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Ensaio

Yascha Mounk e o populismo contra a democracia

Cientista político alemão Yascha Mounk tenta entender a democracia sob a ótica do populismo.
Cientista político alemão Yascha Mounk tenta entender a democracia sob a ótica do populismo. (Foto: Pixabay)

O Povo Contra a Democracia – Por que nossa liberdade corre perigo e como salvá-la, livro-sensação do cientista político alemão Yascha Mounk lançado lá fora em 2018 e publicado recentemente no Brasil, é mais um produto feito a toque de caixa para que o cidadão médio entenda quais foram os verdadeiros motivos das eleições de Donald Trump e Jair Bolsonaro. Inclua neste pacote o referendo do Brexit e o que você tem, na prática, é uma dissertação razoavelmente bem argumentada sobre o fato de que, se estamos nessa situação complicada em termos políticos, é porque a culpa recai sobre esse monstro informe que insistimos chamar de “populismo”.

A tese principal de Mounk é que assistimos à ascensão da democracia iliberal. O termo é de ninguém menos que Victor Órban, o famigerado primeiro-ministro da Hungria, acusado de ser o inimigo mortal de ninguém menos que George Soros – e sintetiza dois acontecimentos aparentemente distintos. Segundo Mounk,

por um lado, as preferências do povo são cada vez mais iliberais: os eleitores estão cada vez mais impacientes com as instituições independentes e cada vez menos dispostos a tolerar os direitos de minorias étnicas e religiosas. Por outro lado, as elites vêm assumindo o controle do sistema político e tornando-o cada vez mais insensível: os poderosos estão cada vez menos dispostos a ceder às opiniões do povo. Como resultado, liberalismo e democracia, os dois elementos centrais do nosso sistema político, começam a entrar em conflito.

Só por esse trecho, percebemos que Mounk acredita que a democracia e o liberalismo são inseparáveis, mesmo ressaltando o tempo todo que ele também sabe que, na prática, um poderia ser observado isoladamente do outro. Afinal, a democracia ateniense, por exemplo, ficou famosa porque não hesitava em exilar estadistas impopulares, executar filósofos críticos (como um tal de Sócrates) e censurar desde discursos políticos a partituras musicais. Em seu papel de cientista político, ele reconhece que os direitos individuais e a vontade popular dificilmente andam de mãos dadas, mas, na prática, ele continua a crer que, quando ambos caminham lado a lado, “eles formam um amálgama particularmente estável, resiliente e coerente”.

Essa seria a meta de uma democracia realmente liberal, algo completamente oposto ao que pessoas como Órban, Steve Bannon, Jair Bolsonaro e outros acreditam ser defendido neste “novo tempo do mundo”. Na cabeça deles, presume-se ser um outro tipo de política – denominada por muitos de “populismo nacionalista” (aliás, título de um outro livro recentemente lançado, escrito por Roger Eatwell e Matthew Goodwin, e que aborda um argumento semelhante ao de Mounk).

Contudo, o que seria a tal da democracia liberal defendida com tanto ardor em O Povo Contra a Democracia? Mounk parte de três definições bem simples: a primeira é que a democracia seria “um conjunto de instituições eleitorais com poder de lei que traduz as opiniões do povo em políticas públicas”. A segunda é que, segundo essa perspectiva, “as instituições liberais efetivamente protegem o Estado de direito e garantem os direitos individuais – como a liberdade de expressão, de religião, de imprensa e de associação – para todos os seus cidadãos (incluindo as minorias étnicas e religiosas). E a terceira é que, com a fusão dessas características, a “democracia liberal é simplesmente um sistema político ao mesmo tempo liberal e democrático – um sistema que tanto protege os direitos individuais como traduz a opinião popular em políticas públicas”.

Há só um problema nessa definição tripartite: esse tipo de democracia existe apenas em um mundo onde o liberalismo deveria ser a única ideologia política dominante. Isto implica em dizer que a primeira coisa que será sacrificada é justamente o pluralismo e a tolerância que ele tanto defende, mesmo que seja de forma branda. Mas o que vimos desde 2016 é que o liberalismo está cada vez mais agonizante no mundo político em termos de pensamento – e, sobretudo, em termos de imaginação, se usarmos o termo aplicado por Lionel Trilling.

