"Odeio o Apu e, por tabela, também não curto 'Os Simpsons'", diz o ator Kal Penn no novo documentário sobre o dono da loja de conveniência sovina e atirador contumaz de Squishee de sotaque forte, personagem de uma das séries mais queridas da história da TV.
Os sentimentos dos norte-americanos descendentes de sul-asiáticos em relação a ele e ao programa de que faz parte são o foco de "The Problem with Apu". Idealizado pelo ator e comediante de stand-up Hari Kondabolu, fã de longa data do seriado "Os Simpsons", o filme debate como é possível que um programa tão elogiado pelo humor certeiro – ao longo dos anos, explorou questões como homofobia e corrupção política – pode apelar para um estereótipo tão óbvio. Para piorar, há o fato de que o indiano é dublado por um ator branco, ainda que tenha ganhado o Emmy: Hank Azaria.
"Tudo com o Apu é motivo de piada – e a piada é o fato de ele ser indiano", diz Kondabolu, 35 anos, por telefone.
Criado no Queens, o cômico, que é filho de imigrantes, sabe tudo sobre a história do programa (a sitcom mais longeva dos EUA), quantos prêmios conquistou (32 Emmy), quanto os fãs incondicionais de outras partes do mundo. "Sou o comediante que pega no pé do maior show de comédia de todos os tempos", comenta.
A ideia de fazer um documentário evoluiu a partir de um quadro de cinco minutos de Kondabolu na série do FX, "Totally Biased With W. Kamau Bell", em 2012. Mindy Kaling tinha acabado de se tornar a primeira indiana-americana a ter uma série própria ("The Mindy Project"), e ele achou que poderia usar a brecha para falar sobre Apu, os estereótipos que envolvem o pessoal do sul da Ásia e as dificuldades enfrentadas pelos indianos em Hollywood. Como comediante de sucesso que já fizera participações nos programas de David Letterman e Jimmy Kimmel, mas que fora interrompido e provocado por piadinhas preconceituosas em outras apresentações, ele conhecia bem o assunto.
O tópico lhe parece cafona e batido, mas quando levou suas preocupações a Bell, o apresentador ficou confuso. "Eu comentei que ninguém falava sobre aquilo. E todos aqueles outros quadros que a comunidade sul-asiática fez sobre o Apu? Aí o Hari se tocou, tipo 'Ah, é mesmo'", relatou Bell, em entrevista por telefone.
O quadro causou furor no público, e foi o trecho de um minuto sobre Apu de que as pessoas mais se lembraram.
"Por que então não fazer um documentário inteiro só sobre as questões com o dono do Kwik-E-Mart, que serviriam de gancho para as outras coisas sobre que eu andava matutando?", Kondabolu pensou.
Em parceria com o diretor Michael Melamedoff, a equipe começou a produção em abril de 2016, aprovada pela truTV como parte da iniciativa de mudar sua programação para os rumos da comédia.
Para ajudá-lo a realizar o projeto, pediu ajuda de gente de peso: em uma sequência, o ator Aziz Ansari ("Master of None") descreve a ocasião em que estava no carro com o pai quando um homem se aproximou e perguntou onde ficava o Quik-E-Mart mais próximo.
O Dr. Vivek Murthy, 19º cirurgião dos EUA, fala das piadinhas que teve que ouvir por causa do sotaque de Apu no sétimo ano.
Maulik Pancholy ("30 Rock") confessa que odiava ir ao 7-Eleven quando garoto, principalmente se seus amigos vissem que um dos atendentes era indiano, porque na certa começavam a fazer "o lance do Apu".
No filme, Kondabolu coloca o personagem na história mais ampla de Hollywood e a forma como essa retrata os indianos, incluindo Peter Sellers encarnando um paspalho de rosto marrom em "Um Convidado Bem Trapalhão", de 1968, dirigido por Blake Edwards, e os indianos comendo cérebro de macaco congelado em "Indiana Jones e o Templo da Perdição", de Steven Spielberg. Também foi procurar os atores sul-asiáticos mais badalados para falar de suas experiências em Hollywood, na mesma linha da peça de 1987 de Philip Kan Gotanda, "Yankee Dawg You Die" e o episódio de 2015 de "Master of None", "Indians on TV".
Entre as histórias: Sakina Jaffrey ("House of Cards") monopolizando o mercado de "mães chorosas de estupradores e assassinos em potencial" e Penn sendo convidado a interpretar um personagem chamado Taj Mahal, que acredita ser responsável pelo convite para estrelar os filmes da série "Harold e Kumar" que viriam depois. "Só para deixar registrado, eu me diverti muito fazendo esse trabalho", revelou ele, em entrevista.
A base da narrativa, entretanto, relata as tentativas de Kondabolu de rastrear a história original do personagem e conseguir uma entrevista com Azaria, a voz de Apu desde sua criação, em 1990.
Em 2007, o ator, que se recusou a comentar a questão para este artigo, admitiu que sua paródia do sotaque indiano "não era exatamente acurada". Kondabolu concorda. No filme, ele descreve a imitação de Azaria como "um branco imitando um branco tirando sarro do meu pai".
Na câmera, Dana Gould, roteirista e produtor executivo de "Os Simpsons", tenta explicar a graça de Apu. Barney, o beberrão da cidade, é engraçado porque está sempre bêbado; Smithers, o assistente hipócrita do Sr. Burns, é engraçado porque é enrustido. (Desde a entrevista, ele saiu do armário.) Apu? Ele é engraçado porque soa indiano, ou pelo menos na versão de Azaria. "Tem sotaque que, por causa da natureza dos sons, e aqui só posso falar pela experiência pessoal, soa engraçado para os norte-americanos brancos", afirma Gould no filme.
"Esse não é só um ponto cego dos roteiristas, mas de todos nós, em nível nacional", afirma Melamedoff.
O resultado acidental: uma geração inteira de atores indianos recebendo pedidos para imitar Apu nos testes. "Você chega até ali, depois de fazer interpretação, estudar cinema, está batalhando para realizar seu sonho... e aí alguém pede para você imitar o Apu de 'Os Simpsons'", desabafa Penn.
Ainda não se sabe quem é o responsável pela ideia do sotaque forçado do personagem. Será que Azaria foi instruído pelos produtores a "ser o mais ofensivo possível", como alegou na entrevista de dez anos atrás? Ou ele inventou na hora, na base da improvisação, como o roteirista da série Mike Reiss contou em um podcast, em 2016?
Kondabolu insistiu com Azaria, pedindo a entrevista. Os dois trocaram e-mails, conversaram por telefone (em particular) e até levantaram a hipótese de fazer a entrevista em terreno neutro (no podcast "WTF With Marc Maron", ou "Fresh Air", com Terry Gross).
"Hari sabia que não faria sentido o filme se não pudesse falar com Hank", revela Utkarsh Ambudkar ("A Escolha Perfeita"), que, como o sobrinho de Apu, em um episódio de 2016, chamou o tio de vendido e de estereótipo.
"Eu falei para ele, 'Você está de brincadeira!'. Conseguir reunir tanta gente bacana para falar sobre um determinado assunto. Poderia ser até sobre modelos de trens! E sempre vai ter um moleque de quinze anos em algum lugar que vai ficar maravilhado com tanta gente poderosa, talentosa e famosa reunida no mesmo lugar. E vai querer fazer igual."
Kellogg´s muda embalagem de cereal após ser acusada de racismo //bit.ly/2haAaIT
Publicado por Ideias em Quinta-feira, 26 de outubro de 2017
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