“Para ganhar R$ 1, acho que preciso tocar pelo menos umas 20 mil vezes no mês”, disse o músico Ivan Lins em uma entrevista recente para o apresentador Marcelo Tas.
Lins se referia aos seus ganhos com direitos autorais na era do streaming, especialmente na plataforma de música mais popular do planeta, o Spotify.
E completou: “Voltei à terapia para curar outra depressão, porque perdi minha aposentadoria. Tenho de trabalhar mais do que nunca, pois a única fonte de renda que tenho é o palco, é fazer show”.
O papo foi ao ar no programa ‘Provoca’, exibido pela TV Cultura no final de abril. Mas este trecho específico viralizou nas redes sociais e levantou, pela enésima vez, o debate sobre a remuneração dos artistas fonográficos – considerada injusta por intérpretes e, acima de tudo, compositores.
Um dos poucos brasileiros que realmente pode bater no peito e se orgulhar de ter uma carreira internacional, Ivan Lins imediatamente recebeu o apoio de nomes menos votados da MPB, como Zélia Duncan, Leo Jaime, Orlando Morais e Milton Guedes.
“O compositor compõe e não ganha nada! Brincadeira! Estamos falando de Ivan Lins”, afirmou o sambista Xande de Pilares, em um comentário no Instagram de Tas.
Por coincidência, dias depois o Spotify anunciou uma medida polêmica. Encareceu o preço da assinatura mensal nos EUA, sob a justifica de que incrementou seu acervo de audiolivros, porém sem aumentar o pagamento de royalties aos autores.
Procurado pela Billboard, a mais importante publicação especializada na indústria musical, David Israelite, presidente da National Music Publishers’ Association (principal entidade representante das editoras e compositores no país), mostrou-se revoltado com a empresa sueca.
“O Spotify voltou a atacar os próprios artistas que tornam o seu negócio possível. A tentativa de reduzir radicalmente os pagamentos dos compositores, reclassificando o seu serviço de música como um pacote de audiolivros, é uma medida cínica e potencialmente ilegal que põe fim ao nosso período de relativa paz”, afirmou.
Outra decisão controversa, anunciada pela companhia no final do ano passado, deu conta da desmonetização de faixas com menos de mil reproduções numa janela de um ano (o equivalente a 99,5% de todo o seu catálogo).
A proposta busca inibir a ação de indivíduos que apenas gravam ruídos, sons da natureza e efeitos sonoros e disponibilizam na plataforma para tentar obter algum lucro. No entanto, foi duramente criticada por músicos pouco conhecidos e cuja base de fãs é limitada.
Em contrapartida, a empresa prometeu não ficar com esse dinheiro. E vai pagar em torno de US$ 3 dólares para cada mil plays (ou streams) em uma música – o que causou ainda mais indignação nos artistas “pequenos”.
Na mesma época, o Spotify anunciou a demissão de 17% de seu quadro global de funcionários – o equivalente a cerca de 2 mil pessoas.
É que a empresa, mesmo com 200 milhões de assinantes e líder em seu segmento, simplesmente ainda não dá lucro constante. Pelo contrário: em 2022, os suecos tiveram um prejuízo de de US$ 430 milhões (mais de R$ 2 bilhões na cotação atual).
Mas, afinal, como funciona o mecanismo de pagamento do Spotify?
Para começo de conversa, o dinheiro não é repassado diretamente aos criadores, e sim aos grupos e empresas detentoras dos direitos de comercialização das músicas – gravadoras, distribuidoras, editoras, sociedades de gestão coletiva, agência ou editoras.
Não há uma taxa fixa de remuneração. O valor é definido a partir de um cálculo mensal que considera diversos fatores, inclusive o país onde os usuários reproduziram as faixas.
Por causa dessa matemática complexa, a companhia sueca é frequentemente acusada de falta de transparência. Contudo, estima-se que, na ponta final, um músico receba US$ 0,003 por stream.
Essa média é utilizada por várias entidades internacionais que tratam de direitos autorais, incluindo a Union of Musicians and Allied Workers (ou UMAW, algo como “União dos Músicos e Trabalhadores Afins”) – cujo objetivo é “lutar por uma indústria mais justa”.
Sendo assim, se uma canção de Ivan Lins for reproduzida 20 mil vezes, ele talvez receba R$ 11,60. O que torna sua conta um tanto exagerada, mas não absurda.
Músicos se sentem injustiçados “desde que o mundo é mundo”
A verdade é que os artistas se consideram desvalorizados desde os primórdios – e isso faz parte de uma contradição histórica e essencial da própria industrial cultural.
Foi assim nos tempos da venda de partituras, do avento do rádio, do comércio de mídias físicas... Na era da música digital não é diferente.
Lançado na Suécia em 2008, após anos de desenvolvimento e negociações com gravadoras, o Spotify logo se expandiu pelo mundo por ser uma alternativa legal e conveniente à pirataria na internet.
O serviço revolucionou a forma como consumimos música, tornando-se uma fonte quase inesgotável de entretenimento e descobertas. Tanto que, até hoje, não foi superado por seus principais concorrentes (Apple Music, YouTube Music, Deezer e Tidal).
No entanto, seu modelo de negócios resultou em pagamentos relativamente baixos por reprodução, se comparados com as antigas receitas geradas pelas vendas de CDs, LPs, DVDs e K7s.
