A revista France Football divulgou levantamento na última segunda-feira (1) com os jogadores mais bem pagos do futebol masculino e feminino. A publicação causou polêmica em virtude da desigualdade salarial registrada entre o mais bem pago de cada gênero.
Enquanto a jogadora norueguesa do Lyon, Ada Hegerberg, fatura 400.000 euros (cerca de R$ 1,73 milhão) por temporada, Messi ganha 130 milhões de euros (algo em torno de R$ 563 milhões). Significa dizer que ele recebe 325 vezes mais do que a jogadora feminina.
Muitos comentários apontaram para um suposto viés sexista no esporte que seria responsável pela atleta receber tão menos, endossando discursos sobre a desigualdade de gênero. Este texto não busca denegrir quem deseja maior igualdade salarial entre homens e mulheres. Há, inclusive, políticas públicas possíveis que, caso implementadas, poderiam contribuir para essa questão, como o compartilhamento da licença-maternidade entre pai e mãe. O ponto aqui é: fazer comparações entre a jogadora e Messi é comparar alhos com bugalhos.
Você provavelmente nunca ouviu falar de Ada, embora ela tenha sido eleita a melhor jogadora do mundo em 2018 — ela venceu a primeira Bola de Ouro feminina (a vencedora do prêmio da Fifa foi a brasileira Marta, Hegerberg ficou entre as três melhores). Esse fato, por si só, deveria ajudar a explicar por que ela não ganha tão bem quanto a estrela do Barcelona.
Isso porque a remuneração é regulada pelo mercado — que, basicamente, é a reunião das decisões de todos os agentes, incluindo você, eu, o pipoqueiro e o grande industrial, estejam interessados ou não por futebol. Não há distinção sexista: quem gera mais valor, ou seja, traz maior audiência, repercussão e exposição, será melhor remunerado por clubes e patrocinadores.
A quantidade de buscas pelo nome da norueguesa no Google, por exemplo, é ínfima em relação ao do vencedor da Bola de Ouro em cinco oportunidades.
Porém, há outras formas de medir o interesse por um jogador que não os trends do Google. Vamos a eles.
A média de público em um jogo do Lyon, que, além de Hegerberg, possui as duas outras atletas mais bem pagas da modalidade, na Liga dos Campeões, é de pouco mais de 10 mil pagantes.
Os jogos para ver Ada no Lyon custam a partir de 5 euros. Já a média de público que paga para ver um jogo de Messi no Camp Nou é quase oito vezes superior. Seus torcedores arcam com um preço a partir de 39 euros, podendo ir até a € 2.600 em um clássico contra o Real Madrid. Outro exemplo é a brasileira Marta, recordista em Bolas de Ouro, atrair para o estádio de seu time, o Orlando, menos de 7 mil torcedores, em paralelo ao PSG de Neymar alcançando a maior média de público de sua história — aproximadamente 46,7 mil espectadores por partida.
Messi também é o jogador que mais vende camisas no mundo, sendo difícil até achar os números de vendas de Ada. E faz sentido: enquanto ele é um dos melhores jogadores da história e uma estrela mundial, talvez seja uma falha de caráter, mas nunca presenciei uma criança com a camisa de Ada na rua. Sendo ainda mais sincero, não a conhecia até a polêmica comparação que levou o editor-chefe a me sugerir esta pauta.
O subdesenvolvimento do futebol feminino
Uma das razões para explicar tamanho disparate é o nível de profissionalização do futebol feminino, que está bem aquém do masculino. Levantamento da Universidade de Manchester mostrou que metade das jogadoras não recebe qualquer salário, tampouco possuem contrato formal com seus clubes. Isso não só restringe a competitividade, mas também impacta toda a modalidade. É como se fossem esportes distintos.
Em parte isso é explicado porque o futebol feminino como modalidade organizada é bem mais recente que o masculino: o movimento por profissionalização se iniciou apenas no final dos anos 1960. No Brasil houve um agravante, com seu desenvolvimento sendo prejudicado em virtude de uma legislação preconceituosa de Getúlio Vargas que durou até o final dos anos 1970. Na ocasião, o decreto-lei proibiu mulheres de realizar algumas práticas desportivas "incompatíveis com as condições de sua natureza", como o futebol. Outros países, como o Reino Unido, também registraram limitações quanto à prática do esporte.
