A obsessão geral da cultura americana com o sucesso – econômico, principalmente, mas também pessoal, atlético, artístico, político, intelectual – contém um nicho específico para o sucesso dos presidentes da República. Isso se reflete numa volumosa literatura científica, incluindo trabalhos de psicologia e ciência social, sobre o que leva um presidente a sobressair-se ou fracassar na condução do país. Um nicho, dentro desse nicho, trata das estimativas de QI dos mandatários e sua correlação com o desempenho no cargo.
A eleição de Donald J. Trump para o Salão Oval voltou a pôr a questão do Quociente de Inteligência presidencial em evidência, algo que andava meio adormecida desde os tempos de George W. Bush. As primeiras pessoas a chamar atenção para o QI de Trump foram seus apoiadores: pelo menos desde 2015, circula pela internet o boato de que o magnata e ex-apresentador de TV teria um QI de 156.
Testes de QI são calibrados de modo que a média, correspondente ao valor mais comum na população, seja sempre 100, e que a distribuição tenha um desvio-padrão de 15, o que significa que 95% das pessoas terão QI entre 70 (normalmente tido como o limiar da deficiência intelectual) e 130 (onde começa a região dos chamados “superdotados”). Um QI de 156 colocaria Trump quase 4 desvios-padrão acima da média, ou entre os 0,01% que compõem a alta elite intelectual.
Mas uma investigação do site de checagem de dados Snopes mostrou que a história do “QI de 156” era infundada. O quociente de inteligência do presidente teria sido estimado a partir dos critérios de admissão da faculdade em que Trump estudou, mas segundo Snopes não só a faculdade – Wharton School, da Universidade de Pensilvânia – não é tão exigente assim, como Trump não entrou lá por mérito, e sim graças a conexões de família (e dinheiro, claro).
A falsa estimativa de 156, desbancada pelo site, baseava-se num estudo real que tentava usar dados históricos para derivar o QI dos presidentes dos Estados Unidos, de George Washington a George W. Bush. Publicado no periódico Political Psychology, produziu quatro conjuntos de estimativas, sendo que a média vai de 120 (Ulysses S. Grant) a 169 (John Quincy Adams). Um QI de 120 é aproximadamente o que se espera de uma pessoa formada numa boa universidade. Já 169 é a região da genialidade mais rarefeita. Publicado em 2006, o trabalho, por razões óbvias, não levantou informações sobre Barack Obama ou Donald Trump.
O verdadeiro QI de Trump, para quem estiver curioso a respeito, é desconhecido. Em 2016, durante a campanha eleitoral americana, ele desafiou o prefeito de Londres, Sadiq Khan, para uma competição de “testes de QI”, depois de Khan dizer que as opiniões do então candidato sobre o islã mostravam “ignorância”, mas a ideia não prosperou.
Mais recentemente, artigo publicado na revista ForeignPolicy sugeriu o contrário do boato dos 156 – que Donald Trump é burro demais para permanecer no cargo. O autor do artigo, o historiador conservador Max Boot, constrói seu argumento a partir de uma série de exemplos, como as muitas vezes constrangedoras “guerras de tuítes” em que o mandatário volta e meia se envolve, além dos tropeços de Trump envolvendo o FBI e a conexão de figuras de sua administração com o governo russo.
Ataques ao intelecto de presidentes republicanos não são, aliás, novidade. Em 2001, uma falsa notícia circulou, por e-mail, afirmando que o então presidente George W. Bush (estimativa média de QI, 125, segundo o no estudo publicado por Political Psychology) teria um escore de apenas 91. O jornal britânico The Guardian chegou a noticiar o fato como verdadeiro, retratando-se mais tarde.
Em 2005, o psicólogo americano David Z. Hambrick escreveu um artigo para a revista Scientific American com o título “Quanta Inteligência um Presidente Deve Ter?”, em que aponta uma boa correlação entre o QI dos presidentes, tal como estimado no trabalho de 2006, e o ranking de sucesso no cargo, elaborado pelo estatístico Nate Silver. O principal ponto fora da curva era exatamente John Quincy Adams, com o maior QI de todos, mas uma classificação medíocre no ranking.
Hammbick pondera que “QI não é o único preditor do sucesso” de um presidente. “Muitos outros fatores importam, como experiência, personalidade, motivação, habilidades interpessoais e, talvez acima de tudo, sorte”. Uma equação proposta em 1991, no periódico Presidential Studies Quarterly, destilava, em seis fatores, as chances de um presidente entrar para a história como um grande líder. Inteligência contribuía com peso positivo de 12% no índice. Em comparação, ser assassinado no cargo entrava com 33%.
QI ou não QI?
Mas, afinal, dá para levar essa conversa de QI a sério? E o que os testes de inteligência medem, merece mesmo ser chamado de “inteligência”? Nas décadas finais do século passado, três livros fizeram muito para manchar a reputação do QI perante a opinião pública: “Frames of Mind: The Theory of Multiple Intelligences”, no qual o psicólogo Howard Gardner expõe a hipótese de que existiriam “múltiplas inteligências” incomensuráveis entre si e, portanto, incapazes de serem captadas e resumidas num índice único; “The Mismeasure of Man”, do paleontólogo Stephen Jay Gould, que argumenta que todo o projeto de medir a inteligência humana não passa de uma forma disfarçada de justificar e promover racismo e elitismo. Tanto Gardner quanto Gould publicaram seus trabalhos, originalmente, nos anos 80.
