente republicano positivista. Desde criança, mostrou inteligência acurada para temáticas abstratas e conhecimentos humanísticos. Foi assim que, já no secundário, na proeminente escola Lycée Henri-IV (Liceu Henrique IV) Maritain se destacava amplamente em filosofia e história, e não demorou muito para encontrar na famosa Sorbonne seu recanto intelectual. Seus estudos na renomada universidade francesa tiveram início em 1905, mas logo em 1906 ele passa uma temporada na cidade de Heidelberg, na Alemanha, a fim de estudar biologia e anatomia, demonstrando o quanto o ambiente cientificista francês fazia parte do imaginário popular naqueles dias. Não eram poucos que misturavam os estudos de ciências naturais e as especulações filosóficas como meio de buscar um conhecimento mais efetivo da realidade. Isso é o puro néctar da França iluminista da virada do século.
Em 1904 ele se casa com Raïssa (Oumansof) Maritain um russa judia, que também estudava filosofia em Sorbonne. E destacá-la neste ensaio não se trata de mero fio temporal. Na verdade, Raïssa se tornaria a sua grande parceira de ideias. Frei Carlos Josaphat, professor emérito da Universidade de Friburgo, Suíça, e Doutor Honoris Causa pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, foi aluno de Maritain, na França, e afirma que a esposa do pensador participava ativamente de suas aulas, por vezes até mesmo interrompendo-o para melhor formular suas ideias na lousa. Percebia-se, assim, uma parceria de produção e estudo no casal. Segundo ela, a busca da causa da existência primeira seria a única coisa realmente importante a se pensar enquanto filosofia e, como perceberemos, esse será a toada da vida intelectual deles até a morte.
Respostas em Santo Tomás de Aquino
Fato é que o ambiente ateu cultuado na Sorbonne, aliado ao positivismo que transformava o indivíduo em uma engrenagem desalmada da sociedade, afetava profundamente Maritain, ao ponto dele afirmar a amigos que, se não existisse um caráter mais profundo da existência, a própria existência não faria sentido algum. O relativismo moral e filosófico daqueles círculos intelectuais franceses sempre soou banal e sem fundamentos para o jovem pensador.
No entanto, é preciso dar um passo atrás e observar que, já no início de seus estudos na Sorbonne, em 1905, muito provavelmente influenciado por Henri Bergson e Leon Bloy, Jacques Maritain encontra em Santo Tomás de Aquino respostas sistematizadas, claras e metodologicamente corretas para problemas existenciais profundos que posteriormente ele e sua esposa diriam ser os problemas fundamentais a serem estudados. Alguns biógrafos afirmam, todavia, que seu contato com o doutor angélico, Aquino, aconteceu após uma doença que quase levou Raïssa à morte. Na ocasião o seu diretor espiritual, o dominicano Humbert Clérissac, haveria lhe apresentado as obras e orações de Santo Tomás. Em 1906 Jacques e Raïssa converteram-se oficialmente ao catolicismo romano ‒ Bloy foi seu padrinho de conversão. Entretanto, seja por vias intelectuais puras, seja através da cura repentina da esposa e orações apresentadas por seu diretor espiritual, fato é que Santo Tomás de Aquino jamais deixaria a mente e vida do casal Maritain.
A partir daquele momento, a produção acadêmica de Jacques se volta ao problema do Ser. Após seu aprofundamento em Aquino, ele se dobra à ética clássica, principalmente Aristóteles. Em 1912 é apresentado a Paris ao ser convidado a lecionar na famosa e bem conceituada escola Institut Catholique – convite esse que é uma espécie de reconhecimento do clero católico à importância de sua produção. Em 1913, através das obras La philosophie bergsonienne e, em 1920, Art et scholastique, ele é apresentado à academia e, por extensão, à filosofia católica europeia. Mais tarde, o clero de Paris encomendará dele a obra Eléments de philosophie, com seu primeiro tomo, Introduction génerale a la philosophie, lançado em junho de 1921; e o segundo, L'ordre des concepts, Petite logique, na segunda metade de 1923. Ele escreveria, ao todo, 72 obras ao longo de sua vida, além de inúmeros ensaios e aulas posteriormente transcritas por seus alunos.
