"Acho que em qualquer época eu teria amado a liberdade; mas na época em que vivemos, sinto-me propenso a idolatrá-la"
(Tocqueville)
6 coisas que você tem de saber sobre a prisão em 2ª instância
O Supremo Tribunal Federal continua envolvido com o tema da possibilidade ou não, diante da Constituição brasileira, de se proceder à execução provisória da pena após o julgmento dos casos crminais em 2ª instância.
A questão está pendente de análise em, ao menos, duas vias: um habeas corpus impetrado pela defesa de Lula, em razão de sua condenação por corrupção e lavagem de dinheiro a 12 anos e 1 mês proferida pela segunda instância federal; e duas ações diretas de constitucionalidade (nºs 43 e 44).
As dúvidas são: a Constituição permite execução provisória da pena após condenação pela segunda instância? E, se a Constituição permite, a legislação previu essa possibilidade?
Aqui estão seis coisas que você deve saber, para poder responder.
1) A Constituição não veda a prisão após julgamento em 2ª instância
Primeiramente: a Constituição não veda, em momento algum, a execução provisória da pena antes do trânsito em julgado. Disposição com semelhante conteúdo simplesmente não existe em nossa Carta Magna.
Com efeito, o que a Constituição prevê é que: “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. É o chamado princípio de não-culpabilidade ou princípio da presunção de inocência.
E aí vem a primeira pergunta que temos de saber responder…
2) O que é ser considerado “não culpado”?
O que a Constituição quer dizer ao afirmar que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”? O que significa não ser considerado culpado?
Os juristas apontam duas regras básicas que podem ser extraídas do princípio de não culpabilidade: i) regra de prova; e, ii) regra de tratamento.
Vejamos o que é cada uma delas.
2.i) Regra de prova
Por força da regra probatória extraída do princípio da presunção de não culpabilidade entende-se que recai sobre o órgão de acusação o ônus de provar a culpa do acusado.
Por isso, nas ações penais públicas, é tarefa do Ministério Público produzir prova de que: a) o crime ocorreu (materialidade delitiva); e, b) o acusado foi quem o realizou (autoria delitiva).
À defesa compete apenas prova de teses defensivas como: a) eventual excludente da ilicitude (por exemplo: legítima defesa); b) eventual causa excludente da culpabilidade (p. ex.: coação moral irresistível); c) causa extintiva da punibilidade (exemplo: prescrição); d) eventual álibi.
Entende-se que essa regra é absolutamente irredutível. O legislador não pode transferir o ônus probatório imposto sobre o órgão de acusação, sob pena de violação do princípio da presunção de inocência.
2.ii) Regra de tratamento
Essa regra determina que o sujeito passivo da persecução penal (ou seja, a pessoa investigada ou processada) não seja juridicamente tratado como culpado antes do trânsito em julgado.
Agora – e aqui está o ponto nevrálgico -, o que é não ser juridicamente tratado como culpado?
A Constituição não é clara. Por isso, entende-se que em nosso sistema jurídico há o que chamamos de espaço de conformação legislativa para esse princípio. Ou seja: a lei pode determinar que alguns efeitos jurídico- penais ocorram já durante o processo, desde que sem ofender o núcleo essencial da presunção de inocência. Isto é, desde que a pretexto de regular a matéria, não acabe esvaziando completamente o direito de ser tratado como inocente.
O que exatamente comporta esse núcleo essencial é difícil de dizer. A regra probatória vista acima, com certeza o compõe. Quanto à regra de tratamento, os tribunais têm aplicado-a conforme será exposto no próximo tópico.
3) Como nossa legislação trata a questão?
Conforme o entendimento exposto pelo STF nos precedentes que voltaram a admitir a execução provisória da pena após condenação em segunda instância – seguindo posicionamento da Procuradoria-Geral da República -, o qual também foi acatado pelo STJ e maioria dos demais tribunais pelo país, a regra de tratamento recebeu a seguinte moldura pelo legislador ordinário, de forma compatível com a Constituição:
As consequências jurídico-penais são gradualmente deflagradas no decorrer da persecução penal à medida em que a culpa vai sendo comprovada, restando a plenitude dos efeitos penais condenatórios reservada para após o trânsito em julgado.
