"Acho que em qualquer época eu teria amado a liberdade; mas na época em que vivemos, sinto-me propenso a idolatrá-la"
(Tocqueville)

Proibir carreatas é um ato de obscurantismo autoritário

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Junto com a pandemia da COVID uma outra pandemia cresce no Brasil ainda mais rapidamente: a pandemia do autoritarismo e da erosão do Estado de Direito. Os que foram infectados por esse outro vírus apresentam como sintomas o desejo de silenciar discordantes, colocar a Constituição em quarentena, e violar direitos fundamentais.

Um dos direitos constantemente agredidos por essa nova doença – ainda sem cura ou vacina – tem sido o de manifestação. Não é de hoje. A pandemia do coronavírus apenas lhes concedeu uma nova desculpa. Mas há algum tempo qualquer ato popular convocado no Brasil por grupos de fora  dos que não gozam da simpatia do establishment é logo acusado de agredir instituições ou coisas do tipo.

Atualmente, de modo infundado e ilícito, restrições sanitárias têm sido invocadas para violar o direito fundamental de manifestação.

Contudo, o fato é que a liberdade de convocar, participar, ou promover manifestações públicas é uma prerrogativa garantida na Constituição, por meio dos chamados “direito de reunião” e “direito de expressão do pensamento”. Essa prerrogativa só pode ser restringida em caso de Estado de Defesa ou de Sítio, o que não ocorre hoje no Brasil.

Ademais, há mais um defeito nesses atos de censura: eles buscam impedir que a sociedade participe do debate sobre como enfrentar a pandemia, o que é condenado inclusive pelas boas práticas internacionais que determinam que medidas de isolamento sejam definidas com participação da comunidade afetada, como veremos à frente.

Com efeito, no que toca às disposições constitucionais, o direito de realização de atos públicos para defesa ou crítica de ideias e políticas públicas está consagrado em nossa Constituição, no art. 5º:

IV – é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato;

XVI – todos podem reunir-se pacificamente, sem armas, em locais abertos ao público, independentemente de autorização, desde que não frustrem outra reunião anteriormente convocada para o mesmo local, sendo apenas exigido prévio aviso à autoridade competente;

O STF, na ADPF 187, já decidiu sobre a relevâncias desses dois direitos e sobre sua concretização mediante manifestações públicas de suporte ou reprovação a normas em vigor. No caso concreto, o STF decidiu que, embora não seja possível ao cidadão simplesmente inobservar o direito vigente, é perfeitamente possível realizar atos para criticar e promover a mudança da legislação.

Confira trechos que considerei mais importantes da ementa. Peço que preste atenção aos trechos em negrito:

MANIFESTAÇÃO LEGÍTIMA, POR CIDADÃOS DA REPÚBLICA, DE DUAS LIBERDADES INDIVIDUAIS REVESTIDAS DE CARÁTER FUNDAMENTAL: O DIREITO DE REUNIÃO (LIBERDADE-MEIO) E O DIREITO À LIVRE EXPRESSÃO DO PENSAMENTO (LIBERDADE-FIM)

A LIBERDADE DE REUNIÃO COMO PRÉ-CONDIÇÃO NECESSÁRIA À ATIVA PARTICIPAÇÃO DOS CIDADÃOS NO PROCESSO POLÍTICO E NO DE TOMADA DE DECISÕES NO ÂMBITO DO APARELHO DE ESTADOCONSEQUENTE LEGITIMIDADE, SOB PERSPECTIVA ESTRITAMENTE CONSTITUCIONAL, DE ASSEMBLEIAS, REUNIÕES, MARCHAS, PASSEATAS OU ENCONTROS COLETIVOS REALIZADOS EM ESPAÇOS PÚBLICOS (OU PRIVADOS) COM O OBJETIVO DE OBTER APOIO PARA OFERECIMENTO DE PROJETOS DE LEI, DE INICIATIVA POPULAR, DE CRITICAR MODELOS NORMATIVOS EM VIGOR, DE EXERCER O DIREITO DE PETIÇÃO E DE PROMOVER ATOS DE PROSELITISMO EM FAVOR DAS POSIÇÕES SUSTENTADAS PELOS MANIFESTANTES E PARTICIPANTES DA REUNIÃO

