"Acho que em qualquer época eu teria amado a liberdade; mas na época em que vivemos, sinto-me propenso a idolatrá-la"
(Tocqueville)
Bolsonaro, a MP da Liberdade Econômica e sua conversão em lei
Por Ronaldo Kietzer Oliveira
O Presidente Jair Bolsonaro fez publicar no último dia 30 de abril a Medida Provisória nº 881, que institui a denominada Declaração de Direitos de Liberdade Econômica. As regras nela contidas visam fomentar a atividade econômica do empreendedor que atua em atividade de baixo risco. Tal fomento não virá com a injeção de recursos públicos para estruturar determinados setores produtivos nem através de ações governamentais alusivas a isenções fiscais ou políticas cambiais, creditícias ou outras semelhantes. O pressuposto é outro: grosso modo o Estado mostrará quão útil é para a economia deixando de atrapalhá-la, isto é, reduzindo consideravelmente sua interferência em face do indivíduo que quer exercer atividade econômica.
Vale destacar entre as medidas contidas na Declaração:
1) maior liberdade para empreender porque não haverá necessidade de atos públicos para a liberação de atividade econômica de baixo risco a ser realizada exclusivamente na propriedade privada (o que se entende por atividade de baixo risco ainda será objeto de regulamentação nos próximos sessenta dias);
2) liberdade tocante à estipulação dos dias da semana e horários a ser realizada a atividade (desde que respeitadas normas ambientais, trabalhistas e de vizinhança);
3) vedação que autoridades públicas restrinjam a liberdade de definir preços no mercado não regulado (isto é, regulação de preços somente haverá se for por meio de lei em sentido formal, e não ao livre arbítrio da Administração);
4) os atos de liberação estarão vinculados aos mesmos critérios de interpretação adotados em decisões administrativas anteriores (ou seja, isso impedirá que a Administração haja arbitrariamente ou de má-fé, concedendo para alguns licenças e para outros não);
5) liberdade para implementar e testar um novo produto ou serviço em face de um grupo de pessoas restritas sem que haja necessidade de autorização da Administração (sendo necessário porém que tal grupo saiba se tratar de novidade no mercado e que assim consinta);
6) direito de receber um prazo determinado da Administração para que, quando for necessária autorização do Poder Público, seu pedido de liberação da atividade econômica seja apreciado e, se não apreciado, haverá aprovação tácita;
7) dever da Administração de demonstrar que os preceitos de liberdade econômica e empresarial da Declaração não poderão ser aplicados em favor de determinado caso;
8) dever da Administração, no exercício regulamentar, de evitar o abuso do poder regulatório, de modo que não crie reservas de mercado, não impeça a entrada de novos competidores no mercado, não aumente custos sem que haja benefício em contrapartida etc.
As benesses citadas e outras mais contidas na MP nº 881/2019 são inúmeras, materializando o princípio da livre iniciativa.
O problema é que enquanto a Declaração da Liberdade Econômica permanecer sob o status de medida provisória (MP), corre-se o risco de todos os seus efeitos não terem eficácia alguma se em cento e vinte dias o Congresso Nacional não a converter em lei. Na melhor das hipóteses apenas seriam mantidos válidos os atos praticados durante os dias em que a Declaração permaneceu vigente. Isso porque as regras previstas no artigo 62 da Constituição Federal assim determinam. É vital, então, que a MP nº 881/2019 seja transformada em lei e assim irradie seus efeitos na ordem jurídica de forma estável e permanente. Ocorrendo dessa forma, seus dispositivos seguramente representarão um elástico passo para esse país que ostenta a oitava economia mundial avance.
Aliás, ser o oitavo maior Produto Interno Bruto (PIB) não é motivo algum para frenesi ou delírio de grandeza. O grau de liberdade econômica que existe no Brasil é baixo: figuramos na 150ª posição no ranking da Heritage Foundation/Wall Street Journal, na 144ª posição no ranking do Fraser Institute, e na 123ª posição no ranking do CatoInstitute (os dados estão na mensagem da MP nº 881).
