Em entrevista exclusiva, o renomado diretor Werner Herzog fala de seus livros e sentencia: “Lawrence da Arábia é um dos piores filmes da história do cinema”| Foto: Divulgação

O repórter chegou ao restaurante do hotel cinco estrelas em São Paulo, conforme o horário marcado, e logo viu, sentado à mesa, no fundo do grande salão de luzes suaves e claras, o sujeito com as mãos cobrindo dolorosamente o rosto.

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Quem o observasse ali, naquela posição, talvez jamais saberia que aquele homem era Werner Herzog, o lendário cineasta alemão que, entre outras façanhas, enfrentou a selva peruana para realizar Aguirre – A Cólera dos Deuses (1972); hipnotizou uma equipe inteira de filmagem para alcançar um estado de sonambulismo perfeito nas imagens de Coração de Cristal (1976); não contente com o que conseguiu na vastidão do Peru, adentrou novamente nas intempéries da Amazônia para concretizar a visão de um barco que deveria atravessar uma montanha – uma visão que depois seria registrada em celuloide no épico Fitzcarraldo (1982); e, como se não bastasse, teve a paciência de Jó ao lidar com os surtos de raiva de Klaus Kinski, o perturbado ator com quem teve uma parceria conturbada, mas suficientemente histórica para o diretor apelidá-lo de “meu caro inimigo”, como é o título de um dos seus documentários mais célebres, lançado em 1999.

Com tudo isso em mente, o repórter sabia que, durante a sua entrevista, jamais poderia cometer o mesmo erro feito pelo escritor francês Emmanuel Carrère, relatado em seu livro Limonov (2011). Ele estava no Festival de Cannes, em 1982, quando foi entrevistar Herzog por causa do lançamento de Fitzcarraldo. O cineasta era um dos seus heróis – chegou até mesmo escrever um livreto sobre ele – e, ao ser apresentado a Herzog, cometeu a ingenuidade de entregar um exemplar do seu ensaio a respeito do trabalho dele. Carrère conta o que aconteceu com sua honestidade peculiar:

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[Herzog] me olhou por um momento em silêncio, com o semblante de sabedoria severa que imaginamos em Martin Heidegger ou Mestre Eckhart, e, com uma voz sussurrante e ao mesmo tempo muito doce, uma voz absolutamente magnífica, disse, lembro-me exatamente de suas palavras: “I prefer we don´t talk about that. I know it´s bullshit. Let´s work” [em bom português: Prefiro não falar sobre isto. Eu sei que é uma baboseira. Vamos trabalhar].

Let´s work queria dizer: vamos à entrevista, já que não há outro jeito, faz parte das chateações inevitáveis, como os mosquitos na Amazônia. Eu estava tão tímido e estupefato que em vez de – em vez do quê? – de me levantar e ir embora? de socá-lo? qual era a reação apropriada? – coloquei o gravador para funcionar e fiz a primeira pergunta de minha lista. Ele respondeu, bem como às seguintes, de forma bastante profissional.

A descrição de Carrère, feita há mais de três décadas, é a mesma para o Werner Herzog que o repórter encontrou em 2019. Com seus 77 anos de idade, ele manteve o mesmo profissionalismo na hora de responder as perguntas, o mesmo semblante de sabedoria à la Heidegger e Mestre Eckhart e, sobretudo, o mesmo tom de voz absolutamente magnífica, a mesma voz sussurrante e, ao mesmo tempo, muito doce, a voz que marcou a narração em off de filmes que ampliariam a lenda ao redor de Herzog, nos anos seguintes aos feitos de Aguirre e Fitzcarraldo – entre eles, os documentários O Homem Urso (2005) e Into the abyss (2011) e as ficções Bad Lieutenant: Port of New Orleans (2009, com Nicolas Cage) e Queen of the Desert (2015, com Nicole Kidman e Robert Pattinson).