Maritain habitava os círculos íntimos do catolicismo francês, e não demorou para que ficasse próximo de cardeais e papas. Suas ideias influenciaram o núcleo do clero católico no Vaticano, na França e em demais partes da Europa. Não são poucos os críticos que consideram-no um dos intelectuais que mais influenciaram o memorável concílio e seu documento final. Ao fim do último encontro do concílio, o papa Paulo VI, amigo pessoal de Maritain, teria dito a ele “A Igreja vos é agradecida pelo trabalho de toda vossa vida”. Assim sendo, para fazermos uma justa biografia intelectual de Maritain, devemos antes contextualizar os problemas teológicos, sociais e políticos que impulsionaram suas produções na segunda metade de sua vida. Foram tais produções que fizeram dele um gigante pensador católico, mas também um filósofo muito criticado por uma ala mais conservadora da Igreja.
Desde o papado de Leão XIII, principalmente a partir de suas encíclicas, a mais famosa delas, Rerum Novarum, de 1891, mas também a Diuturnum Illud, de 1881, Immortale Dei, de 1885, e Libertas, de 1888 ‒ esta última um dos textos mais brilhantes da época e ainda hoje pouco conhecido ‒, a Igreja Católica vinha tentando se posicionar politicamente ante o mundo moderno ‒ ou melhor dizendo, ante o Iluminismo e seus filhos ideológicos. Os seminários católicos estavam, praticamente, formando padres ideólogos, pois lá se ensinava tanto a teologia agostiniana quanto ‒ ou até mais ‒ as ideias de Voltaire e Rousseau, por exemplo. Leão XIII, portanto, inicia um movimento de adaptação do credo católico à modernidade, e isso ocorreu em várias instâncias da Igreja Católica, principalmente as relacionadas à comunicação institucional e produção e pesquisa intelectual. Foi a mando desse papa ‒ a partir da encíclica Aeterni Patris, de 1879 ‒ que os seminários se voltaram aos estudos tomistas, a fim de alicerçar a formação clerical em bases realmente católicas.
A Igreja entendia que o problema político e seus totalitarismos subsequentes residiam na exclusão da possibilidade de Deus no cálculo intelectual da existência humana. O antropocentrismo iluminista fazia parecer que a realidade era um grande ajuste de políticas e vontades, poderes econômicos e forças militares. O homem estava sem rumo ainda que tentasse rumar desesperadamente a algo com sua suposta razão ilimitada. E foi com essa ideia que tanto o liberalismo capitalista quanto o coletivismo socialista foram condenados como heresias pela Igreja. Todavia, naquele instante, os pressupostos do socialismo ‒ sob o cetro de Leão XIII ‒ pareciam ser os mais atingidos pelos golpes da Igreja, pois a instituição reconhecia expressamente na Rerum Novarum que a propriedade privada era um bem inalienável, coisa que o comunismo condenava logo na primeira linha de sua doutrina mais básica.
Humanismo integral e o marxismo católico
Parecia, assim, que a Igreja não poderia mais tardar em adotar uma doutrina social oficial, era preciso criar uma verdadeira terceira via ante o liberalismo capitalista e o coletivismo socialista, e é nesse instante que Maritain reaparece como um dos teorizadores dessas bases epistemológicas e antropológicas para uma reformulação moderna da posição política da Igreja. Os seus livros O crepúsculo da civilização, de 1941, Cristianismo e democracia, de 1942, e O homem e o Estado, de 1950, mas principalmente o Humanismo integral, de 1936 ‒ todos traduzidos para o português brasileiro, a maioria com edição esgotada ‒ acabam reformando as ideias tomistas para uma filosofia política e natural católica para a modernidade. Apesar da complexidade dos espólios teóricos de Maritan, paradoxalmente não é muito complicado entender o centro nevrálgico de suas ideias. Para o filósofo francês, o grande erro iluminista foi retirar Deus da perspectiva antropológica, deixando o homem com um vazio existência irreparável. A consequência foi a criação de ideologias, a fim de suprir tal vazio ‒ muitos outros pensadores modernos chegariam a conclusões parecidas, como Eric Voegelin, Raymond Aron e Isaiah Berlin. O humanismo integral de Jacques Maritain, assim, é o ato de realocar Deus para o centro da existência humana tanto no caráter social, quanto pessoal, pois aí se reestabelecem os pressupostos firmes de um ética realmente balizadora de ações, universal e humana em todo o seu sentido. Para Maritain, o homem só pode ser um homem idealizador, livre e plenamente empreendedor da razão caso ele esteja bem estabelecido com sua raiz metafísica.
