Nos últimos 20 anos, era impossível falar nos filmes de Woody Allen sem que alguém mencionasse que o diretor foi acusado de molestar sexualmente a filha, Dylan, que adotou com a atriz Mia Farrow. Tampouco era impossível citá-lo sem que alguém complementasse que, não satisfeito, Allen se casou com outra filha adotiva de Mia, Soon Yi. Aos poucos, em parte por causa disso e em parte por causa do envelhecimento natural do seu humor, Woody Allen caiu numa espécie de limbo.
Nem sempre foi assim. As gerações mais jovens, acostumadas ao humor muito mais rápido, ácido e baseado nas experiências cotidianas das sitcoms e dos espetáculos de stand-up, talvez não saibam, mas o humor de Woody Allen, baseado primeiramente em piadas físicas, com forte inspiração dos irmãos Marx, e, depois, em piadas cheias de referências filosóficas e literárias, foi reverenciado durante boa parte do século XX.
Com uma persona muito característica, marcada pelo gaguejar neurótico, pelo físico mirrado e pelos inconfundíveis óculos de aros pretos, Woody Allen talvez tenha sido o primeiro humorista a ser reconhecido como intelectual, como um palhaço cujos tropeços no picadeiro faziam as pessoas pensarem, e não apenas rirem.
Maneirismos cômicos
Aos 84 anos de idade, eis que o discreto Woody Allen, sempre avesso a holofotes que não os de seus próprios filmes, decidiu finalmente escrever um livro de memórias. Era para ser o lançamento do ano e talvez até do século. Não só por causa dos escândalos, mas sobretudo porque Woody Allen é também um dos sobreviventes de uma época em que o cinema fazia parte do debate público.
Não que os progressistas se importem muito com a história. E, neste caso, vale notar que estamos falando da história recente de um artista com uma ligação forte com o progressismo. Woody Allen caiu em desgraça justamente entre aqueles que antes consumiam e discutiam seus filmes em cineclubes e centros acadêmicos. E nada parece capaz de fazê-los mudarem de ideia. Muito menos um livro de memórias.
Por isso Apropos of Nothing [A propósito de nada] foi lançado em meio a uma campanha para silenciar Woody Allen. A prestigiada editora Hachette, que comprou os direitos da obra, acabou desistindo de publicá-la depois que os funcionários da casa editorial famosa por publicar autores progressistas como Malala e David Sedaris, supostamente incitados pelo filho de Allen, o “príncipe” Ronan Farrow, fizeram um protesto qualquer. Assim, o livro acabou lançado pela modesta Arcade, de linha mais conservadora, mas comprometida com a liberdade de expressão.
O livro, como era de se esperar, é um primor estilístico. Sobretudo na primeira parte, em que fala da infância e do começo da carreira, Woody Allen faz uso de todo o seu talento como contador de histórias para nos transportar a um tempo mais simples e colorido e menos ruidoso. E, para tanto, recorre, na primeira parte da narrativa, a uma nostalgia desprovida de ressentimento. Para quem conhece os anos 1940 e 1950 retratados pelo autor em muitos de seus filmes, o texto é ainda mais exuberante.
O problema é que a exuberância estilística que fascina o leitor ao longo das primeiras cem páginas aos poucos dá lugar a maneirismos cômicos. Isto é, a gente começa a ler o parágrafo esperando pelo desfecho engraçado no final. E as piadas de Woody Allen giram em torno de duas estratégias alternadas: a reversão de expectativa, na qual o leitor, acompanhando o raciocínio do autor, é surpreendido com um desfecho absurdo, e o exagero, na qual o autor simplesmente brinca com a proporção das coisas.
Woody Allen recorre a essas estratégias o tempo todo. Nos primeiros parágrafos, é bom. É ótimo. Como quando ele, falando do relacionamento entre seus pais, diz “como ele [seu pai] foi ficar com Nettie [sua mãe] é um mistério comparável à matéria negra”. Adiante, Allen escreve: “Algumas pessoas veem o copo meio cheio, algumas o copo meio vazio. Eu sempre vi o caixão meio cheio”. Hipérbole e inversão de expectativa, inversão de expectativa e hipérbole. Por quase todas as 400 páginas. Chega uma hora que cansa.
