Legalizadas em 2018 no Brasil, apostas esportivas podem ter saído do controle.| Foto: Bruno Peres/Agência Brasil
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Não é exagero dizer que Gilcione Nonato Costa é quem mais entende de estatísticas de futebol no Brasil. Professor de Estatística da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), ele mantém, há 19 anos, um projeto que calcula as probabilidades dos principais campeonatos do país.

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O professor seria a pessoa mais indicada para lucrar com as apostas esportivas. Mas Costa, doutor em Matemática, nunca apostou um real sequer.

“A aposta é feita para a banca ganhar. No longo prazo você vai sempre perder dinheiro. Isso é algo simples e notório”, ele afirma. “Se você tem R$ 5 para gastar, é melhor comprar um refrigerante ou uma pipoca”, complementa.

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Um número cada vez maior de brasileiros parece não ter a mesma visão do professor.

Apenas em agosto deste ano, segundo o Banco Central, os brasileiros transferiram R$ 20,8 bilhões para empresas de aposta. Também de acordo com o órgão, 24 milhões de pessoas já realizaram apostas online no Brasil. Cinco milhões delas são beneficiárias do Bolsa-Família. Ou seja: em tese, elas não têm uma renda mínima para bancar despesas básicas, mas estão gastando dinheiro com uma atividade que não trará qualquer retorno significativo.

Esse é um dos indícios de que a situação saiu do controle e que as apostas virtuais, permitidas no Brasil desde 2018, se transformaram em um problema social.

A lógica estatística: apostar não vale a pena

Existem, basicamente, três formas de apostar na internet.

A primeira são os sites que, com promessas falsas e técnicas de manipulação, convencem o usuário a transferir cada vez mais dinheiro. Este é o esquema do chamado Jogo do Tigrinho, cujos donos têm sido investigados pelo Ministério Público.

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A segunda forma é uma reprodução virtual dos cassinos — com roletas e caça-níqueis que distribuem prêmios de forma mais ou menos aleatória.

A terceira são as apostas esportivas. Em um primeiro olhar, elas parecem uma alternativa racional às duas opções anteriores: como o resultado dos jogos é público, esse tipo de aposta tem menor risco de manipulação. 

Mas, na verdade, não é possível ganhar dinheiro de forma consistente com nenhum dos três tipos de aposta. Quem diz são os estudiosos de Estatística.

Por que as apostas esportivas dão prejuízo

Em tese, a lógica de uma aposta esportiva é relativamente simples.

Suponha que você jogue uma moeda para cima. São dois resultados possíveis, ambos com 50% de chance de acontecer: cara ou coroa. Se você apostar R$ 10 reais com um amigo, um dos dois sairá de lá com R$ 20; o outro, com zero. O total de dinheiro permanece igual — apenas muda de mãos.

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Se os dois amigos tiverem R$ 500 no bolso e apostarem no cara ou coroa 100 vezes, cada um terminará a sequência de apostas com os mesmos R$ 500, ou algo muito próximo disso.

Mas o que os sites de aposta fazem é diferente: eles lucram ao pagar um valor menor do que as probabilidades ditariam. Utilizando o exemplo da moeda, seria algo assim: se você errar, você perde os seus R$ 10. Se você acertar, você ganha R$ 9.

Se cada apostador começar com R$ 500 no bolso, depois de 100 rodadas um deles terá R$ 450 e o outro, R$ 550.

Com sorte, é possível acertar na primeira vez ou na segunda rodada. Mas continuar apostando é ter prejuízo garantido. É o que os estatísticos chamam de Lei dos Grandes Números.

O futebol não é tão exato quanto o cara e coroa. Ainda assim, com base em dados das partidas anteriores, é possível estimar as chances de que um jogo terá um determinado resultado. A única forma de vencer é superar a casa: é saber mais sobre as chances de um certo resultado acontecer do que a própria empresa. Mas, como essas companhias utilizam um grande volume de dados para calcular as probabilidades (também chamadas de “odds” no mundo das apostas), é praticamente impossível superá-las de forma consistente a ponto de lucrar.