No entanto, há lacunas, ou como diriam seus críticos, erros teológicos que fazem de Maritain, para muitos, o precursor do progressismo esquerdista dentro da Igreja. É fato que qualquer reforma ao tomismo carregaria em seu bojo a possibilidade de contaminação ideológica moderna. Um dos grandes feitos do Iluminismo foi estabelecer pressupostos filosóficos e até mesmo jurídicos que não eram mais retornáveis. Assim sendo, para não ser meramente um reacionário, Maritain teve de adaptar conceitos iluministas às teses de Santo Tomás de Aquino para criar sua própria filosofia.
Uma das bases éticas de Tomás de Aquino é o Direito Natural, ou seja, aquele conjunto de valores perenes, advindos de uma consciência infinita do Criador, que, desde a mais elementar criação do homem, cravou–o com dignidades intransponíveis. Esses direitos são observáveis, categorizáveis e normatizáveis segundo a teoria católica. Maritain, em seu humanismo integral, identifica tal teoria para defender a inviolabilidade do ser humano e, assim, categorizar uma espécie de tratado de direitos universais do homem baseado na ética cristã. Ao analisar a problemática do liberalismo capitalista e seu furor que, por vezes, diminui a dignidade do homem em troca de expansão econômica e produção industrial em massa, Maritain identifica ‒ em Humanismo integral ‒ na teoria marxista uma espécie de “resquícios de verdade”, e diz que Marx tinha uma intuição verdadeira do problema gestado pelo capitalismo. Apesar de criticar fortemente o comunismo e o coletivismo em geral, essa percepção de Maritain funcionou como propulsor de uma espécie de marxismo católico alvejado, isto é, sem Marx e sem seu ateísmo, mas com metodologia e conclusões parecidas com as do pai do comunismo. Não à toa encontramos padres marxistas que situam no francês uma espécie de licença papal para uma ação sindical católica.
Em outro livro acima citado, O homem e o Estado, Maritain separa conceitualmente pessoa de indivíduo, que era uma das fórmulas jurídicas para justificar ações de repressão social em ditaduras no século XX. Obviamente que Maritain não escreve com tal intuito, na verdade ele está justificando a necessidade de ação do homem ante o Estado que, por vezes, torna-se opressor. Todavia, metodologicamente dizendo, o erro já está nessa distinção, pois qualquer separação de pessoa e indivíduo, cedo ou tarde, acaba virando munição política para arbitrariedades ou autoritarismos. Se o homem é dignificado em sua alma imortal, algo que é atávico e inseparável de sua condição humana, então nem que seja por mero instrumento pragmático, a separação de pessoa e indivíduo passa a parecer contradição teológica e filosófica na teoria de Maritain.
Apesar de criticar fortemente o comunismo e o coletivismo em geral, essa percepção de Maritain funcionou como propulsor de uma espécie de marxismo católico alvejado, isto é, sem Marx e sem seu ateísmo, mas com metodologia e conclusões parecidas com as do pai do comunismo. Não à toa encontramos padres marxistas que situam no francês uma espécie de licença papal para uma ação sindical católica.
Ação Católica e Teologia da Libertação
Junte a tudo isso o fato de que, após a morte do papa Pio XII, em 1958, o grupo Democracia Cristã adota abertamente a filosofia de Maritain como seu eixo filosófico. Esse grupo cresceu, estabeleceu-se como partido político em todo o mundo, e, por isso, perdeu seu elo institucional com Roma. Por outro lado, as teses de Maritain permaneceram sendo o arcabouço de seus líderes. A Democracia Cristã foi, assim, exportada ao mundo todo, e, no Brasil, ela foi a base da Ação Católica, grupo estudantil que se aliou aos comunistas em 1962, levando muitos de seus membros à guerrilha antes e após o golpe de 1964.