Banquete de tititi
Mas a quem é que estamos enganando, não é mesmo? Apropos of Nothing não é um livro de memórias de um grande diretor de cinema. É basicamente um livro de fofocas – uma versão sem fotos da Contigo!. E Woody Allen sabe disso. Desde as primeiras páginas, aliás, ele avisa ao leitor que logo vai chegar a hora de falar de Mia Farrow, da acusação, de Soon Yi e de todas essas coisas que fazem a alegria dos leitores interessados na vida íntima das celebridades. Com alguma melancolia e uma boa dose de cinismo, já na primeira menção ao caso Allen diz “espero que esse [o escândalo todo] não tenha sido o motivo para você comprar esse livro”. Foi. Ele sabe e nós também.
E, para quem se deleita com essas coisas, Woody Allen oferece um verdadeiro banquete de tititi. Ele se alonga por intermináveis parágrafos, por exemplo, para explicar como seu relacionamento com Mia Farrow, ao contrário dos relacionamentos anteriores, foi desde o princípio uma coisa distante, protocolar, burocrática. Não havia ali nada remotamente parecido com o amor ou a paixão que Allen viveu em seus relacionamentos anteriores. Pelo menos é assim que ele nos faz crer.
Mia Farrow, então já atriz de sucesso e ex-mulher do grande compositor André Previn e de ninguém menos do que Frank Sinatra, começou a se aproximar de Woody Allen, dando a entender que nutria por ele mais do que uma estima de fã. Ele a princípio ignora, mas aos poucos vai cedendo aos encantos dela. E pronto: assim sem qualquer encanto, sem nenhuma das cores, nuances e ambiguidades que tanto marcam os melhores filmes do diretor, sem nem ao menos aquele jazzinho para passar uma impressão de sofisticação, Woody Allen estabelece a premissa de que Mia Farrow é uma vilã e ele é a vítima cujo único pecado foi a própria ingenuidade.
E poucas vezes na história da literatura contemporânea encontrei uma vilã pintada com tintas tão pesadas. A Mia Farrow retratada por Woody Allen é o demônio em pessoa. Manipuladora, amarga, vingativa, ardilosa, agressiva e fria. Uma mulher que adotou crianças ao redor do mundo só para ganhar as manchetes dos jornais. Uma mulher com uma relação absurdamente patológica com os filhos homens – a ponto de dormir nua com um deles até a adolescência.
É essa a mulher com quem Woody Allen se deixou envolver e teve uma relação de 13 anos (sem nunca ter se casado nem morado junto). Parece inacreditável – e é – que uma pessoa se deixe enganar durante tanto tempo.
Por outro lado, Soon Yi, o pivô de toda a história, é retratada no melhor tom possível. E com uma pitada mais do que generosa de breguice. Só faltou um “Soon Yi é raio, estrela e luar” para a coisa ficar completa. A filha de Mia Farrow teve um passado sofrido nas ruas da Coreia do Sul e depois um passado mais sofrido ainda nas mãos da atriz que a trata, na melhor das hipóteses, como uma incapaz. Mas encontra a redenção no relacionamento com Woody Allen.
No meio dessa rixa amorosa cujo caráter semi-incestuoso é impossível ignorar, por mais que Woody Allen deixe claro que Soon Yi nunca foi sua filha e que quando eles começaram a se relacionar ela era maior de idade, está a acusação de que Woody Allen teria molestado sexualmente a filha Dylan, então com sete anos. Allen foi investigado e o caso não virou nem acusação formal.
Não, Woody Allen não molestou a filha. Isso é um fato. O problema é que celebridades vivem em outro mundo, num mundo onde a honra não lhes pertence. Então o estrago está feito. Apesar da inocência formal, pairará sobre o nome de Woody Allen eternamente essa mácula. Ele sabe disso, apesar de várias vezes no livro dizer que despreza a opinião alheia. Por isso mesmo Apropos of Nothing é, sim, um livro escrito a propósito de alguma coisa. No caso, o propósito de se defender e, com alguma sorte, criar uma nova narrativa na qual os fatos tenham mais importância, no imaginário do público, do que o escândalo.