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Estudiosos das apostas identificaram um mecanismo psicológico que torna as pessoas dependentes de casinos, loterias e apostas esportivas: elas medem ganhos e perdas de forma desigual. O prazer do ganho é mais intenso que o desgosto da perda.

Quem obtém um ganho quando começa a apostar tende a continuar apostando. A decisão racional seria fazer o contrário. “Se ele ganha a primeira vez ele tem que parar. Maré de sorte não existe”, explica o professor Gilcione Nonato Costa.

Lei liberou apostas esportivas em 2018

As casas de apostas virtuais estão autorizadas a funcionar no Brasil desde 2018, quando o Congresso aprovou um projeto de lei concedendo a autorização.

A mudança na legislação abriu as portas para um negócio com lucro praticamente garantido.

Nenhum mercado cresceu tanto no Brasil nos últimos anos quanto o das apostas esportivas online.

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As empresas do ramo ocupam uma fatia gorda do mercado publicitário e patrocinam dois terços dos times que disputam o Campeonato Brasileiro de Futebol. O próprio torneio associou sua marca a uma empresa de apostas, em um acordo milionário de “naming rights” firmado pela Confederação Brasileira de Futebol.

A expansão das apostas esportivas gerou um debate que envolve economia e moralidade.

Do ponto de vista econômico, as apostas são uma simples transferência de riqueza do bolso das pessoas para os cofres das casas de apostas — muitas das quais têm sede no exterior.

No caminho, o governo pega a sua parte.

No ano passado, o Congresso aprovou um novo projeto de lei que regulamenta as apostas on-line. Pelo projeto, os prêmios são taxados em 15%. As empresas terão os ganhos taxados em 12%. 

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Agora, diante dos sinais de que cada vez mais brasileiros se tornaram viciados em apostas, o Executivo parece preocupado.

Preocupação do governo

"Nós estamos percebendo no Brasil o endividamento das pessoas mais pobres tentando ganhar dinheiro fazendo aposta. E esse é um problema que nós vamos ter que regular porque, senão, daqui a pouco, vamos ter os cassinos funcionando dentro da cozinha de cada casa”, afirmou Lula, em um discurso na terça-feira (24).

Na última semana, Lula criou uma força-tarefa para tratar do assunto. Dentre as prioridades, além do combate à lavagem de dinheiro por meio de sites de apostas, estão o tratamento de pessoas que se tornaram viciadas em apostas e o monitoramento dos valores apostados por meio do CPF.

O Legislativo também entrou em ação. O deputado Tião Medeiros (PP-PR) apresentou um projeto de lei que impede que impede beneficiários do Bolsa-Família de repassarem recursos para sites de apostas. "Preocupa-nos o envolvimento de pessoas de baixa renda com esse tipo de apostas. Tanto pelo fato de que existe a forte possibilidade de endividamento excessivo dessa parcela da população mais vulnerável, quanto pelo fato de que esteja havendo uma maciça transferência de recursos públicos para as bets", ele justificou.

Professor defende travas

O debate sobre a legitimidade dos sites de aposta resvala em uma discussão mais profunda: a que tenta equacionar a liberdade individual com a proteção do bem comum. Para boa parte dos autores liberais, como John Locke, a defesa da liberdade não permite que alguém decida se tornar escravo — mesmo que, inicialmente, de forma voluntária.

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Na opinião do professor Gilcione Nonato Costa, a proibição talvez não seja o melhor caminho a tomar. Uma das formas de amenizar o problema é informar o público sobre os riscos envolvidos nas apostas.

“O governo tem que garantir que as pessoas sejam informadas sobre os riscos e os ganhos. Então a pessoa pode decidir se a aposta compensa ou não”, afirma Costa.

O professor acrescenta que outra ideia viável, já adotada em outros países, seria incluir travas que evitem um comportamento compulsivo dos apostadores. Assim, seria possível limitar as perdas diárias a um certo valor, ou ainda bloquear a conta do apostador quando ele realizar um número excessivo de apostas em sequência.

Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]