A multidão de manifestantes antigovernistas mascarados lança pedras, fogos de artifício e coquetéis Molotov; policiais e soldados, em retaliação, usam gás lacrimogêneo, canhões de água e balas de borracha.
Há uma revolta se delineando na Venezuela.
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Praticamente todos os dias, há mais de três meses, milhares de pessoas vão para as ruas para demonstrar uma verdadeira fúria contra Nicolás Maduro e sua liderança cada vez mais repressora. Esses confrontos geralmente acabam em confusão e muitas vezes se transformam em badernas letais.
Sou fotojornalista e trabalho para o New York Times na Venezuela há nove anos, sendo que, nos dois últimos, passei a me concentrar na luta da população, que vive uma das piores crises econômicas da história do país. Testemunhei a revolta cada vez maior com a comida e os remédios que aos poucos foram sumindo, e o autoritarismo de Maduro se intensificando.
O governo dele adiou eleições e aprisionou adversários. Aprovou recentemente uma Assembleia Constituinte com poderes para reescrever a Constituição da Venezuela, o que muitos venezuelanos denunciam como abuso de poder e ameaça à democracia.
Maduro classifica os protestos como uma tentativa violenta de depô-lo; os manifestantes alegam que estão apenas invocando seu direito de rebelião contra a tirania, garantido pela constituição que ele quer mudar.
Atualmente, começo meus dias subindo na garupa de um moto-táxi, rumo às linhas de frente, onde o gás lacrimogêneo dificulta a respiração e se ouve as balas voando.
Cheguei a conhecer alguns participantes habituais, como Tyler, um ex-defensor do governo de 22 anos que já se acostumou a se desviar das balas de borracha por trás de um escudo caseiro, pintado de azul, amarelo e vermelho, para combinar com as cores da bandeira nacional. Só seus olhos aparecem por trás da camiseta preta que amarrou no rosto para esconder a identidade.
Nós nos sentamos ao lado de uma barricada em chamas durante um momento de calmaria e ele me contou da família.
Tyler disse que estava protestando por causa da falta de remédios que matou a mãe, piorou a pressão já bem alta da avó e deixou a irmã caçula, que é asmática, lutando para respirar. E que a família só pode fazer uma refeição por dia, quase sempre composta de arroz puro. "Estamos convivendo com uma fome que nunca tínhamos sentido na vida. A situação já é horrenda demais, não dá mais para tolerar."
Tyler entrou para La Resistencia, grupo de manifestantes que confronta regularmente as forças de segurança. Seus membros dizem que ir para as ruas é a única opção que restou.
"Se não nos matarem aqui, protestando, morreremos de qualquer forma, por causa de um celular ou um par de tênis, de fome ou simplesmente por causa de uma doença qualquer porque não há mais remédios", explica o universitário Marco.
Eu tenho a impressão de estar dentro de um videogame quando fotografo as linhas de frente, tendo que desviar de obstáculos e balas disparadas de todas as direções. Inúmeros antagonistas são atingidos durante cada manifestação, alguns com fraturas e/ou ferimentos graves.
Repressão à imprensa
Infelizmente, para os membros da imprensa, a mira de nenhum dos dois lados é lá muito boa e vira e mexe somos atingidos por pedras, tinta e canhões de água.
A polícia também frequentemente mira os jornalistas, batendo e prendendo, quebrando ou confiscando suas câmeras. Mais de 200 "atos de agressão" contra repórteres foram denunciados desde que os protestos começaram.
Por outro lado, quando os militantes capturam soldados e policiais, queimam suas motos. E também se empenham em "fazer justiça com as próprias mãos": quando um homem foi acusado de roubos durante as manifestações, os membros da Resistencia lhe aplicaram socos para depois esfaqueá-lo, encharcaram-no de gasolina e lhe tacaram fogo. O acusado, Orlando Figuera, morreu dias depois.
Quando os veículos blindados do Exército apontam os canhões d'água para dispersar a multidão, muitas vezes essa revida com estilingues gigantes, que têm que ser manipulados por quatro pessoas. A "munição" é composta de vidros de papinha de bebê cheios de tinta e até fezes humanas. “É nojento, mas todo mundo tem; e o mais importante é que é de graça", constata um homem.
Os manifestantes também improvisam a proteção: alguns transformam óculos de natação e garrafas PET em máscaras de gás toscas, além de criar proteção para as canelas a partir de revistas velhas e fita crepe. Outros bolaram armaduras a partir de pedaços de carpete para se protegerem das balas de borracha, letais à queima-roupa. "Não mexe, senão desmonta. Já salvou a minha vida diversas vezes", comentou, sorrindo, um manifestante quando perguntei sobre o colete de carpete.
Juventude no combate
Os membros de La Resistencia geralmente são jovens e dizem que não apoiam nem o governo nem a oposição. Alguns são universitários de classe média que saem para a briga com câmeras afixadas no capacete de skatista para atualizar suas páginas no Instagram.
Já o perfil dos que se manifestam pacificamente varia muito: jovens, velhos, profissionais e desempregados se unem em passeatas, marchas e bloqueios. Milhares de pessoas seguiram na direção dos prédios do governo para quase sempre serem impedidas violentamente pela polícia.
Durante a Marcha pela Saúde, médicos, enfermeiros e pacientes protestaram contra a moribunda assistência médica pública, empunhando cartazes feitos de caixas vazias de remédios com mensagens como "SOS" e "A falta de remédios também está matando a gente".
Quando os soldados usaram gás lacrimogêneo contra eles, os médicos, de jaleco branco, deram os braços uns aos outros, engasgando com a fumaça, mas se recusaram a se acovardar.
Em outra marcha, padres e freira católicos e outros religiosos levaram uma imagem enorme da Virgem Maria decorada com a bandeira nacional.
Na Marcha das Panelas Vazias, as famílias saíram batendo nos utensílios de que ainda dispunham para reclamar da escassez e dos preços exorbitantes. Uma pesquisa recente revelou que 90 por cento dos venezuelanos dizem não ter condições de comprar os mantimentos de que necessitam.
Vida em risco
Mas a proteção caseira não é garantia de segurança. Neomar Lander, 17 anos, usava um colete de carpete quando morreu nas linhas de frente. Seus companheiros acenderam velas ao redor das marcas de sangue deixadas no local onde ele caiu, fazendo vigília até a madrugada.
Johan Caldera, amigo do rapaz morto, disse que agora está mais determinado do que nunca a protestar. "Agora não tenho mais medo. Já perdi o temor que tinha e o respeito pelo Exército também", afirma. "Os verdadeiros combatentes da Venezuela usam trapos no rosto; não usam granadas, mas sim pedras."
Muitos integrantes de La Resistencia usam camisetas que lembram o uniforme de Simón Bolívar, que foi quem liderou a rebelião pela independência venezuelana contra a Espanha. Às vezes, tentam convencer os soldados a se juntar a eles, citando o líder histórico: "Quando a tirania faz as leis, a rebelião é um direito".
O governo chama os membros do movimento de terroristas e já ameaçou reagir de maneira mais violenta. "Se a Venezuela mergulhar no caos e na violência e a Revolução Bolivariana for destruída, partiremos para o combate", afirmou Maduro.
Na vigília por Lander, um companheiro de luta decidiu ficar no local onde o rapaz foi atingido, jurando permanecer ali até a queda do governo. Olhando para a minha câmera, ele mandou sua mensagem para o presidente: "Dê uma boa olhada para o meu rosto. Pode olhar bem porque não tenho medo de você."
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