No meio deste universo, o público brasileiro em geral não acompanha os times existentes de futebol feminino. Há quem diga que não o faz porque não há a mesma frequência de transmissão de jogos televisionados. Mas, tendo como parâmetro as Olimpíadas do Rio, essa perspectiva é posta em dúvida: enquanto o torneio masculino, considerado semiprofissional, levou em média 31.500 pessoas por jogo, o feminino atraiu 24.500, a despeito de ambos ocorrerem nas mesmas cidades e no mesmo período. A audiência televisiva dos jogos da seleção brasileira sub-23 foi superior à dos jogos da seleção principal feminina: das 10 maiores audiências das Olimpíadas, quatro foram de jogos da seleção masculina, enquanto apenas duas foram dos jogos da seleção feminina.
É difícil acreditar que uma emissora deixaria de ganhar milhões de reais em patrocínios se houvesse apelo pela transmissão de campeonatos de futebol feminino. Tudo isso impacta o salário das maiores estrelas dos esportes.
É preciso ter em mente que o desenvolvimento do esporte é natural. Jogadores de hoje recebem muito mais do que no passado, quando o futebol ainda era incipiente. Levantamento de Rodrigo Capelo mostrou que, nas conversões de moeda, o salário de Garrincha no Botafogo seria inferior a R$ 3 mil por mês. Isso diz muito sobre o nível de desenvolvimento do futebol masculino nos anos 1960 e 1970.
Se o Vampeta tem Copa e o Messi não, o jogador brasileiro também pode se gabar de outra façanha: no início dos anos 2000, quando atuava pelo Corinthians, seu salário era superior ao de Pelé em seu auge no Santos. Vampeta provavelmente tinha salários maiores porque o ambiente que cercava o esporte em sua época — clubes, emissoras, patrocinadores, audiência, interesse do público, estádios, camisas, entre outros fatores — era mais desenvolvido que no período em que Pelé atuou, e não por sua qualidade técnica. A conquista de Vampeta é repetida por praticamente qualquer jogador de Série A no futebol brasileiro da atualidade porque há mais dinheiro sendo movimento no esporte atualmente do que no passado.
No entanto, é comum que a avaliação passe por um viés de confirmação, analisando tão somente os jogadores e campeonatos mais badalados. A realidade da maioria dos atletas é bastante distante do vivenciado não apenas por Messi, mas por Ada: 96% dos jogadores de futebol brasileiro recebem menos de R$ 5 mil mensais, sendo que mais de 80% deles recebem menos de mil reais por mês. Ademais, o desemprego atinge 60% dos jogadores brasileiros. Se comparar as integrantes da seleção brasileira com este universo, elas têm renda superior a 96% desses jogadores.
Vale ressaltar ainda que, como tudo na vida, as regras do mercado também se aplicam ao universo masculino: clubes com maior audiência, destaque e torcida conquistam os maiores patrocínios. A mesma empresa paga valores distintos para estampar sua marca em camisas diferentes. Tudo é calculado com base no potencial de vendas e exposição de marca de cada agremiação.
Vale ressaltar que alguns times europeus estão investimento no desenvolvimento da modalidade, e isso está começando a ter resultados. Recentemente, o clássico entre Barcelona e Atlético de Madri, no estádio Wanda Metropolitano, chegou a 60.000 espectadores e bateu o recorde mundial de público da modalidade. No mesmo mês, Juventus e Fiorentina se enfrentaram em Turim e cerca de 40.000 torcedores estiveram no Allianz Stadium, ocupando mais de 95% da arena.
Clubes podem e devem fazer mais para expandir o mercado ainda pouco explorado do futebol feminino — e mesmo atrair torcedoras para os times em geral. Contudo, os projetos feitos por eles apenas vão até certo ponto sem a presença de público nos estádios. Pode demorar, mas se houver maior lotação nos estádios e um aumento de interesse por notícias sobre a modalidade, emissoras e patrocínios irão acompanhar. Foi assim que o futebol masculino se desenvolveu, e esse processo pode ser acelerado em um mundo de redes sociais, maior acesso a canais a cabo, serviços de streaming, etc. Porém, enquanto isso não acontece, não faz sentido comparar o salário de Ada com o de Messi, e, muito menos, dizer que há machismo envolvido por ela ganhar menos.
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