Portanto, a única coisa que o repórter tinha em mente era evitar a qualquer custo o que Carrère viveu em Cannes no distante ano de 1982. Em suma: não permitir que Herzog, sob hipótese nenhuma, dissesse que ali só havia bullshit. Assim, o repórter se aproximou do cineasta, que ainda estava com as mãos cobrindo o rosto. Apresentou-se e o cumprimentou, no que foi recebido com graça e suavidade. Contudo, os olhos meio cinza, meio azulados de Herzog fitaram o entorno e logo ele perguntou: “Onde está Bibi?”.

Imediatamente, o repórter se lembrou. Bibi era a cicerone do Fronteiras do Pensamento, o ciclo de eventos que trouxe especialmente Herzog ao Brasil no mês de setembro e que, de forma gentil, havia cedido ao jornalista apenas vinte minutos do tempo do convidado. Por algum motivo desconhecido – nervosismo, talvez? –, o repórter se desencontrou com ela e foi direto para o restaurante do hotel. Os olhos serenos, porém afiados de Herzog, logo deram o aviso: Não faço esta entrevista sem a apresentação formal de Bibi. Atrapalhado, o repórter não sabia o que fazer com sua mochila. Como se estivesse falando com um dos seus atores, Herzog apenas ordenou tranquilamente, apontando para uma cadeira: “Deixe sua mochila aqui e procure por ela”.

Bibi estava no saguão do hotel, esperando justamente pelo repórter. Foi um desencontro facilmente resolvido, sem nenhum problema. Ao voltar para o restaurante, ele percebeu que Herzog lia atentamente o cardápio do local. Sentou-se à mesa e disse:

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“Teremos uma breve conversa, só vinte minutos, mas espero que seja sobre alguns temas que vão além do cinema”.

Herzog estendeu o dedo indicador.

“Um momento, por favor. Preciso tomar um suco”, ele disse.

Rapidamente, o repórter chamou um garçom.

“Qual suco você tem?”

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De forma balbuciante, o garçom disse, em inglês, quais eram os sabores disponíveis: melancia (watermelon), abacaxi (pineapple), limão (lemon), etc. Herzog parecia não identificar qual era o verdadeiro suco que desejava entre todas aquelas opções.

Até que o repórter teve uma súbita iluminação: “E maracujá? Você quer maracujá, sr. Herzog?”

O cineasta sorriu, como se alguém finalmente o tivesse compreendido. Respondeu em português: “Sim, maracujá!”

Naquele momento, o repórter gostaria de ter o talento narrativo de um Emmanuel Carrère para descrever a ironia da situação: Werner Herzog, o homem que combateu a selva; o homem que impediu uma tribo indígena assassinar o seu ator principal, Klaus Kinski, durante as filmagens de Fitzcarraldo, simplesmente porque ele era um sujeito insuportável; o homem que já filmou vulcões e que já filmou poços de petróleo em pleno Kuwait, no meio da primeira Guerra do Golfo; o homem que entrevistou condenados à morte em prisões de segurança máxima nos EUA; este homem, sim, este homem – pensou o repórter – gostava de um singelo e tranquilizador suco de maracujá.

Como contrapartida, o repórter pensou que seria melhor pedir uma simples garrafa de água mineral para conduzir a conversa.

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“Bem, como eu disse antes, não quero falar muito sobre cinema, apesar da importância evidente dos seus filmes, mas sim sobre os dois livros que o senhor escreveu – dois livros que o senhor mesmo afirmou que eles seriam mais duradouros do que toda a sua filmografia”.

Herzog insinuou levantar uma pálpebra ligeiramente enrugada e que cobria o seu olho direito.

O repórter tirou então da sua mochila dois exemplares dos livros escritos pelo cineasta – no caso, o diário Caminhando no Gelo (1978), uma obra-prima que narra a peregrinação a pé feita por Herzog de Munique a Paris para impedir a morte iminente da crítica de cinema alemã Lotte Eisner (1896-1983), autora do clássico tratado A Tela Demoníaca; e o relato das conturbadas filmagens de Fitzcarraldo, Conquista do Inútil (2008), um magnífico testamento da resistência do espírito humano diante das adversidades.