Também as bases intelectuais desses conglomerados políticos católicos advindos da Democracia Cristã acabaram sendo a Nouvelle Théologie ‒ dos padres dominicanos franceses ‒ e a filosofia humanista de Jacques Maritain. A Teologia da Libertação seria, dessa maneira, um apêndice impulsionado por esse movimento de renovação política e reinterpretações ideológicas das teses da Igreja Católica. A teologia marxista usou as bases filosóficas de Maritain que lhe convinha e aproveitou o espaço para repensar a doutrina católica através da ideologia esquerdista.
No entanto, seria demasiado injusto imputar a Maritain o advento do socialismo teológico na Igreja Católica. A verdade é que o filósofo buscava sinceramente uma terceira via que expulsasse o materialismo ateu ‒ ou indiferente ‒ da existência das ideias políticas modernas, oferecendo aos católicos e não-católicos uma opção política de acordo com os preceitos da teologia católica. É verdade ainda que ele condenou aspectos do liberalismo político, mas também o fez tão fortemente com o socialismo e demais coletivismos. No entanto, é igualmente fato que o herdeiro político imediato da visão de Jacques Maritain, a Democracia Cristã, parecia tender mais docilmente à esquerda.
Em 1947, por exemplo, num encontro do grupo em Montevidéu, no Uruguai, eles abertamente assumiram que suas visões filosóficas eram a do humanismo integral de Maritain, e que condenavam abertamente o fascismo e o comunismo. Entretanto, como Aureo Busseto afirma, em seu livro A democracia cristã no Brasil: princípios e práticas, o grupo via no anticomunismo uma via de discórdia desnecessária, o que muitos pensadores católicos conservadores hoje veem como uma espécie de premeditação ou demonstração de simpatia à esquerda que, posteriormente, faria da Democracia Cristã uma via para o comunismo radical ‒ como foi com a Ação Católica no Brasil.
Apesar de concessões a Marx, Maritain não é comunista
Maritain não é comunista, é bom afirmar. Ele é antes um dos filósofos mais profundos do catolicismo moderno. Defendeu de forma grandiosa uma política cristã independente alicerçada naquilo que os pensadores católicos medievais tinham produzido de mais rico, mas também fundamentada nos pressupostos modernos da política democrática. Propôs, por exemplo, a laicidade do Estado aliada a um arcabouço cristão cultural como condição de paz e subsistência com a pluralidade contemporânea. Pregou e teorizou profundamente o retorno do conceito de dignidade humana ao debate social moderno, sendo assim um dos propulsores da Declaração dos Direitos Humanos de 1948. Teve a hombridade de propor à academia ateia da França o desafio de revisitar as obras de Santo Tomás de Aquino e outros escolásticos para encontrar lá a ética universal que os iluministas tanto buscaram por dois séculos no cientificismo.
Jacques via nesses conceitos, propostas e ações um robusto antídoto contra as tiranias políticas de seu século. Assim sendo, devemos observar que o filósofo católico mais falou de ética do que de política, e, apesar dos deslizes e concessões tolas que fez a Marx, e de alguns pontos iluministas claramente errôneos que incorporou às suas teorias, Maritain foi um filósofo sincero na busca de uma filosofia católica moderna que não maculasse a doutrina da Igreja, à qual fielmente serviu.
Maritain, dessa maneira, dedicou-se de corpo e alma à filosofia católica, tudo o que escreveu se voltava à busca sincera da compreensão da verdade e do estabelecimento dos pressupostos de uma ética universal ‒ aquilo que também foi a busca de seu mestre, Santo Tomás de Aquino. Após a morte de sua esposa, em 4 de novembro de 1960, ele levou uma vida reclusa de oração e estudos. Em Toulouse, entrou para Fraternidade dos Irmãozinhos de Foucaud, onde completou seu noviciado aos 88 anos de idade. Jacques Maritain morreu em 28 de abril de 1973.