Assim:
i) para que uma pessoa seja investigada, basta suspeita do cometimento de crime;
ii) para que seja denunciada, o órgão de acusação tem estar convencido e indicar a presença de justa causa (prova da materialidade, ou seja, de que o crime ocorreu; e indícios de autoria, isto é, de que o acusado foi o responsável pelo delito);
iii) para que se torne réu, o órgão do Poder Judiciário tem de concordar de que há justa causa;
iv) para que uma pessoa seja condenada, é preciso que o julgador entenda que o órgão de acusação logrou êxito em comprovar a culpa, para além de qualquer dúvida razoável.
Pois bem, seguindo esse itinerário, a análise do processo em segundo grau encerra o exame quanto aos fatos, ou seja, fica a partir daí encerrada a discussão sobre a prova da materialidade e da autoria. Se o tribunal de segunda instância reconhecer que o delito ocorreu e que o condenado é o seu autor, esse fato ganha reconhecimento jurídico pleno.
A partir daí, as instâncias superiores examinam apenas questões acerca das regras aplicáveis – a legislação federal no caso do Superior Tribunal de Justiça, e a Constituição no do STF -; todavia, estão inviabilizadas de reverter a conclusão do tribunal de segunda instancia instância quanto à matéria fática. Os tribunais superiores não poderiam mais negar a ocorrência da conduta criminosa e sua autoria, caso o tribunal de segunda instância as tenha reconhecido.
Por isso, a legislação permite que nesse momento seja deflagrada mais uma consequência penal: a execução provisória da pena.
Fica clara essa tomada de posição da lei em vista do comando esculpido no art. 637 do Código de Processo Penal, segundo o qual os recursos para os tribunais superiores “não tem efeito suspensivo, e uma vez arrazoados pelo recorrido os autos do traslado, os originais baixarão à primeira instância, para a execução da sentença”.
As demais consequências penais ficariam reservadas para após o trânsito em julgado.
Cirúrgica, portanto, a lição constante do voto do Min. Jorge Mussi ao votar pela denegação do Habeas Corpus impetrado por Lula perante o STJ:
“O estado de inocência vai se esvaindo à medida que a condenação vai se confirmando”.
4) O STF poderia voltar atrás e mudar sua posição?
Paira hoje sobre o STF um forte dever de não efetuar nova guinada em sua posição.
Com efeito, a judicatura não pode ser exercida de forma esquizofrênica. Deve-se prezar pelo unidade, coerência e previsibilidade das decisões, de modo que a população e os órgãos de base saibam com razoável certeza qual o direito em vigor no país.
Pois bem. O STF voltou a admitir a prisão em segunda instância no julgamento do Habeas Corpus 126.292, em 17 de fevereiro de 2016, por 7 votos a 4. Em julgamento dos embargos de declaração do julgado, o STF manteve novamente a posição, afirmando que seu entendimento não esvazia o art. 283 do Código de Processo Penal, segundo o qual “ninguém poderá ser preso senão (…) em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado”. Para o Tribunal esse dispositivo convive com o art. 637 acima citado. Desse modo, não caberá prisão antes do trânsito em julgado (regra do art. 283), salvo se a condenação pender apenas de recurso sem efeito suspensivo (art. 637), caso em que possível a execução provisória.
Mais tarde, em outubro de 2016, o Supremo Tribunal Federal, dessa vez por 6 votos a 5 (Ministro Dias Toffoli mudou seu posicionamento), indeferiu liminar nas Ações Diretas de Constitucionalidade 43 e 44, reafirmando o entendimento supra.
Por fim, no julgamento do Recurso Extraordinário com Agravo 964.246, analisado sob a sistemática de Repercussão Geral, sendo assim um precedente vinculante, em 11 de novembro de 2016, novamente por 6 votos a 5, a Suprema Corte reiterou a admissão da execução provisória da pena após condenação em segunda instância.