ESTRUTURA CONSTITUCIONAL DO DIREITO FUNDAMENTAL DE REUNIÃO PACÍFICA E OPONIBILIDADE DE SEU EXERCÍCIO AO PODER PÚBLICO E AOS SEUS AGENTES – VINCULAÇÃO DE CARÁTER INSTRUMENTAL ENTRE A LIBERDADE DE REUNIÃO E A LIBERDADE DE MANIFESTAÇÃO DO PENSAMENTO – DOIS IMPORTANTES PRECEDENTES DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL SOBRE A ÍNTIMA CORRELAÇÃO ENTRE REFERIDAS LIBERDADES FUNDAMENTAIS: HC 4.781/BA, REL. MIN. EDMUNDO LINS, E ADI 1.969/DF, REL. MIN. RICARDO LEWANDOWSKI – A LIBERDADE DE EXPRESSÃO COMO UM DOS MAIS PRECIOSOS PRIVILÉGIOS DOS CIDADÃOS EM UMA REPÚBLICA FUNDADA EM BASES DEMOCRÁTICAS – O DIREITO À LIVRE MANIFESTAÇÃO DO PENSAMENTO: NÚCLEO DE QUE SE IRRADIAM OS DIREITOS DE CRÍTICA, DE PROTESTO, DE DISCORDÂNCIA E DE LIVRE CIRCULAÇÃO DE IDEIAS

DEBATE QUE NÃO SE CONFUNDE COM INCITAÇÃO À PRÁTICA DE DELITO NEM SE IDENTIFICA COM APOLOGIA DE FATO CRIMINOSO – DISCUSSÃO QUE DEVE SER REALIZADA DE FORMA RACIONAL, COM RESPEITO ENTRE INTERLOCUTORES E SEM POSSIBILIDADE LEGÍTIMA DE REPRESSÃO ESTATAL, AINDA QUE AS IDEIAS PROPOSTAS POSSAM SER CONSIDERADAS, PELA MAIORIA, ESTRANHAS, INSUPORTÁVEIS, EXTRAVAGANTES, AUDACIOSAS OU INACEITÁVEIS – O SENTIDO DE ALTERIDADE DO DIREITO À LIVRE EXPRESSÃO E O RESPEITO ÀS IDEIAS QUE CONFLITEM COM O PENSAMENTO E OS VALORES DOMINANTES NO MEIO SOCIAL – CARÁTER NÃO ABSOLUTO DE REFERIDA LIBERDADE FUNDAMENTAL (CF, art. 5º, incisos IV, V e X; CONVENÇÃO AMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, Art. 13, § 5º) – A PROTEÇÃO CONSTITUCIONAL À LIBERDADE DE PENSAMENTO COMO SALVAGUARDA NÃO APENAS DAS IDEIAS E PROPOSTAS PREVALECENTES NO ÂMBITO SOCIAL, MAS, SOBRETUDO, COMO AMPARO EFICIENTE ÀS POSIÇÕES QUE DIVERGEM, AINDA QUE RADICALMENTE, DAS CONCEPÇÕES PREDOMINANTES EM DADO MOMENTO HISTÓRICO-CULTURAL, NO ÂMBITO DAS FORMAÇÕES SOCIAIS – O PRINCÍPIO MAJORITÁRIO, QUE DESEMPENHA IMPORTANTE PAPEL NO PROCESSO DECISÓRIO, NÃO PODE LEGITIMAR A SUPRESSÃO, A FRUSTRAÇÃO OU A ANIQUILAÇÃO DE DIREITOS FUNDAMENTAIS, COMO O LIVRE EXERCÍCIO DO DIREITO DE REUNIÃO E A PRÁTICA LEGÍTIMA DA LIBERDADE DE EXPRESSÃO, SOB PENA DE COMPROMETIMENTO DA CONCEPÇÃO MATERIAL DE DEMOCRACIA CONSTITUCIONAL

INADMISSIBILIDADE DA “PROIBIÇÃO ESTATAL DO DISSENSO” – NECESSÁRIO RESPEITO AO DISCURSO ANTAGÔNICO NO CONTEXTO DA SOCIEDADE CIVIL COMPREENDIDA COMO ESPAÇO PRIVILEGIADO QUE DEVE VALORIZAR O CONCEITO DE “LIVRE MERCADO DE IDEIAS” – O SENTIDO DA EXISTÊNCIA DO “FREE MARKETPLACE OF IDEAS” COMO ELEMENTO FUNDAMENTAL E INERENTE AO REGIME DEMOCRÁTICO (AC 2.695-MC/RS, REL. MIN. CELSO DE MELLO) – A IMPORTÂNCIA DO CONTEÚDO ARGUMENTATIVO DO DISCURSO FUNDADO EM CONVICÇÕES DIVERGENTES – A LIVRE CIRCULAÇÃO DE IDEIAS COMO SIGNO IDENTIFICADOR DAS SOCIEDADES ABERTAS, CUJA NATUREZA NÃO SE REVELA COMPATÍVEL COM A REPRESSÃO AO DISSENSO E QUE ESTIMULA A CONSTRUÇÃO DE ESPAÇOS DE LIBERDADE EM OBSÉQUIO AO SENTIDO DEMOCRÁTICO QUE ANIMA AS INSTITUIÇÕES DA REPÚBLICA (…) (ADPF 187, Relator: Min. CELSO DE MELLO, Tribunal Pleno, julgado em 15/06/2011, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-102 DIVULG 28-05-2014 PUBLIC 29-05-2014)