Afastando-se a irracional onipresença do Estado que desmotiva o espírito aventureiro de empreender e buscar riqueza, engessando a livre iniciativa, seguro que, ao lado de outros fatores como o melhor aproveitamento dos recursos naturais, superavitários acordos bilaterais, investimento em tecnologia etc, o país galgará melhores posições nos rankings e haverá a possibilidade de concluirmos que ter sido a oitava economia do planeta foi pouco.
Em se confirmando esse otimismo, a então lei que se originará da medida provisória se revelará feliz também quanto ao nomen juris (nomenclatura) escolhido. Os direitos de liberdade econômica vêm previstos no que se batizou como “Declaração”, deixando-se de lado outras opções como “Estatuto” ou apenas “Lei”. Enquanto o espírito destas duas últimas modalidades legislativas enfocam o caráter do documento como um corpo de regras jurídicas moldadoras de condutas (normas-regras), a Declaração funciona como o marco de um propósito e traz em seu bojo objetivos e metas a serem alcançados pela sociedade (normas-princípios). A MP nº 881 acertadamente segue essa linha.
Em seu artigo 1º, noticia que suas normas servirão à proteção à livre iniciativa e ao livre exercício da atividade econômica. Em seu artigo 2º constam os princípios norteadores específicos da medida provisória: presunção de liberdade no exercício de atividades econômicas, presunção de boa-fé do particular e intervenção subsidiária, mínima e excepcional do Estado sobre o exercício de atividades econômicas. É bem verdade que não só de normas-princípios se compõe a MP nº 881. Todavia, as regras jurídicas estão à serviço de seus princípios norteadores, princípios estes que pretendem definitivamente alavancar no país a livre iniciativa e o livre mercado.
Salvo alguns lampejos de liberalismo econômico e uma ou outra característica desse sistema que por aqui exista, a rigor o Brasil nunca regozijou-se no sabor de uma genuína economia de livre mercado. Acertada a afirmação de Roberto Campos quando aduziu que “O liberalismo econômico assim como o capitalismo não fracassaram na América Latina. Apenas não deram o ar de sua graça.”
Em relação às últimas três décadas, por mais que a Constituição Federal de 1988 traga o valor social do trabalho humano e a livre iniciativa como fundamento da República (artigo 1º, inciso IV) e como princípio condutor da ordem econômica (artigo 170, caput) a verdade é que as políticas intervencionistas do governo (as vezes em maior grau as vezes em menor, mas sempre além do que deveria ser) fizeram de tais preceitos quase letra morta. (Exagero? Basta lembrar as posições do Brasil nos rankings mencionados).
Por mais que o professor e ministro aposentado do STF Eros Roberto Grau tenha concluído em seu livro A Ordem Econômica na Constituição de 1988 que a interpretação dos princípios da ordem econômica insculpidos na Constituição é dinâmica, isto é, conforme o momento social deve-se interpretar mais pelos preceitos da liberdade econômica ou, do contrário, mais pelos preceitos de cunho social, a verdade é que este último sempre prevaleceu – mesmo quando o momento macroeconômico era propício a que o Estado se abstivesse. Com a Declaração possivelmente esse quadro possa ser reequilibrado.
Inspirada pela obra de Adam Smith e entoada há mais de trezentos anos pela classe comerciante européia que conseguiu desenvolver o livre mercado inserindo-o em um regime enxuto de legalidade frente aos abusos absolutistas até então havidos no comércio, a máxima do liberalismo clássico “laissez-faire” (deixe fazer), encontra no Brasil séculos depois, através da MP nº 881/2019, um sussurro do Estado em resposta dizendo “je vous laisse faire” (deixarei você fazer). Na hipótese da Declaração vir a ser convertida em lei, o sussurro será amplificado. E aos ouvidos dos empreendedores que têm a exata noção de quão danosa é a ingerência estatal no mercado, e aos desempregados e demais milhões de brasileiros que não têm essa noção mas serão beneficiados, soará como uma entusiasmada ode.
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