"Acho que em qualquer época eu teria amado a liberdade; mas na época em que vivemos, sinto-me propenso a idolatrá-la"
(Tocqueville)
COAF deve seguir no Ministério da Justiça, independente do que diga o Congresso. Entenda por quê.
Por Ronaldo Kietzer Oliveira
No cabo de guerra de disputas que vêm se formando entre o Poder Executivo e o Legislativo está na tônica a polêmica envolvendo a qual Ministério de Estado o Conselho de Controle de Administração Financeira (COAF) deve ficar vinculado: se o da Justiça e Segurança Pública, como querem o Presidente da República Jair Bolsonaro, o Ministro Sérgio Moro e o Presidente do próprio COAF Roberto Leonel, ou o da Economia, como decidiu a Comissão Mista do Congresso Nacional e a Câmara dos Deputados.
Sob o espectro de uma análise à luz da Constituição Federal de 1988 (CF/88), não há dúvidas de que a interferência do Legislativo configura-se inconstitucional por flagrante violação ao sistema de freios e contrapesos.
I. Da inconstitucionalidade
O estudo da Ciência da Administração Pública (que é ramo da Ciência Política) aponta que até o final do século XIX o foco em torno das entidades governamentais cingia-se ao aspecto político, isto é, qual seria sua missão institucional dentro da realização da manifestação do poder estatal. A partir dessa época e no início do século XX as atenções começaram a se voltar também para o aspecto administrativo dos órgãos públicos, vindo à luz questões envolvendo planejamento, estratégias de ação, organização, direção, gestão de pessoal, gestão financeira, metodologias de trabalho etc.
Decorrente disso surgiram duas escolas teóricas sobre o tema: uma separatista, pregando que, embora a política determine as tarefas da Administração, as questões administrativas não são questões políticas; e a outra que entende que as atividades administrativas devem sofrer a interferência das forças políticas. Com base nessa segunda corrente poder-se-ia argumentar que a influência política do Legislativo em decidir o destino do COAF é legítima. Mas não é assim que ocorre porque referida escola de pensamento não pode prevalecer diante das expressas regras previstas na Constituição Federal.
Montesquieu elaborou sua teoria da Tripartição do Poder na obra Do espírito das leis, publicada em 1748, em que ficou consignado que as Funções Executiva, Legislativa e Judiciária deveriam ser independentes entre si e titularizadas por diferentes pessoas.
Embora diga-se que o filósofo francês já tivesse previsto a limitação do poder pelo próprio poder em sua teoria tripartite (“le pouvoir arrête le pouvoir”), atribui-se aos norte-americanos o crédito por terem aperfeiçoado o modelo montesquieuniano quando da elaboração de sua Constituição de 1787. Não bastava a separação das Funções em três; era necessário prever mecanismos que impedissem a supremacia de um Poder em face do(s) outro(s) através de um controle recíproco que mantivesse a independência e a harmonia. É o que se entende por sistema de freios e contrapesos (ou checks and balances).
A CF/88 adotou a Tripartição dos Poderes e o checks and balances expressamente como princípio fundante da República. Em seu artigo 2º consta que “São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.”
Na prática esse sistema de equilíbrio pode ser percebido em várias regras contidas na Constituição Federal de 1988: veto presidencial às leis ordinárias e complementares elaboradas pelo Congresso Nacional (art. 66, § 1º); escolha de 1/3 dos Ministros do Tribunal de Contas da União (que é órgão auxiliar do Legislativo) pelo Presidente da República (art. 84, inc. XV); julgamento das contas anuais da Presidência e apreciação dos orçamentos propostos pelo Presidente feitos pelo Congresso Nacional (art. 166, caput e § 1º, inc. I); controle de constitucionalidade do Judiciário em face de leis e atos normativos federais e estaduais (art. 102, inc. I); escolha de Ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) pelo Presidente e submetida à aprovação do Senado (art. 101, p. Único); etc.
Dentro do sistema de freios e contrapesos também existem normas constitucionais que versam sobre a organização dos Ministérios e órgãos da Administração federal. Trata-se do artigo 48, inc. XI, artigo 61, § 1º, inc. II, alínea “e”, artigo 84, inc. VI, alínea “a”, e o artigo 88:
“Art. 48. Cabe ao Congresso Nacional, com a sanção do Presidente da República, não exigida esta para o especificado nos arts. 49, 51 e 52, dispor sobre todas as matérias de competência da União, especialmente sobre: (…) XI – criação e extinção de Ministérios e órgãos da administração pública;”
“Art. 61. A iniciativa das leis complementares e ordinárias cabe a qualquer membro ou Comissão da Câmara dos Deputados, do Senado Federal ou do Congresso Nacional, ao Presidente da República, ao Supremo Tribunal Federal, aos Tribunais Superiores, ao Procurador-Geral da República e aos cidadãos, na forma e nos casos previstos nesta Constituição.