Do corpo do acórdão ainda é possível perceber que a liberdade de realizar atos públicos para manifestação de suporte ou rechaço a políticas públicas só pode ser restringida durante Estado de Defesa ou Estado de Sítio.

Confira:

É de ressaltar que, em nosso sistema normativo, o direito de reunião pode sofrer, excepcionalmente, restrições de ordem jurídica em períodos de crise institucional, desde que utilizados, em caráter extraordinário, os mecanismos constitucionais de defesa do Estado, como o estado de defesa (CF, art. 136, § 1º, I, “a”) e o estado de sítio (CF, art. 139, IV), que legitimam a utilização, pelo Presidente da República, dos denominados poderes de crise, dentre os quais se situa a faculdade de suspender a própria liberdade de reunião, ainda que exercida em espaços privados. (voto do relator).

O à época Min. Carlos Ayres Britto reforçou a ideia:

O Ministro Celso de Mello – lembrando a fala de um dos advogados que fizeram uso da tribuna – lembrou que só há duas exceções: Estado de Defesa e Estado de Sítio. A Constituição realmente impõe restrições à liberdade de reunião, mas nessas duas situações excepcionais reveladoras de um estado institucional crítico, de crise, de anormalidade institucional.

Em recente decisão, já no curso da pandemia do Coronavírus e tratando de carreata convocada para ocorrer no Distrito Federal, durante a vigência de isolamento social, o Min. Celso de Mello voltou a invocar essas razões para indeferir pleito autoritário que visava, abusando da via judicial, impedir o ato (decisão da Medida Cautelar na Petição 8.830/DF).

Não obstante, como mencionamos acima, esse direito vem sendo repetidamente violentado no Brasil.

Conforme amplamente divulgado pela imprensa, em virtude de atos do Poder Público de variadas espécies, carreatas agendadas para criticar o isolamento social horizontal, com fechamento de todas as atividades julgadas não essenciais, têm sido vedadas mediante gravíssimas ameaças (prisão, confisco de bens, multa etc.), em ações cujo autoritarismo retrógrado faz lembrar os momentos sombrios de nossa história política.

Frise-se que as manifestações que foram proibidas enquadram-se perfeitamente nos moldes do direito constitucional reconhecido na Constituição e na jurisprudência do STF. De fato, a finalidade das carreatas não era praticar desobediência às ordens públicas, mas criticá-las e pressionar por sua mudança, visto que os manifestantes não estavam se dirigindo aos estabelecimentos com a intenção de abri-los, mas manifestando-se em regiões de destaque de cada cidade, para criticar as ordens de fechamento.

Ademais, as carreatas não colocavam a saúde pública em risco de modo algum, visto que todos os organizadores se dispuseram de antemão a respeitar orientações sanitárias (como proibição de aglomerações, efetuando os atos apenas no interior de automóveis; limite ao número de pessoas nos veículos etc.).

Saliente-se, ainda, que documento da própria OMS elaborado como “Guia para Gerenciamento de Questões Ética durante Epidemias” (“Guidance for managing ethical issues in infectious disease outbreaks”), em seu capítulo 7, que cuida da imposição de limitações à liberdade de movimentação (formas de isolamento social), afirma que os elaboradores dessas políticas públicas devem ouvir as comunidades afetadas, e não rechaçá-las como vem ocorrendo por meio desses atos de elitismo autoritário. O capítulo segundo do Guia reforça essa ideia.

Diz um trecho do documento:

Os formuladores de políticas públicas e as autoridades sanitárias devem envolver as comunidades em um diálogo sobre quaisquer restrições à liberdade de movimento e solicitar a opinião dos membros da comunidade sobre como as restrições podem ser executadas com o menor custo possível. (Tradução nossa, no original: Policy-makers and public health officials should engage communities in a dialogue about any restrictions on freedom of movement and solicit community members’ views on how restrictions can be carried out with the least possible burden.)

Mesmo assim, o obscurantismo acabou prevalecendo em vários lugares, o que precisa ser corrigido o mais rápido possível, antes que a herança maldita jurídica da pandemia, com a forte erosão do Estado de Direito que vem ocorrendo, torne-se irreversível.

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