Há poucas dúvidas de que a China tem adotado uma política abertamente expansionista: o aumento do cerco a Hong Kong, a perseguição à minoria uigur, a censura da internet e as incursões na fronteira com a Índia são alguns dos sinais de que o país comunista pretende construir um novo modelo de superpotência global. Outro indício das ambições chinesas está no mundo do entretenimento. Ainda pouco conhecidos fora da China, mas imbatíveis nas bilheterias do país mais populoso do mundo, os filmes Wolf Warrior [Lobo Guerreiro] I e II também desnudam as ambições geopolíticas do regime de Pequim.
Nenhum filme se torna blockbuster na China, país onde até o Google é censurado, sem passar pela rigorosa censura comunista. Wolf Warrior já deixa claro, nos créditos iniciais, que foi produzido com o apoio de órgãos públicos chineses. Por isso, o filme deve ser visto como uma amostra das aspirações de Pequim.
Lançado em 2015, o primeiro Wolf Warrior gira em torno de uma operação de militares chineses contra um grupo de mercenários americanos contratado por um mafioso local. Em uma só tacada, o roteiro espinafra os “traidores” da China e os ocidentais movidos apenas pelo dinheiro.
Em alguns aspectos, o filme se equipara a uma obra de Holywood: tem a qualidade das filmagens, as cenas grandiosas e o ritmo acelerado dos filmes de ação americanos. Mas bastam alguns minutos de atenção para que o espectador perceba estar diante de um filme mal roteirizado, repleto de cenas com humor involuntário. Há diálogos ingênuos, personagens rasos e combates absolutamente surreais, como se as leis da física não tivessem qualquer validade na Ásia. Uma coisa é constante no enredo: a firmeza e correção dos militares chineses, equipados com um arsenal de ponta.
O herói de Wolf Warrior, Leng Feng, tem uma habilidade única para correr no meio do fogo inimigo sem ser atingido e, ao mesmo tempo, matar dezenas de adversários com um punhado de tiros certeiros e golpes de arma branca. O filme mostra, aliás, um número tão grande de mortes que o departamento de recursos humanos deve ter tido um grande trabalho recrutando figurantes.
Blockbuster chinês
A sequência de Wolf Warrior foi ainda mais bem-sucedida: lançado em 2017, Wolf Warrior 2 se tornou a maior bilheteria da história do país mais populoso do mundo, derrotando as megaproduções de Holywood. A obra, com algumas melhorias técnicas em relação ao filme anterior, continua repleta de cenas inverossímeis - a começar pela sequência inicial, quando o fabuloso Leng Feng aplica golpes de artes marciais debaixo d'água em alto mar.
O segundo filme deixa ainda mais claras as intenções propagandísticas. A ditadura chinesa, que tem investido pesado na África e possui no continente um alvo preferencial, é retratada como um aliado confiável e benevolente, capaz de enfrentar grupos rebeldes que - surpresa! - se aliaram a cruéis mercenários americanos.
No conto de fadas, a China abre as portas de sua embaixada para proteger famílias africanas. "Nós somos chineses. A China e a África são amigas", diz um dos diplomatas. Mais explosões, tiroteios sem fim, figurantes com poucos segundos de aparição em tela. Ao fim, a China salva o país e ainda produz um medicamento inovador capaz de curar uma doença mortal. Tudo em parceria com a ONU (ao contrário, presume-se, do que fariam os americanos).
Nos dois filmes, aliás, os Estados Unidos como nação não são mencionados. Não há América, apenas americanos, e eles são todos violentos, preconceituosos e amorais. No primeiro filme, o vilão faz troça do herói chinês. "Você quer morrer pelo seu país? Não faz qualquer diferença. Sabe pelo que eu luto? Dinheiro", diz ele, esfregando o dedo polegar com o indicador (o americano, ironicamente, é interpretado por um ator britânico que não consegue esconder o sotaque).
No segundo filme, o novo vilão ianque parece não ter aprendido nada com o antecessor. "Pessoas como você vão ser sempre inferiores a pessoas como eu. Acostume-se com isso", diz o americano, intercalando um palavrão que tanto em inglês quanto em português começa pela letra f.
Diplomacia do Lobo
Wolf Warrior pode até servir de entretenimento para quem aprecia os filmes de ação menos realistas dos anos 80. Mas serve sobretudo como uma lição sobre a visão geopolítica da China.
O termo “Wolf War Diplomacy”, aliás tem sido usado para descrever a política mais agressiva da China no cenário internacional. Mesmo o corpo diplomático do país asiático, historicamente mais comedido, tem mudado de postura. Não foi por acaso que, em março, o embaixador chinês no Brasil comprou briga com Eduardo Bolsonaro no Twitter e acusou o filho do presidente de ter contraído um "vírus mental", adotando um vocabulário incomum para diplomatas.
Como um personagem de Wolf Warrior, o embaixador Yan Wanming lançou uma declaração dramática ao fim do episódio: "A história nos ensina que quem insiste em atacar e humilhar o povo chinês acaba sempre dando um tiro no seu próprio pé". Também recentemente, a representação chinesa no Brasil teve a audácia de enviar uma carta à Câmara dos Deputados pedindo que os parlamentares brasileiros não celebrassem a eleição da nova líder do território de Taiwan, que tem certa autonomia em relação ao governo central.
Produtos como Wolf Warrior tem como objetivo vender a imagem de que a China é uma potência militar de primeira grandeza, pronta para liderar o mundo. Mas, por ora, o efeito é dúbio: apesar das bilheterias gigantescas, os filmes fizeram sucesso apenas na China e em comunidades chinesas de outros países. E, se os comunistas chineses forem tão hábeis em sua estratégia geopolítica quanto o são para fazer cinema, Donald Trump pode dormir tranquilo.