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Cidades privadas

Wakanda da vida real: como um rapper criou uma cidade libertária na África

Cena do filme "Pantera Negra. As "Wakandas" da vida real são geridas por empresas, as chamadas zonas econômicas especiais. (Foto: Divulgação)

O cantor americano Akon está construindo a cidade de Wakanda, próximo a Dacar, no Senegal. Planejada para ser gerida por meio de criptomoeda, a Akoin, o projeto foi visto com muita surpresa por seus fãs. Mas o rapper está empreendendo em um segmento de mercado que vem ganhando destaque desde o século passado e que pode ser uma tendência global: o das Zonas Econômicas Especiais (ZEE) geridas por empresas.

Para atrair pessoas, empresas e investimentos, essas zonas precisam oferecer instituições que gerem incentivos virtuosos: caso a oferta não seja atraente o suficiente, ninguém se mudará para lá. Ou seja, a ZEE precisa ser melhor do que o marco regulatório do estado-nação em que ela está estabelecida. Em outras palavras, as instituições da cidade autônoma concorrerão como a do país em que ela está estabelecida, criando incentivos de boa governança daquele local para atrair moradores e fazê-los ficarem por lá. Se as instituições não forem suficientes, empresas e indivíduos não se interessarão em permanecer no local.

Para isso, essas zonas costumam oferecer bens públicos como serviços de segurança, infraestruturas e regras sociais. Um exemplo é a Nkwashi, na Zâmbia, que está sendo desenvolvida pela empresa Thebe e oferece diversos serviços, tal como o poder público local: coleta de lixo, manutenção de estradas, parques públicos, espaços verdes e demais áreas de lazer, serviços de segurança e combate a incêndio, instituições educacionais e hospitais, além de transporte público.

Outra cidade privada, em desenvolvimento pela empresa Rendeavor, é Tatu City, localizada no Quênia e que conta com mais de 12 mil hectares.

Baixos impostos, ordem e segurança estão entre os principais desejos de indivíduos e empresas para se estabelecerem em uma cidade privada. Outra vantagem é que toda a gestão é feita por empresa privada, que tem interesse em lucrar com o negócio. Assim, há incentivos para o planejamento ser de longo prazo, estimulando previsibilidade e segurança jurídica (itens muito caros para qualquer investidor) - ao contrário das cidades tradicionais, suscetíveis a diversos fatores de imprevisibilidade, como governantes que desequilibram contas públicas de olho nas próximas eleições, intervenções de governadores na cidade ao limitarem possíveis repasses e legislações aprovadas no parlamento nacional.

“Instituições são o grande fator de sucesso ou fracasso das sociedades. Moldar o futuro da governança e prover serviços melhores podem ser feitos mais facilmente por meio de cidades e jurisdições especiais, que criam zonas de desenvolvimento sustentável sem interesses políticos atrapalharem”, defende Michael Castle Miller, CEO da Politas Consulting, empresa que faz consultoria para criação de ZEEs.

O catarinense Francisco Litvay atualmente vive em Linz, na Áustria, e trabalha como assistente executivo da Free Private Cities (FPC), empresa que busca implementar o modelo de cidade privada em uma ZEE. Ele explica que a ideia é criar cidades com arcabouço semelhante ao de Hong Kong ou Macau em relação à China. Atualmente a empresa está envolvida em projeto que deve dar início às operações em 2020 na América Central, além de negociar com governos no Cáucaso e na África subsaariana.

Exemplo da China

“A governança competitiva promovida por ZEE abre a possibilidade para experimentações de instituições: com elas é possível fazer pequenos experimentos com novos códigos legais. Se funcionarem, essas zonas podem ser replicadas. Se falharem, o fracasso custa pouco, muito menos que fracassos nacionais”, afirma Litvay.

“Um exemplo disso foi a China. Inicialmente, ela estabeleceu meia dúzia de ZEEs para ‘testar’ um modelo mais capitalista. A primeira delas foi Shenzen, hoje conhecida como 'Vale do Silício Chinês'. Com o enorme sucesso dessas áreas, o governo chinês foi multiplicando as ZEEs e hoje centenas delas são responsáveis por tirar centenas de milhões da pobreza. Testando e selecionando o que funciona, temos uma verdadeira evolução de sistemas de governo”, diz.