Herzog pegou os dois livros e os olhou com atenção. Folheou algumas páginas. Sem precisar ouvir nenhuma outra pergunta, começou a falar, sem nenhuma hesitação:

“Sempre escrevi histórias e poemas. Mas o caso desses dois livros foi algo completamente além de ser uma obra pensada para publicação. Eu as escrevi porque tinha de relatar o que acontecia comigo. Redigi esses diários em cadernos pequenos, com uma letra minúscula, quase ilegível. No caso de Conquista do Inútil, foi minha esposa que me avisou: ‘você precisa publicar isto porque senão todos só saberão da versão da história pelos outros, e não a sua versão do que realmente aconteceu’”.

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“É interessante que o senhor falou de escrever esses livros em uma letra minúscula, ilegível. Isso me lembra um outro escritor de que o senhor gosta, Robert Walser. Ele era obcecado em caminhadas e também escrevia seus contos em letras minúsculas, que no futuro precisaram ser decifradas para depois ser publicadas”.

“Sim, gosto muito de Walser. Em Caminhando no Gelo, eu tinha uma ideia fixa: meti na cabeça que, se fizesse tal caminhada, Lotte Eisner não iria morrer. E, quando cheguei em Paris, ela de fato ainda estava viva – e viveria mais nove anos”.

“Neste livro, fica evidente que o senhor vê as caminhadas que fez na vida como uma espécie de peregrinação, e nelas há algo em outro poeta muito admirado indiretamente nos seus filmes, Friedrich Hölderlin, que adorava caminhar longas distâncias. A única diferença é que, nessas caminhadas, ele ficou louco, enquanto a caminhada que o senhor fez por Lotte foi uma espécie de redescoberta da sua liberdade interior”.

“Sim, sem dúvida. Mas houve também um fator de loucura ali, foi um empreendimento insano, afinal de contas. Andar de Munique a Paris é uma travessia e tanta”.

“Pode ter sido uma loucura, mas não é o que fica explícito no final de Caminhando no Gelo. Ali, lemos o que o sr. disse a Lotte quando chegou à casa dela: ‘Abra a janela, aprendi a voar’. Toda aquela narração minuciosa, na qual a natureza parece ser um espelho da sua alma, chega ao ápice naquela declaração”.

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O garçom chegou com o suco de maracujá, servido em um copo médio, e com a garrafa de água mineral, e assim serviu o repórter. Herzog pegou o exemplar de Caminhando no Gelo e foi direto para a última página do livro:

“Não é bem assim. Quando eu terminei a caminhada – e escrevia sobre ela ao mesmo tempo – era nítido que o meu alemão era um alemão quebrado, uma linguagem que não me pertencia mais, uma linguagem que não conseguia exprimir o que eu tinha vivido naquele período. A prova disso está na última entrada do diário. Eu digo o seguinte a Lotte [e aqui Herzog aponta o trecho com o indicador, levando o repórter a prestar atenção. Ele recita em um português igualmente claudicante]: ‘Naquele embaraço, uma palavra me atravessou o espírito, e como a situação por si já era estranha, eu a disse. Juntos, falei, vamos cozinhar um fogo e deter os peixes’. Ora, ninguém pode ‘deter’ os peixes, ninguém os para. Você não ‘pega’ um peixe. Você o pesca. A linguagem, aqui, está à beira do irracional”.

“Ainda assim, deve ter sido uma experiência transformadora”.