Assim, tendo em vista que o STF analisou a questão por quatro vezes em passado muito recente – inclusive uma vez em sede de repercussão geral e duas em liminar de controle concentrado de constitucionalidade – e que a composição da Corte manteve-se praticamente inalterada desde então, uma guinada brusca na posição do Tribunal fragilizaria de modo contundente e até irresponsável a coerência e previsibilidade do direito brasileiro, bem como a credibilidade da jurisprudência do tribunal.
É bem verdade que não se exige perenidade da jurisprudência. Aliás, postura por demais engessada pode acabar por impedir a atualização do direito e, assim, provocar seu desligamento com a realidade social. Isso comprometeria sua eficácia.
Mas há requisitos para superação racional de precedentes: a perda de congruência social, por exemplo, quando uma posição anterior torna-se chocante com os valores sociais; ou consistência sistêmica, por exemplo, caso a legislação que fundou a decisão seja revogada.
Todavia, esses fatores não estão presentes no caso em tela. A decisão que permitiu a execução provisória da pena não perdeu congruência social tampouco consistência sistêmica. Permanece íntegra, bem como a legislação que lhe dá suporte. Pelo contrário, posição adversa é que faleceria de congruência com valores constitucionais e sociais caros, como a efetividade do direito penal e o combate à impunidade.
Não por outro motivo, a PGR Raquel Dodge, ao sustentar recentemente a manutenção do precedente que permitiu a prisão em 2ª instância, apontou que:
Revogá-lo mesmo diante de todos os argumentos jurídicos e pragmáticos que o sustentam, representaria triplo retrocesso: para o sistema de precedentes brasileiro, que, ao se ver diante de julgado vinculante revogado pouco mais de um ano após a sua edição, perderia em estabilidade e teria sua seriedade desafiada; para a persecução penal no país, que voltaria ao cenário do passado e teria sua funcionalidade ameaçada por processos penais infindáveis, recursos protelatórios e penas massivamente prescritas; e para a própria credibilidade da sociedade na Justiça, como resultado da restauração da sensação de impunidade que vigorava em momento anterior (…).
Logo, possível afirmar que é dever do STF preservar e reforçar sua jurisprudência a respeito do tema.
5) Permitir a prisão em 2ª instância não tornará insustentável o aumento da população carcerária?
A resposta à pergunta é: não.
Consoante estudo empírico recente levado a cabo por juristas da FGV e da University of Texas
“a expedição de mandado de prisão de réus condenados em segunda instância a pena igual ou maior a 8 anos e com recurso tramitando no STF e STJ significaria um aumento de 0,6% no número de apenados no sistema prisional (3.460 novos presos). Longe, portanto, de previsões catastróficas propaladas pelos críticos do novo entendimento do Supremo sobre a execução da pena após condenação em segunda instância.”
6) Esse entendimento não é um casuísmo em razão da Lava Jato?
Por derradeiro, um último ponto: a autorização para a execução provisória da pena não seria um casuísmo em razão da mobilização midiática em torno da Lava Jato?
De modo algum. Na verdade, o STF sempre entendeu desse modo, desde a promulgação da Constituição, em 1988, até 2009, quando no julgamento do HC 84.078, relatado pelo Ministro Eros Grau, passou a exigir o trânsito em julgado para execução da reprimenda imposta. O ministro recentemente – quase uma década após sua decisão – deu a seguinte declaração: “‘Neste exato momento, até fico pensando se não seria necessário prender em primeira instância esses bandidos que estão aí’, provocou. ‘Inclusive do Lula’, emendou, quando questionado se se referia ao ex-presidente petista. ‘Se ele foi condenado depois de uma série de investigações é porque é um sujeito culpado’.”
O que o STF fez agora, portanto, foi simplesmente retornar a um entendimento mais consentâneo com os valores da Constituição e os clamores da população, após a experiência fracassada da tese contrária.
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