Ou seja: com Zonas Especiais que permitem autonomia jurisdicional é possível adotar instituições de primeiro mundo e que já foram testadas mundo afora sem precisar alterar a legislação de um país inteiro.

“Um exemplo interessante foi a adoção pela Dubai International Financial Centre da legislação britânica nos Emirados Árabes. Como foi bem-sucedido, a Abu Dhabi's International Financial Centre e a Astana International Financial Center (AIFC) copiaram o modelo nas regiões que administram, que também são bem-sucedidas. Mais recentemente, a Anaklia City iniciou sua implementação na Geórgia”, afirma.

“A AIFC justifica a posição afirmando ser vantajoso para investidores porque eles não precisarão se aventurar em sistemas desconhecidos, corruptos e burocráticos. Eles têm um sistema judicial de common law totalmente independente para resolver rapidamente disputas civis e comerciais. O sistema é caracterizado por confiabilidade, justiça, incorruptibilidade, acessibilidade, aplicação incondicional do Estado de Direito e flexibilidade que responda às necessidades das empresas internacionais", explica Litvay.

O que o Estado tem a ganhar com as cidades privadas?

Ao criar uma ZEE, um governo atrai investimento estrangeiro para desenvolver uma área até então despovoada e sem infraestrutura alguma. A maioria dos países que têm ZEE isenta a região de impostos e tarifas por determinado tempo e, aos poucos, com o desenvolvimento do local, vai subindo as alíquotas.

Um exemplo é a Stupino Quadrat, ZEE da Rússia, localizada a cerca de 107 quilômetros do centro de Moscou. A região conta com pouco mais de 120 mil habitantes e terá vantagens tributárias por 49 anos.

A Astana International Financial Center (AIFC) é uma ZEE localizada no Cazaquistão e posicionada estrategicamente para ser um centro financeiro. Ela fica próximo aos países da Ásia Central, região do Cáucaso, países da Eurásia, do Oriente Médio, da China Ocidental, da Mongólia e países da Zona do Euro.

Astana foi criada por lei em dezembro de 2015 e suas atividades se iniciaram em julho de 2018. Ela tem o propósito de ser considerada uma região autônoma desenvolvida até 2050. Com apenas um ano de atividade, já há 235 empresas de 26 países diferentes instaladas na região, incluindo grandes bancos de investimentos. A projeção é de que até o final de 2020 o número chegue a 500. Além do ambiente de negócios frutífero, há a garantia de vantagens tributárias até 2065, entre elas a isenção de impostos corporativos, isenção de imposto de renda de pessoas físicas e isenção de impostos fundiários ou prediais.

Após o fim da concessão, o estado-nação passar a ter uma região mais desenvolvida, com um melhor sistema legal e arrecadações tributárias mais representativas do que as que seriam possíveis sem a adoção de uma ZEE.

Por que não há cidades privadas no Brasil?

Akon já tentou investir no Brasil, mas reclamou da burocracia. "Eu me lembro bem de vir aqui e tentar melhorar a iluminação das favelas. Ainda estamos nas fases de negociação, tentando botar em prática. Eu quero estar em lugares que precisem de ajuda e encontrar soluções para dar essa ajuda", afirmou ele ao G1. Mas por que criar Wakanda em Senegal e não no Brasil?

Não há projetos de “Wakandas” no Brasil porque não há legislação que os permita. É necessária legislação específica para possibilitar Zonas Econômicas Especiais e projetos de criação de um arcabouço jurisdicional do zero.

Enquanto diversos países do mundo estão se empenhando em criar ecossistemas de zonas especiais, como visto recentemente em países na África e em Honduras, ainda não há no Brasil legislação a respeito do assunto.

Isso quase mudou em 2019. Neste ano, tramitou no Congresso proposta de possibilitar a criação de ZEEs a partir da chamada MP da Liberdade Econômica.

O texto definia que cada ente federativo poderia criar uma zona de regime jurídico especial a partir de lei estadual. A área poderia corresponder a até 0,01% da extensão total do ente federativo e o objetivo seria o de promover a inovação e a competitividade de novas tecnologias e modelos de negócios. Isso significa que o Brasil poderia passar a ter 28 Zonas Econômicas Especiais com jurisdições diferentes.

O dispositivo, no entanto, foi retirado do texto final aprovado e que se transformou na Lei de Liberdade Econômica sancionada em setembro.

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