Por isso o temor e o tremor de especialistas como Yascha Mounk a respeito do populismo. Trata-se de uma tradição subterrânea, convenientemente sufocada pelo liberalismo no transcorrer da história moderna e que mostra que a natureza humana não é assim tão liberal. Ou seja, pouco importa o livre mercado, a tolerância, o pluralismo, o relativismo cultural e a diversidade de gêneros. Em alguns momentos, o ser humano não quer saber de liberdade. Ele quer ser, simplesmente, um gado a mais no rebanho.

Mas será que o populismo é isso mesmo? Mounk tenta defini-lo como uma “reivindicação exclusiva do povo – e é essa relutância em tolerar a oposição ou respeitar a necessidade de instituições independentes que com tamanha frequência põe os populistas em rota de colisão direta com a democracia liberal”. Portanto, é nítido que, para o democrata liberal, o populismo é o novo bode expiatório, o principal responsável pela desintegração democrática – a qual, como se não bastasse, cria esse estranho paradoxo: a descoberta de que a democracia tem um conteúdo iliberal. De acordo com Mounk:

Isso tende a acontecer particularmente em lugares onde a maioria opta por subordinar as instituições independentes aos caprichos do executivo ou por restringir os direitos das minorias que a desagradam. Por sua vez, regimes liberais podem ser antidemocráticos, a despeito de contarem com eleições regulares e competitivas. Isso tende a acontecer sobretudo em lugares onde o sistema político favorece de tal forma a elite que as eleições raramente servem para traduzir a opinião popular em políticas públicas.

[...] O liberalismo e a democracia, afirmo, permaneceram colados graças a uma série contingente de precondições tecnológicas, econômicas e culturais. A cola está rapidamente perdendo aderência. Em função disso, a democracia liberal – essa mistura única de direitos individuais e soberania popular que há muito caracteriza a maioria dos governos na América do Norte e na Europa Ocidental – está se desmanchando. Em sua esteira, duas novas formas de regime ganham projeção: a democracia iliberal, ou democracia sem direitos, e o liberalismo antidemocrático, ou direitos sem democracia.

Agora, por trás dessa discussão, surge a pergunta definitiva – e essencial: O que é o povo? Seria ele uma massa amorfa? Seria o populacho, a ralé, o homem-massa descrito por Ortega y Gasset? Ou estamos a falar de uma representação de algo abstrato e que, com o passar do tempo, foi esquecida concretamente na forma como foi desenvolvido o processo político? Os liberais como Mounk são da primeira opinião; já a segunda opinião praticamente não é divulgada – pelo simples motivo de que a casta intelectual do Ocidente, fascinada pela “revolução permanente” típica de quem vive na imaginação liberal, sequer sabe realmente o que é o populismo.

Mesmo assim, Mounk persiste na sua defesa da conexão do liberalismo com a democracia. Ele faz parte daquele grupo da intelligentsia o qual tem uma certeza arraigada em seu coração de que essa abstração maléfica – o povo – é incapaz de fazer escolhas complexas, muito menos de escolher de forma razoável, racional e harmoniosa com o bom senso. Para isso, existem os intelectuais, que guiarão esses pobres-diabos para a opção correta, uma opção que, a longo prazo, se revelará catastrófica para o tecido social, uma vez que é completamente descolada da realidade concreta.

Com isto em mente, o jovem analista alemão começa a diagnosticar quais seriam as origens da crise da democracia liberal e os remédios para impedir a desintegração desse sistema tão idolatrado pelo seu “círculo de sábios”. Em relação ao primeiro grupo, ele escreve que a revolução cognitiva provocada pelas mídias sociais democratizou o conhecimento e a informação, mas, ao mesmo tempo, ampliou a intolerância, a polarização e a rivalidades políticas. Depois, ocorreu a instabilidade econômica dos Estados-Nações, que foram incapazes de permitir que o cidadão comum conseguisse imaginar ou sequer pensar em um futuro para si mesmo e o resto da sua família. Por último, a insurgência de um sentimento de pertencimento, no qual o desejo de se amalgamar em uma identidade nacional culminou naquele outro fenômeno aberrante chamado “nacionalismo”. Isso fomentou uma cultura do ressentimento prestes a explodir em duas alternativas terríveis: ou na eleição de um político responsável por instaurar a tal da “democracia iliberal” ou no advento de uma revolução popular que destruiria por completo as bases do status quo.