“Claro que foi. Tanto até que, nove anos depois, quando os médicos disseram que Lotte não tinha mais jeito, que estava para morrer, fui visitá-la novamente. Desta vez, ela me pediu que não fosse a pé e sim de trem. Chegando em sua casa, percebi que ela estava muito frágil, mas ainda lúcida. Conversamos longamente, e Lotte usava uma expressão bíblica para descrever sua situação. Ela me dizia: ‘estou saturada da vida’. Acho que foi uma expressão retirada da história de Noé. Enfim, Lotte não suportava mais viver. Não à toa que, no final da nossa conversa, ela me pediu que retirasse o feitiço que lhe dei ao fazer a caminhada nove anos antes. ‘Tire esse feitiço de mim e deixe-me morrer em paz, por favor’, ela insistiu. Fiz o que Lotte me pediu e soube, quando já estava em Munique, que ela tinha falecido uma semana após a minha visita”.

“Essa mesma experiência de extremos também está presente em Conquista do Inútil. Mas, tirando o fato de que se trata de um diário de um cineasta que tenta fazer o seu filme, ainda assim me parece ser mais um diário de um comandante que tenta vencer uma batalha com um exército todo destruído”.

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“E foi assim mesmo. Aquilo foi tão devastador para o meu espírito que só consegui ler os diários após quinze anos. E, ao publicá-los, tive que omitir um ano inteiro do meu relato porque foi algo que nem eu tive de coragem de relembrar”.

De novo, Herzog pega outro exemplar, desta vez o de Conquista do Inútil, e vai direto para um trecho onde se lê em itálico a confissão do cineasta de que ele praticamente omitiu, na publicação, a passagem do ano de 1979 para 1980. Novamente, ele o declama em seu português fragmentado:

“Oito meses apagados, como se eu não quisesse que tivessem existido. Um ano de catástrofes, do ponto de vista pessoal e do trabalho. O acampamento no rio Marañon, depois de abandonado, exceção feita ao posto médico, foi incendiado por aguarunas do conselho indígena. Fotógrafos da imprensa de Lima foram convidados a cobrir o acontecido. Criminalização da minha pessoa pela mídia – um tribunal grotesco contra mim na Alemanha. Mesmo assim, continuei o trabalho, sabendo, talvez apenas esperando, que o tempo consertaria as coisas, que os fatos, com o tempo, sobreviveriam a tudo isso. Preocupações financeiras. Eu estava tão por baixo que não tinha mais o que comer. Vendi dois vidros de xampu dos Estados Unidos na feira em Iquitos [Peru] para comprar quatro quilos de arroz; com eles, pude me alimentar durante três semanas. Minha filha nasceu; algo belo vai permanecer”.

“Sim, me lembro deste trecho”, disse o repórter. “É quando o senhor fala que está falido financeiramente e do nascimento da sua filha”.

Herzog insinua um sorriso:

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“Falido financeiramente é algo a que já estou acostumado”.

“Uma coisa que percebi nesses diários sobre o que aconteceu nas filmagens de Fitzcarraldo é que eles são semelhantes aos relatos de Júlio César no meio das duas guerras que lutou, a guerra contra Gália e a guerra civil em Roma”.

“São diferentes porque os livros de César eram anotações esparsas que depois ele tinha a intenção de reunir em algo mais acabado. Os meus diários não são relatos exatos do que aconteceu. São mais alucinações, sonhos que tive enquanto vivia esses momentos. Em Conquista do Inútil, o que temos ali são delírios de febre, sonhos que vi enquanto fazia o filme”.

“Aliás, logo no início do livro, o senhor abre com uma descrição da visão que o seguiu como um norte nas filmagens de Fitzcarraldo: ‘agarrei-me a uma visão, a imagem de um grande barco a vapor atravessando uma montanha – o barco na névoa sendo puxado, por si só, por uma roldana morro acima, dentro da selva, e atravessando uma natureza que aniquila igualmente os lamentosos e os fortes, voa alto a voz de Caruso, que emudece toda a dor e todos os ganidos dos animais da floresta e sobrepõe-se ao canto dos pássaros’. Não seria um exagero afirmar que toda a sua obra, literária e cinematográfica, é um esforço para transformar essa visão em uma realidade?”

