"Acho que em qualquer época eu teria amado a liberdade; mas na época em que vivemos, sinto-me propenso a idolatrá-la"
(Tocqueville)

Censura promovida pelo STF viola regra expressa do processo penal brasileiro

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Conforme noticiou o Jornal Gazeta do Povo, “por ordem do Supremo Tribunal Federal (STF), o Twitter e o Facebook bloquearam, nesta sexta-feira (24), contas de influenciadores digitais, empresários e políticos investigados no inquérito das fake news e que apoiam o presidente Jair Bolsonaro. A decisão judicial é datada de maio, mas só foi cumprida agora, após nova intimação dirigida às empresas com ameaça de multa diária de R$ 20 mil.”

Trata-se de mais um decisão exarada em inquérito cheio de irregularidades e com fortes indícios de arbitrariedade.

Vejamos por quê.

Restrições impostas à livre manifestação do pensamento são desproporcionais e fundamentação judicial é deficiente

A derrubada de contas de pessoas em redes sociais é uma medida altamente invasiva e de caráter extremamente excepcional num regime livre. Cabe relembrar que, como bem pontuou a notícia acima, entre os alvos da censura estavam políticos, empresários e comunicadores (inclusive jornalistas e comediantes). Todas pessoas que dependem das redes sociais não apenas como passatempo privado, mas para o exercício profissional. O STF está impedindo políticos de se comunicarem com suas bases, empresários de divulgarem suas iniciativas, comediantes de promoverem suas atrações e jornalistas de informarem seu público.

Frise-se que não se está tratando aqui de contas automatizadas ou robôs, mas de contas individuais. O Senador Alessandro Vieira ressaltou essa diferença em postagem nas redes sociais:

Alessandro Vieira

Com efeito, a magnitude patente de tais constrições impõe um dever de fundamentação e transparência excepcional sobre o STF. Diligências dessa espécie exigiriam práticas de delitos graves e fortíssimas provas contra as pessoas atingidas.

No caso, todavia, a decisão do STF não apresenta fundamento suficiente para determinar medidas de tal gravidade.

Basicamente, a ordem judicial limita-se a invocar chavões vazios, mas sem apresentar suporte fático: “gabinete do ódio”, propaganda para “subversão da ordem”, incentivo à “quebra da ordem institucional e democrática”. A Corte, no entanto, após inúmeras medidas de busca e apreensão de material ainda não foi capaz de apresentar fatos concretos que justifiquem essas imputações, invocando abstrações como se elas fossem um fiat que permita ao Tribunal invadir a a intimidade e a vida privada das vítimas da perseguição.

Cabe ainda salientar que, em sua manifestação, o Procurador-Geral da República manifestou-se contra as medidas, afirmando que não havia conteúdo criminoso nas mensagens publicadas pelos alvos nas redes sociais, mas apenas críticas ainda que contundentes, acobertadas pelo direito à liberdade de expressão. Segundo o PGR:

A leitura dessas manifestações demonstra, a despeito de seu conteúdo incisivo em alguns casos, serem inconfundíveis com a prática de calúnias, injúrias ou difamações contra os membros do STF. Em realidade, representam a divulgação de opiniões e visões de mundo, protegidas pela liberdade de expressão“.

Ou seja, da manifestação da PGR extrai-se que medidas brutalmente restritivas foram impostas diante de condutas limítrofes, sem claro conteúdo ilícito.

Não por outra razão, o cumprimento da ordem judicial gerou contundentes reações adversas entre grupos preocupados com a deterioração das liberdades públicas, conforme se percebe de comentários como o seguinte:

Paulo Mathias

Medidas dessa espécie tem sido direcionadas apenas contra pessoas de perfil conservador e apoiadores do Presidente da República

Convém, ainda ressaltar que todas as vítimas dessas diligências têm nítido alinhamento político com o Presidente Bolsonaro e apresentam perfil manifestamente conservador. Essa fato analisado em perspectiva histórica traz indícios de criminalização da opinião política ou, ao menos, direcionamento ideológico, o que é vedado pela Constituição.