A crítica de Gould à própria noção de QI recebeu impulso – e sua obra, uma segunda edição, revista e ampliada – após o lançamento, em 1994, do terceiro livro desta lista: “A Curva do Sino”, de Charles Murray e Richard Herrnstein. Os autores usaram usa dados estatísticos de QI para argumentar que o fator primordial da divisão da sociedade americana entre ricos e pobres é a inteligência inata das diferentes populações e grupos étnicos, não algum tipo de injustiça social.
A reação à “Curva do Sino” foi tão violenta que os cientistas que lidavam com pesquisa na área de medição de inteligência tiveram de sair em defesa de seu campo de estudo, distanciando-se das conclusões de Murray e Herrbstein, ao mesmo tempo em que reafirmavam o valor do trabalho acadêmico na área.
A Associação de Psicologia dos Estados Unidos (APA, na sigla em inglês) formou um comitê para tratar do assunto, que produziu o relatório “Intelligence: Knowns and Unknowns”, reafirmando a validade e a importância dos testes de QI, ao mesmo tempo em que aponta suas limitações. Uma reação paralela assumiu a forma de manifesto de 56 psicólogos publicado no Wall Street Journal, e que começa da seguinte forma: “Inteligência é uma capacidade mental geral que, entre outras coisas, envolve a capacidade de raciocinar, planejar, resolver problemas, pensar de modo abstrato, compreender ideias complexas, aprender rapidamente e aprender com a experiência (...) a inteligência, assim definida, pode ser medida, e medida bem”.
Hoje em dia, psicólogos falam em “inteligência psicométrica” como sendo aquela que pode ser medida de modo confiável por testes sofisticados, os melhores dos quais são aplicados individualmente, por um especialista treinado, e quase não envolvem leitura ou escrita. Esses testes podem avaliar competências as mais diversas, como raciocínio abstrato, vocabulário, memória, rapidez mental. São, portanto, bem distintos dos “testes de QI” que parecem em revistas e livros do tipo teste-você-mesmo.
O fator “g”
Em 1993, o psicólogo John Carroll, depois de analisar centenas de estudos a respeito da medição da inteligência humana, propôs um modelo em que a inteligência aparece formada por três camadas, ou estratos. O nível mais profundo é representado por um fator geral de inteligência, ou “g”. Esse “g” é suplementado por um conjunto de habilidades mentais amplas. Tais habilidades amplas, por sua vez, desdobram-se em habilidades específicas. Assim, por exemplo, um grande matemático e um poeta brilhante podem ter, ambos, um alto índice “g”, mas diferir nos demais estratos da inteligência.
A proposta de “g” não foi uma invenção de Carroll: ela existia desde o início do século 20, quando análises estatísticas passaram a revelar que diversos testes de inteligência correlacionavam-se entre si – uma pessoa que se sobressaía num deles provavelmente iria melhor, também, nos outros. Foi a análise da teia de correlações que trouxe a ideia de um fator geral por trás das habilidades específicas.
Uma das principais críticas ao modelo de múltiplas inteligências de Howard Gardner é que várias das “inteligências” que ele trata como independentes entre si são, na verdade, correlacionadas entre si e com “g”, enquanto outras não são propriamente “inteligências”. Pesquisadores da área de inteligência insistem em dizer que seus métodos não medem liderança, simpatia, carisma, caráter ou tenacidade, por exemplo.
Corrida de cavalos
A inteligência psicométrica tem poder preditivo: é um dos fatores (mas não o único) que permite estimar a probabilidade de uma pessoa se dar bem nos estudos, atingir alto status social, ter sucesso econômico, ser um bom trabalhador, um bom soldado ou, como sugerem as pesquisas sobre sucesso presidencial nos Estados Unidos, um bom líder do mundo livre. Mas há facetas da inteligência, como sabedoria ou criatividade, que até agora têm escapado à quantificação. E existem estudos que mostram que há pessoas que conseguem ser inteligentes de uma maneira que não aparece nos testes comuns.
Dois deles, citados na resposta da APA à “Curva do Sino”, foram realizados nos anos 80. Um, de Stephen J. Ceci e Jeffrey K. Liker, mostrou que um grupo de jogadores fanáticos em corridas de cavalos usava, de modo implícito e intuitivo, complexos modelos matemáticos para avaliar quanto valeria a pena apostar em cada competidor, mas que essa ginástica mental toda não aparecia nos testes de QI.
O outro, realizado no Brasil por pesquisadores da Universidade Federal de Pernambuco, mostrou que menores de rua do Recife eram capazes de resolver problemas matemáticos, com sucesso, como parte de suas atividades cotidianas no comércio informal, mas não conseguiam solucionar as mesmas operações com números quando eram apresentadas sob a forma de testes ou tarefas escolares.