“No caso de Fitzcarraldo, sim. Em outros filmes, há mais uma visão de mundo que os une, uma forma mais intelectual de ver o mundo, de ver a realidade”.

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“Essa visão de mundo não estaria fundamentada em uma espécie senso de dever?”

“Sim, sem dúvida. Eu preciso me comportar com esse senso de dever quando faço meu trabalho. Não é à toa que não me vejo como um cineasta. Eu me vejo como um soldado”.

“Um soldado do cinema?”

“Não, não, não. Um soldado da coragem mesmo.”

“Isto tem um pouco a ver com as leituras que o sr. indica aos seus alunos durante o curso de cinema que faz em Los Angeles, chamado Going Rogue [algo como “Quebrando a Lei”]. Numa lista, o senhor escreve que, toda vez que enfrenta uma filmagem atribulada, leva consigo dois livros: a tradução de Martinho Lutero para o Livro de Jó e um exemplar do relato da Segunda Guerra Púnica [ocorrida entre os anos 218-201 antes de Cristo], escrito pelo historiador romano Tito Lívio [que viveu entre os anos 64/59-12/17 a.C.]. Por que esses dois autores?”

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Herzog sorri novamente:

“Bem, Jó é para me consolar;. Já Lívio, é para me dar coragem, enfrentar as adversidades. A leitura da Segunda Guerra Púnica foi fundamental para moldar o meu caráter e influenciou muitas observações que você encontra em Conquista do Inútil, mais até do que Júlio César, como você observou”.

“O senhor se identifica com Jó?”

“Não, não me identifico. Identifico-me mais com o guerreiro Aníbal, o líder de Cartago enquanto combatia a República Romana. Ele era um exemplo de grande general, de grande estrategista. Era tão brilhante que precisou de outro grande estrategista, o general Fábio [Fabius Maximus], apelidado maliciosamente pelos seus oponentes de “o tímido”, porque preferia atrasar a batalha do que ir direto para o combate. Contudo, foi justamente essa estratégia que fez Roma vencer Aníbal, que foi perdendo a força com seu exército e foi obrigado a recuar. No final, foi Fábio, o “tímido”, que salvou o que conhecemos hoje como o Ocidente”.

“Este componente de épico, de guerra, me faz lembrar um dos seus filmes mais recentes, Queen of the Desert, com Nicole Kidman [como a exploradora inglesa Gertrude Bell] e Robert Pattinson, este no papel de Lawrence da Arábia. É impressão minha ou o senhor foi influenciado de alguma forma por David Lean [o diretor do clássico filme de 1962 sobre o famoso personagem britânico]?”

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Neste instante, Herzog se alterou um pouco e passou a usar aquele mesmo tom de voz absolutamente magnifico, sussurrante e ameaçador descrito por Emmanuel Carrère em Limonov:

“Não, não, não. Em hipótese nenhuma! Lawrence da Arábia é um filme horrível, um dos piores já feitos na história do cinema”.

Surpreso, o repórter perguntou uma simples questão. Ele não quis dizer, mas David Lean era um dos seus diretores favoritos e, segundo a sua visão de cinéfilo míope, Lawrence da Arábia era o filme mais perfeito que já foi feito. Logo, o que lhe restou a dizer foi:

“Por quê?”

“Porque é um filme incrivelmente condescendente com os árabes. E as interpretações são igualmente horrendas”.

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Foi então que Herzog passou as mãos no rosto da mesma maneira perturbadora que o repórter o viu pela primeira vez quando entrou no restaurante do hotel. Ele queria se lembrar de alguma coisa que a memória fazia questão de não entregar como lhe foi pedido. Tudo levava a crer que o suco de maracujá não provocara o efeito necessário para acalmá-lo.

“As interpretações, ah, elas são absolutamente horríveis...”

O repórter insistiu:

“Mas quais? Anthony Quinn?”

“Não, não...” – as mãos continuavam a passar pelas maçãs do rosto.

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“Omar Shariff?”

“Não!”

“Peter O´Toole?”

“Não!”