Sobre os remédios, Mounk deixa de lado um pouco o seu realismo e se permite ficar à deriva em algumas especulações utópicas. Na ordem inversa em relação à exposição do conjunto de origens do impasse democrático-liberal, ele elaborou novas formas de domesticar o nacionalismo, fortalecendo não só os Estados-Nações, mas principalmente as organizações supranacionais, como ONU, OTAM e, claro, a União Europeia, que farão de tudo para equilibrar a instabilidade econômica que não permite que o cidadão vislumbre um futuro digno para os seus. A convergência disso seria a “restauração da fé cívica”, uma expressão bonita, sem dúvida, mas absolutamente descolada do que acontece no cotidiano, uma vez que o “povo” busca outros elementos para sedimentar uma fé que jamais será encontrada na política pragmática.

Eis aqui o verdadeiro ponto cego no argumento de Mounk. Antes de qualquer coisa, ele é incapaz de admitir para si mesmo (e, portanto, para o leitor) que a sua visão sobre a democracia só pode ser verdadeira se esta última for vista como se fosse um “deus”. Contudo, como bem percebeu o alemão Hans Hermann-Hoppe (de resto, um autor com vários problemas teóricos), a democracia é um “deus que morreu”, já que os supostos anos de progresso tecnológico nos séculos XIX e XX só confirmaram que a extinção humana pode ser a única saída possível para todos nós. Neste aspecto, a democracia é somente um sistema político, jamais uma panaceia. Porém, Mounk insiste na sua idolatria – e mais: resolve analisar o fenômeno do populismo como se fosse um único amálgama, sem atentar para as circunstâncias históricas e sociais de cada país que o escolheu como uma alternativa verdadeira e eficaz.

O fato é que existem diversos populismos – e nem todos parecem ser necessariamente ruins. Eles atendem a uma demanda legítima da sociedade civil a respeito de como a elite política se comportou nos últimos anos – no caso, completamente isolada das exigências reais do cotidiano da sociedade civil, com suas dívidas, contas a pagar e impostos exorbitantes. Mounk também ressalta essa distinção, mas logo depois a coloca para debaixo do tapete, como se não fosse nada mais. O problema é que esse esclarecimento é essencial para que o debate público em torno da “democracia iliberal” seja bem-sucedido.

Sendo assim, precisamos ultrapassar os conceitos equivocados de O Povo Contra a Democracia e entendermos dois aspectos que ainda não foram divulgados pelos especialistas na análise política. O primeiro é que, antes de falarmos de “populismo”, de “democracia”, de “liberalismo”, precisamos entender que há um novo tipo de poder – um “poder inteligente”, de acordo com outro autor do momento (e mais perspicaz do que Mounk), o coreano Byung-Chul Han.

No livro Psicopolítica, ele afirma que, apesar do poder ter formas de manifestação bem diferentes, a que se exibe nos nossos dias não é a mais direta e imediata – e que seria a negação da liberdade, cuja forma principal é permitir que os poderosos imponham a sua vontade por meio da violência e contra a vontade daqueles submetidos ao poder. Não, o que temos é um outro tipo de poder – cujo efeito “está precisamente onde não é posto em evidência. Quanto maior é o poder, mais silenciosamente atua. Ele se dá sem ter que apontar ruidosamente para si mesmo”.

Esse “poder inteligente” não se opõe à liberdade. Segundo Han, ele pode até mesmo usá-la em seu benefício. É um poder tão “amigável” que evita agir

frontalmente contra a vontade dos sujeitos subjugados, controlando suas vontades em seu próprio benefício. É mais afirmador que negador, mais sedutor que repressor. Ele se esforça em produzir emoções positivas e explorá-las. Seduz, em vez de proibir. Em vez de ir contra o sujeito, vai ao seu encontro.

O poder inteligente se plasma à psique, em vez de discipliná-la e submetê-la a coações e proibições. Não nos impõe nenhum silêncio. Ao contrário, ele nos convida a compartilhar incessantemente, participando, dando opiniões, comunicando necessidades, desejos e preferências, contando sobre nossa própria vida. Esse poder afável é, por assim dizer, mais poderoso do que o repressor. Ele escapa a toda essa visibilidade. A atual crise da liberdade consiste em estar diante de uma técnica de poder que não rejeita ou oprime a liberdade, mas a explora. A livre escolha é extinta em prol de uma livre seleção entre as ofertas disponíveis.