Isso porque – ainda que se aceite que tenha ocorrido o que o STF afirma que ocorreu -, historicamente, vários grupos de extrema-esquerda difundiram fake news buscando desacreditar instituições de Estado. Aliás, o fenômeno foi constante durante o auge da Operação Lava-Jato. O próprio STF foi inúmeras vezes ameaçado. Mas jamais sequer esboçou qualquer reação.

Censura sobre investigados com projeção pública prejudica sua defesa

Não bastasse a dúvida que paira sobre o cabimento e a proporcionalidade das restrições impostas, a suspensão das contas, sem justificativa cabal, além de configurar nítida censura prévia, é uma forma opressiva de impedir essas pessoas, submetidas a uma investigação juridicamente bastante questionável, de manifestarem sua versão dos fatos perante a opinião pública pelo único canal de que dispõem, que são as redes sociais.

De fato, a imprensa, em virtude do forte perfil antibolsonarista, está fechada para todas as vítimas da decisão. Não só isso: de modo geral, boa parte dos veículos de comunicação de massa, inclusive, reforçam as narrativas que buscam estereotipar negativamente essas pessoas.

Assim, a única via que lhes resta para tentar salvaguardar sua imagem são as redes sociais.

É de se ressaltar que estando entre os alvos pessoas públicas, é vital assegurar-lhes algum meio de esclarecer publicamente sua versão sobre as imputações feitas contra elas. Inviabilizá-las de fazê-lo configura tratamento indigno e arbitrário, causador de irreparável dano à imagem e à sua possibilidade de defesa.

É claro que se os perfis fossem usados constantemente para prática de crimes, seria cabível sua suspensão. Mas cabe repisar: o STF jamais demonstrou qualquer dado concreto proporcional à gravidade das imposições.

Decisão contraria princípio expresso no Código de Processo Penal: “atualidade do perigo”

Por fim, não basta para impor medida tão restritiva que algum dia as contas tenham sido utilizadas para qualquer fim ilícito. A imposição de restrições durante uma investigação, isto é, as chamadas medidas cautelares, exige que a vedação imposta busque impedir uma ameaça atual.

Assim, a suspensão de contas só seria juridicamente admissível se as contas estivessem hoje sendo utilizadas para esses fins, fato que não conta com qualquer prova que tenha sido exposta na decisão.

Essa exigência consubstancia o que, no jargão jurídico, se chama de princípio da atualidade ou contemporaneidade do perigo.

Esse princípio já foi inclusive consagrado em precedentes jurisprudenciais.

De fato, no julgamento do Recurso Ordinário em Habeas Corpus 67.534, o STJ, ao examinar caso de prisão em virtude do descumprimento de determinação judicial anterior, decidiu:

“diante do efetivo descumprimento de qualquer uma delas [medidas anteriormente impostas], a prisão com base nessa motivação há de guardar atualidade e contemporaneidade com os fatos justificadores da extrema cautela“.

Em idêntico sentido, o STF, no julgamento do Habeas Corpus 126.815, deixou claro que:

“custódia processual do indivíduo desafia a aferição da atualidade do risco que a legitima, incumbindo ao Estado-Juiz, se alterado o quadro processual e fático que a motivou, o reexame da medida gravosa.”

Saliente-se que apesar de as decisões citadas tratarem apenas de casos de prisão, o princípio aplica-se à imposição de qualquer outra medida constritiva aplicada durante as investigações. O que chamamos de cautelares pessoais diversas da prisão.

Isso ocorre por comando expresso do Código de Processo Penal, no § 2º do art. 315:

§ 1º Na motivação da decretação da prisão preventiva ou de qualquer outra cautelar, o juiz deverá indicar concretamente a existência de fatos novos ou contemporâneos que justifiquem a aplicação da medida adotada.

No caso concreto, no entanto, a decisão que determinou o bloqueio das contas não apresenta qualquer fato atual que indique uso das contas para fins criminosos ou sequer ilícitos. Limita-se a mencionar os chavões vazios que mencionamos acima. Aliás,  é de se ressaltar, como já fizemos em artigo anterior, que o uso de imputações excessivamente vagas e abstratas acaba por esvaziar a capacidade de defesa das vítimas dessas decisões.

Por todo o exposto acima, vemos com enorme preocupação essa série de decisões provindas da Corte que deveria zelar pela guarda da Constituição e das liberdades públicas nela consagradas, inclusive, dos princípios que indicamos acima.

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