Sorte, modéstia e frivolidades
O que salta aos olhos no livro de memórias de Woody Allen, contudo, é seu descaso para com a vida e tudo o que a cerca. Nas primeiras páginas de Apropos of Nothing o leitor até é levado a crer que estará diante de um daqueles seres capazes de ver a existência por um prisma diferente, muito mais colorido e interessante. Mas o livro fica só na promessa, sobretudo depois que Mia Farrow e o escândalo dos escândalos entram em cena.
Uma das marcas de Woody Allen em seu livro de memórias é a visão profundamente fatalista que ele tem da própria existência. Tudo é uma questão de sorte ou azar, não de competência. Essa visão já estava presente em seus filmes Crimes e Pecados e Match Point. Mas é decepcionante perceber que o niilismo do qual aprendemos a rir no cinema é, para o cineasta, uma forma de encarar o mundo.
Por se achar produto do acaso afortunado, Woody Allen é extremamente modesto ao longo de todo o seu livro de memórias. Mas é uma modéstia que não convence. Não sou gênio, repete ele umas duzentas vezes. Não sou intelectual, repete ele outras trezentas. Para, logo em seguida, enumerar todas as realizações artísticas de seus 84 anos de vida.
Um dos exemplos mais marcantes disso é a relação de Woody Allen com o famigerado Oscar. Logo que ele é premiado com as primeiras estatuetas, seu tom é de desprezo por todo o circo hollywoodiano. Não sem razão, ele diz que:
Não gosto da ideia de premiar produtos artísticos. Eles não são criados para competirem; eles são feitos para satisfazer um pendor artístico e, com sorte, entreter. Não me interesso pelo veredito de um grupo quanto ao melhor filme, melhor livro ou o melhor jorador do ano.
Mas, ao longo das páginas seguintes, Woody Allen se contradiz, usando a chancela do Oscar o tempo todo para dizer que tal ator ou tal atriz é fenomenal, brilhante, excelente e sei lá mais o quê. Aliás, chama a atenção o completo desinteresse de Allen pelas pessoas que o cercam. Todas as pessoas citadas no livro de memórias são personagens bidimensionais, quando muito. A maioria não passa mesmo é de um nome reconhecível. Até mesmo Mia Farrow é pintada sem nenhuma ambiguidade, como se fosse apenas uma vilã de melodrama.
E, como num filme ruim, os personagens mais interessantes, com mais potencial, entram e saem de cena sem contribuir muito para o roteiro. A irmã de Woody Allen, por exemplo, surge no começo, desaparece por cinquenta anos e vai ressurgir só no fim, como um adereço numa festa de casamento.
A falsa modéstia, contudo, não impede Woody Allen de dar sermões. Me chamaram a atenção dois. No primeiro, citando o filme que fez com Larry David, Tudo Pode Dar Certo, Woody Allen aproveita para fazer uma crítica ao humor contemporâneo, marcado pelas piadas rápidas e por uma abundância de palavrões.
(...) As únicas críticas que tenho é que, primeiro, muitos [comediantes de stand up] são gratuitamente sujos. Perceba que estou dizendo gratuitamente. Não me importo com palavrões quando eles contribuem para a piada, mas, desde que a linguagem se tornou mais livre, nos anos 1960, é constrangedor ouvir comediantes pontuando suas piadas com velhos palavrões. Aparentemente os humoristas acreditam que isso lhes dá uma quê de contemporaneidade e mordacidade, de ousadia ou liberdade, quando na verdade eles poderiam contar as mesmas piadas e falar com simplicidade, sem se dar ao trabalho de tentar alcançar o que eles acham que os palavrões alcançam por eles.
No segundo, Woody Allen repreende o seu jornal do coração, o New York Times, por ter assumido outro lado que não o seu na disputa com Mia Farrow. Allen chega até a falar que o jornal “sempre esteve do lado certo da história” – o que, convenhamos, é bastante constrangedor.
E por aí vai. Até a última página, a impressão que se tem é a de estar diante das memórias de um senhor de 84 anos que, desde a infância, aprendeu a ser amado e admirado apenas quando interpretava seu personagem mais famoso (o neurótico urbano cheio de nostalgia e metafísica), a ponto de não conseguir se desvencilhar dele nunca.
Em Apropos of Nothing sobram fofocas e frivolidades, mas falta a sinceridade de quem deve saber ou até desconfiar que a vida é muito mais do que uma questão de sorte no cinema e azar na vida conjugal.
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