“Quem então?”

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“Aquele inglês...”

“Alec Guinness?”

“Sim! Isso! Alec Guinness! Absolutamente horrível”.

Como se ninguém esperasse pelo o que iria acontecer, o repórter se surpreendeu quando Werner Herzog pegou no seu braço e disse, com aquela voz absolutamente magnífica:

“Vá para a sua casa agora, vá. Reveja o filme e me diga se não estou certo. Apenas faça isso! Apenas faça, apenas faça”.

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Foi a partir daí que o repórter aproveitou o momento e deu o arremate final:

“O seu filme, Queen of the Desert, não foi muito bem recebido pelos críticos na época do lançamento”.

“Eu não estou nem aí para o que os críticos falam a meu respeito. Eu apenas faço o meu trabalho. E continuo a trabalhar. Neste ano, já fiz três filmes: um de ficção, Family Romance LLC, que fiz no Japão e, durante três meses, não entendia nada do que eles me falavam, mas acho que me saí bem na empreitada; e dois documentários, Meeting Gorbachov, sobre o presidente da União Soviética, e Nomad: in the footsteps of Bruce Chatwin, o grande escritor de viagens que também foi meu amigo pessoal”.

“Foram filmagens mais simples ou mais difíceis?”

“Qualquer filmagem é difícil, não há nenhuma fácil. Quem pensa isso não sabe o que é o verdadeiro cinema”.

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“A visão de se viver no meio de uma vastidão, seja a floresta, seja o deserto, é um tema recorrente nos seus filmes...”, continuou o repórter.

“Apenas cinco ou seis filmes meus lidam com este tema da natureza. Outros filmes não lidam com isto. Veja Bad Lieutenant, que fiz com Nicolas Cage, ou o mais recente, Family Romance LLC, que se passa no meio dos prédios de Tóquio...”.

“Mas não se trata de uma vastidão exterior. Falo de uma vastidão interior, de algo que existe no coração dos seus personagens”.

“Pode ser, é verdade. Nunca tinha pensado sobre isso”, disse Herzog, pensativo.

De repente, Bibi, a gentil cicerone do Fronteiras do Pensamento, se aproximou da mesa e avisou que acabara o tempo da conversa.

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Herzog pagou a conta da mesa e disse ao repórter para não se preocupar com o custo da água mineral. Sua assinatura no papel – pequena, minuciosa, a lá Robert Walser, como deveria ter sido a sua caligrafia quando escreveu os seus livros – foi a mesma com a qual autografou os livros do jornalista, num pedido atendido prontamente.

Ao se levantar, o cineasta comentou com o repórter, à guisa de conclusão:

“É interessante você ter falado dos meus livros. Sabia que, na Argentina, fizeram um colóquio sobre eles?”

(Enquanto caminhavam juntos até a saída do restaurante, o repórter reparou que Herzog usava sapatos semelhantes a botas – sem dúvida, calçados que seriam úteis para fazer uma caminhada a qualquer momento, independente do lugar onde ele se encontrava.)

“Não, não sabia”.

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“Fizeram sobre o Caminhando no Gelo e sobre um livro de entrevistas que fiz...”

A Guide to the Perplexed. Eu também tenho o livro e já o li. Mas é grande demais para caber na mala [o livro em questão tem mais de seiscentas páginas]”.

E assim Werner Herzog sorriu novamente, viu que isto era bom, despediu-se do repórter e, em nenhum momento, graças ao bom Deus, ele disse com seu tom de voz absolutamente magnífico que aquela conversa tinha sido repleta de bullshit.

Quando chegou em casa, o repórter fez exatamente o que o diretor de Fitzcarraldo lhe pediu: reviu Lawrence da Arábia, de David Lean.

Terminada a sessão, continuou sendo o filme mais perfeito já feito na história do cinema.

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Martim Vasques da Cunha é autor de Crise e Utopia – O Dilema de Thomas More (2012) e A Poeira da Glória (2015).