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“Vagina não transforma uma mulher em um ser humano”. Eis uma frase que revela um mapa conceitual estranho. Toda mulher é mamífera e fêmeas mamíferas têm vagina. Do fato de fêmeas mamíferas terem vagina, mas nem todas serem mulheres, a silogística obriga a concluir que ter vagina não faz de um vivente uma mulher. Se tem vagina, pode ser mulher, vaca, cadela, porca, gambá, gata, capivara ou, nos dias de hoje, até homem transexual. Mas a frase não trata disso. Por ela, sabemos que o rol de seres não-humanos com vagina inclui vacas, cadelas, porcas, gambás, gatas, capivara fêmeas e mulheres.
O que, então, seria uma mulher não-humana?
Vamos ao contexto. A frase foi dita pelo ator José de Abreu e a mulher não-humana é Regina Duarte. José de Abreu é conhecido por ser ator e por ser um fanático defensor do lulismo. Regina Duarte (sem dúvida, uma mulher) é uma colega de profissão que acaba de aceitar um cargo no governo que se elegeu em oposição ao lulismo. O fato de ela aceitar o cargo autorizou o fanático a aviltá-la na condição de mulher, dizendo, em tom de ameaça, que sabia o que ambos fizeram no apartamento dela.
Se alguém tem dúvidas de se isso é machismo, que experimente inverter a situação. Uma mulher poderia esperar envergonhar um homem da mesma idade insinuando que ambos certa feita fizeram sexo há dezenas de anos? Mulheres, e não homens, têm tradicionalmente sua reputação diminuída em razão da quantidade elevada de homens com quem fizeram sexo. Com homens, dá-se o oposto e o aumento de parceiras sexuais aumenta a sua reputação. Pegador e vagabunda são nomes que se atribuem a pessoas de sexos diferentes com conduta igual.
Mas isso não é machismo?
Nessa ocasião, naturalmente, há quem pergunte: “Ó, Zé de Abreu, mas isso não é machismo?” (As pessoas fazem essa pergunta porque os lulistas dizem que são todos feministas e que seus opositores são todos machistas). E, nesse contexto, surgiu a frase lapidar que abre este texto. Vamos lê-la de uma forma mais completa: “Não dá para respeitar quem apoia o Bolsonaro. Eu não tenho o menor respeito. Para mim não interessa se é homem ou mulher. Não pode. Não pode. Fascista a gente trata no cuspe. Não há como considerar o fascista um ser humano. E quem apoia fascista, fascista é (…).
Fascista não tem sexo. Vagina não transforma uma mulher em um ser humano”.
Eureca! Enfim temos o mapa conceitual do sr. Zé de Abreu para fazermos inferências silogísticas. Para ele, um Homo sapiens só é humano se colaborar com o lulismo. Assim, no conjunto de seres viventes com vagina, temos eu mesma, as gambás, as vacas, as capivaras fêmeas, as gatas, Thammy Gretchen, Regina Duarte, Petra Costa, Gleisi Hoffmann e Tati Bitate, ops, Bernardi. Desse conjunto, só as três últimas podem pleitear a condição de seres indubitavelmente humanos.
No mundo civilizado, o conceito de assassinato não se aplica aos viventes que estão fora do conjunto dos Homo sapiens, que é entendido como sinônimo de ser humano. As vacas, nós matamos e comemos. É possível cometer crime ambiental matando uma onça, mas não um assassinato. Se gostamos de uma cadelinha muito doente, damos-lhe uma injeção letal, porque a vida de um cãozinho, por mais amado que ele seja, não é entendida como inviolável.
Mas, se uma pessoa diferencia Homo sapiens de ser humano, o que é possível fazer com o Homo sapiens não-humano? “Fascista (sic) gente trata no cuspe”, diz Zé, ecoando uma frase que circula por DCEs, segundo a qual “com fascista é na ponta do fuzil”. Não dá para saber se ele tem pudores para fazer explícita apologia à violência sendo figura pública ou se ele tem orgulho de se irmanar às lhamas na arte do cuspe.
Seres humanos mesmo, e os outros
A humanidade de Zé de Abreu se divide entre aqueles que são humanos mesmo e aqueles que não são. Os primeiros são meia dúzia de lulistas somados aos pobres que não abriram a boca e o resto é composto pelo que ele chama de “fascistas”. Com estes, pode tudo. Quando um partido de fanáticos tomou o poder por meio de eleições, o Estado alemão passou a considerar uns Homo sapiens humanos e outros não. Em seguida, dispôs dos não-humanos como se fossem gado: levando para lá e para cá, abatendo e até usando o couro para fazer abajur e capa de livro.
O que será que essa gente que brada contra os nazistas imagina que foi o nazismo, afinal? Uma obra de sub-humanos que deveriam ter sido exterminados em campos de concentração juntamente com todos os “fascistas”? Pelo sim e pelo não, vale explicar que a raça e a sexualidade não eram os únicos critérios dos nazistas para mandar gente para o abatedouro. A mera oposição ao regime – que não era composta só por comunistas – também levava ao abate.
A colunista Tati Bernardi, humana plena segundo os parâmetros de José de Abreu, foi um pouco mais clara do que ele. “Se você apoia o governo [Bolsonaro]”, diz ela, ou “lhe falta leitura (...) ou lhe falta humanidade ou você se considera acima do bem e do mal (e, portanto, as leis civilizatórias não lhe servem).” Essas leis proíbem a matança facciosa de concidadãos e fomentam a tolerância política. Se falta leitura, talvez um campo de reeducação soviético resolva. Se falta humanidade, por que não um abatedouro nazista?
O conceito de assassinato só se aplica a seres humanos.
Anotemos em nossos caderninhos e tenhamos presente à memória: a classe artística e intelectual lulista só não nos manda para gulalgs e abatedouros porque não tem poder para tal. No entanto, envenena o debate público dizendo as coisas mais infames possíveis – como a de que nem todo Homo sapiens é humano. Para evitar ser pega com a boca na botija, ela divide a humanidade em parcelas – mulheres, negros, LGBTs – e se autoproclama sua única defensora contra as forças do mal – machistas, racistas, homófobas. Mas qualquer pessoa sensata suspeitará que essas supostas feministas, esses supostos antirracistas e ativistas anti-homofobia nada mais são do que mulheres, negros e LGBTs que dão carteirada identitária para legitimar o lulismo.
Ou alguma alma inocente ainda achou que os progressistas fossem linchar Zé de Abreu?