Porém, com exceção daqueles que se dedicam apenas à composição, os músicos em geral têm outras fontes de compensação financeira além dos royalties – shows ao vivo, merchandising, parcerias com marcas e o licenciamento de canções para filmes e comerciais.
Nesse sentido, o Spotify pode servir como um trampolim para oportunidades de monetização, principalmente para cantores e grupos capazes de construir uma base engajada de fãs na plataforma.
Muitos artistas inclusive utilizam os dados oferecidos pela empresa para definir estratégias comerciais, como planejar turnês em regiões onde suas músicas são mais ouvidas.
E o bolo, ao que aparece, vem sendo dividido entre mais gente. Em 2023, pela primeira vez desde o surgimento do Spotify, cantores e bandas independentes (não contratados de grandes gravadoras) produziram perto da metade da receita total do serviço.
Além disso, mais de 50% dos 66 mil artistas que no ano passado geraram pelo menos US$ 10 mil na plataforma não são de língua inglesa – faixas em espanhol, alemão, português, francês e coreano se destacaram na temporada, segundo a companhia.
É uma questão, portanto, de encarar a realidade e se apropriar da tecnologia.
Em 2020, um dos fundadores e CEO da companhia, Daniel Ek, deu uma entrevista ao site Music Ally que ainda reverbera (e incomoda) a classe artística. Para ele, quem reclama deveria trabalhar mais – ou melhor, gravar mais.
“Alguns artistas ganhavam mais no passado e hoje em dia podem não ganhar tanto, pois agora não dá para alguém gravar música a cada três ou quatro anos e achar que isso será o bastante”, afirmou.
“Aqueles que não estão indo bem nas plataformas de streaming são, em sua maioria, aqueles que querem lançar música do jeito que era antes.”
Em suma: uma cutucada nos veteranos que viveram a era de ouro dos discos físicos, se colocaram num pedestal e não desceram de lá para entender este novo momento.
Produtor premiado prevê o crescimento da música gerada por I.A. nas plataformas
Outro “corte” que viralizou na internet brasileira mostra um depoimento do cantor Nasi, da banda paulista Ira!, revelando ter saudade dos tempos do monopólio das grandes gravadoras.
Em um bate-papo de podcast, ele lembra de quando as companhias fonográficas “investiam” nas bandas, chegando a bancar meses de gravações em outra cidade e proporcionando ótimos estúdios e equipamentos.
Crítico do streaming, o cantor ainda questiona se alguém, nos dias de hoje, tem interesse em ser músico neste cenário injusto. E sentencia: “A música como conhecíamos acabou”.
Conhecido no mercado publicitário e responsável por álbuns de figuras como Junior Lima (irmão de Sandy) e Emicida (trabalho pelo qual ganhou um Grammy Latino), o produtor Felipe Vassão não conseguiu se segurar ao ver a declaração de Nasi.
Postou um vídeo em resposta ao vocalista, em que até concorda com alguns pontos apresentados por ele, mas desmistifica boa parte de seu saudosismo.
Em resumo, Vassão explica que as gravadoras só começavam a pagar os royalties quando recuperavam todo o investimento.
Ou seja, quem estava bancando a estrutura para a gravação dos discos eram os próprios músicos, como se estivessem fazendo uso de uma linha de crédito – e só viam a cor do dinheiro se vendessem alguma coisa.
“A gente faz música porque gosta, porque quer contar uma história. Se eu quisesse só ganhar dinheiro, seria bancário, corretor de imóveis. Quero ganhar dinheiro fazendo música, mas não é isso que me movimenta”, disse Vassão, em seu vídeo que fez tanto sucesso quanto o original.
Procurado pela reportagem da Gazeta do Povo para comentar o sistema de pagamento do Spotify, o produtor afirma que a música está numa “encruzilhada mercadológica ”. No entanto, não considera a plataforma um “mal necessário”, como muitos de seus críticos.
“O streaming é um bem necessário. É o que temos. O maior problema, para mim, é que as maiores gravadores do mundo hoje têm entre 15% e 25% do controle acionista do Spotify”, afirma.
“Quem detém os fonogramas não pode ser sócio da plataforma. Esse é um dos maiores conflitos de interesse do mundo. Praticamente uma máfia.”
Vassão também lamenta o fato de a música digital ter virado uma commodity. “Quando isso acontece, a liberdade criativa e de experimentação vai por água abaixo.”
Ele cita o exemplo do músico e compositor sueco Joahn Röhr, totalmente desconhecido do grande público, mas cujas mais de 2,7 mil faixas gravadas já ultrapassaram a marca de 15 milhões de plays no Spotify.
Utilizando centenas de codinomes aleatórios (Maya Åström, Minik Knudsen, Mingmei Hsueh, Csizmazia Etel), Röhr produz temas instrumentais “inofensivos”, ouvidos por quem quer trabalhar ou estudar com alguma trilha de fundo.
Com essa estratégia baseada em músicas, digamos, funcionais, já superou os números de medalhões como ABBA, Michael Jackson e Britney Spears na plataforma.
Vassão ainda prevê o avanço das músicas geradas por inteligência artificial nos serviços de streaming. Por fim, dá uma dica aos fãs “de verdade”.
“Se você realmente quer recompensar um artista, vá ao show dele. Ou compre algum merchandising, como um boné, caneca ou camiseta. Só assim o seu dinheiro vai chegar até ele.”