O signo onipresente do “poder inteligente” é o curtir. A cada clique no botão do curtir ou do coraçãozinho, nos deixamos submeter a uma dominação que está fora dos horizontes de Mounk. O cientista político alemão não percebe (ou não quer perceber) que a democracia não é apenas uma ficção igualitária. Ela também foi suplantada por um outro regime político que mal suspeitamos que exista – um regime em que “o poder inteligente lê e avalia nossos pensamentos conscientes e inconscientes. Baseia-se na auto-organização e na otimização pessoal voluntárias. Assim, não precisa superar nenhuma resistência. Essa dominação não necessita de nenhum grande esforço, de nenhuma violência, porque simplesmente acontece. Deseja dominar buscando agradar e gerando dependência”.

Admitir que a democracia liberal é a raiz da desintegração democrática que vivemos agora é algo muito difícil para Mounk, incapaz de notar os paradoxos deste “poder inteligente”. O que nos leva ao segundo ponto a ser observado em uma discussão adequada sobre o significado do populismo – e que seria o verdadeiro antídoto tanto a essa nova forma de poder que nos seduz sem sabermos como até o crescimento exponencial do nacionalismo e das organizações supranacionais que colaboram para o crepúsculo da fé cívica nas redes sociais. Trata-se de defender, acima de qualquer coisa, que o cidadão normal não faz parte de um povo, de uma nação, de corporações, de um Estado-Nação. Ele é, isso sim, parte de uma “unidade espiritual orgânica” que, na falta de um nome melhor, chamamos de comunidade.

O vínculo que liga as pessoas que fazem parte desta comunidade é de natureza transcendente, pois elas sabem que a igualdade democrática é tão somente “um medicamento, não o alimento” para as mazelas da condição humana, nas sábias palavras de C.S. Lewis. Aliás, é em um ensaio chamado “Membresia” que Lewis faz a ressalva pertinente de que “a sociedade para a qual o cristão é chamado no batismo não é um coletivo, mas um Corpo”, uma família no nível natural na qual a personalidade humana é chamada para frutificar da maneira mais plena possível. Ou seja, não podemos confundir o coletivo com o coletivismo ideológico. Afinal de contas, o centro desta comunidade é o relacionamento com uma pessoa específica – Jesus Cristo – que age como um modelo cujo exemplo faz com essas pessoas se sintam num ambiente de constante aprendizagem, onde todos estão “ensinando e aprendendo, perdoando e sendo perdoados, representando Cristo para as pessoas, quando intercedendo por elas, e representando as pessoas para Cristo, quando outros intercedem por nós. O sacrifício da privacidade pessoal, que é diariamente exigido de nós, é recompensado diariamente, cem vezes mais, no verdadeiro crescimento da personalidade que a vida do corpo encoraja.”

Independentemente da crença religiosa, o fato é que a comunidade descrita por Lewis se transforma na única forma de comunhão entre os cidadãos que lhes permite fazer uma política que está além da “fé cívica” defendida por Yascha Mounk. E é esta mesma comunidade que sustenta nada mais, nada menos que o povo quando este resolve se opor ao “poder inteligente”, mesmo que seja obrigado, algumas vezes, a usar dos seus artifícios para vencer certas batalhas pragmáticas. Dessa maneira, o populismo passa a ser visto com novos olhos – ou seja, como um outro tipo de política que o liberalismo simplesmente não quis que existisse. Não é por acaso que os apologistas desta ideologia aparentemente benéfica estão completamente desesperados.

No fim, O Povo Contra a Democracia é mais um lamento do que propriamente um alerta, como quis o seu autor. É nítido a melancolia de Mounk nas últimas linhas da sua argumentação. Como Morrissey, na célebre canção dos The Smiths, ele sabe que a democracia acabou de qualquer maneira, mas ainda depende dela, como uma âncora que o prende em um mar turbulento. A nossa sorte é que ainda podemos fazer parte de um corpo que vai além dessa inevitabilidade histórica, imposta pelo progresso sobre todos nós – e que, se a seguirmos sem questionamento, nos abandonará no fundo do oceano.

Martim Vasques da Cunha é autor dos livros Crise e Utopia – O Dilema de Thomas More (Vide Editorial, 2012) e A Poeira da Glória – Uma (inesperada) história da literatura brasileira (Record, 2015); pós-doutorando pela FGV-EAESP.

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