§ 1º São de iniciativa privativa do Presidente da República as leis que:
II – disponham sobre: (…)
e) criação e extinção de Ministérios e órgãos da administração pública, observado o disposto no art. 84, VI;”
“Art. 84. Compete privativamente ao Presidente da República: (…)
VI – dispor, mediante decreto, sobre: a) organização e funcionamento da administração federal, quando não implicar aumento de despesa nem criação ou extinção de órgãos públicos; (…)”
“Art. 88. A lei disporá sobre a criação e extinção de Ministérios e órgãos da administração pública.”
Verifica-se pelas normas acima duas conclusões cristalinas:
1a) quando a organização da Administração culminar na criação e extinção de Ministérios e órgãos é exigida lei (em sentido formal – in casu lei ordinária), cuja competência é concorrente entre o Congresso Nacional (art, 48, inc. XI) e o Chefe do Poder Executivo (art. 61, § 1º, inc. II, alínea “e”);
2a) quando a organização da Administração não resultar na criação ou extinção de órgãos – e nem aumento de despesas – não é preciso a existência de lei, bastando o decreto autônomo do Presidente da República.
A decisão do Presidente Bolsonaro em relação ao órgão de controle financeiro junto à pasta do Ministro Sérgio Moro (MJ) não implica nem aumento de despesas e, obviamente, nem sua criação ou extinção, mas tão somente sua readequação dentro do fluxograma da Administração federal.
Portanto, como a interferência do Congresso Nacional só cabe nas hipóteses de criação ou extinção de órgãos, a decisão do Parlamento em determinar sob qual Ministério ficará o COAF é indevida. A opção de qual pasta absorverá o COAF é assunto de organização administrativa interna corporis restrito ao âmbito do Poder Executivo.
Essa conclusão fica ainda mais enrobustecida se houver a confrontação da atual redação do artigo 88 com a antiga.
Em seu texto original era assim previsto: “Art. 88. A lei disporá sobre a criação, estruturação e atribuições dos Ministérios.” Se até o ano de 2001 (data da Emenda Constitucional nº 32 que alterou o dispositivo) era exigido lei para tratar sobre a estruturação dos Ministérios, após aquela data, como visto, o artigo 88 passou a enunciar que, seja para Ministérios ou órgãos da administração pública, a exigência de lei será apenas para a criação e extinção.
Aliás, não só o artigo 88 teve sua redação atual definida pela EC nº 32, senão que também o tiveram os outros dispositivos mencionados (artigo 48, inc. XI, artigo 61, § 1º, inc. II, alínea “e”, artigo 84, inc. VI, alínea “a”).
Isso não foi ao acaso, senão que revelou o propósito consciente do legislador derivado em reequilibrar o sistema de freios e contrapesos tocante à titularidade precípua de organizar a estrutura da Administração. Nada mais correto que essa permissão da CF/88 ao Executivo – através do decreto autônomo – para que dispusesse de sua estrutura com considerável grau de discricionariedade, ficando a participação do Legislativo restringida somente aos casos de criação ou extinção de órgãos e de aumento de despesas.
Sobre a EC nº 32 cumpre dizer que ela toda representa em sua essência o propósito de concretizar o checks and balances reestabelecedor do equilíbrio entre os Poderes.
Além das modificações acima mencionadas em que se pretendeu afastar a indevida ingerência do Congresso Nacional nos assuntos de organização administrativa do Executivo, também houve, em sentido contrário, o escopo de mitigar o poder do Presidente da República em legislar através de medidas provisórias bem como o de evitar que tumultuasse os trabalhos do Parlamento com os trancamentos de pauta advindos da avalanche de MPs.
Em sua redação original o artigo 62 da CF/88 previa que a edição de medidas provisórias apenas precisaria atender aos requisitos de relevância e urgência. Até a promulgação da EC nº 32 em 2001 foram editadas originariamente 616 (seiscentos e dezesseis) medidas provisórias, acrescidas de 5513 (cinco mil quinhentos e treze) reedições, o que resulta em 6102 (seis mil cento e duas) medidas provisórias.
Constatado o exagero na utilização dessa espécie legislativa pelos presidentes da República no decorrer dos anos noventa, o constituinte derivado entendeu por bem trazer formas de limitar o uso das MPs. Assim, a partir das modificações havidas na Lei Maior em decorrência da EC nº 32, o Presidente da República ficou impossibilitado de editar medidas provisórias sobre várias matérias (nacionalidade, cidadania, direitos políticos, partidos políticos, direito eleitoral, direito penal, processual penal, processual civil etc).
Está cristalino que ao modificar a Constituição por meio da referida emenda o propósito do legislador de 2001 foi o de readequar a distribuição do poder entre o Executivo e o Legislativo.
No campo da hermenêutica jurídica, é bem verdade dizer que a Escola Exegética em certa medida substituiu a interpretação calcada no espírito do legislador (ou seja, a intenção do legislador no contexto de sua época – mens legislatoris) pela interpretação calcada no espírito da lei (a lei como produto autônomo da vontade do parlamentar e passível de interpretação no decorrer do tempo, e não apenas à época de sua produção – mens legis). Mas a realidade é que mesmo hoje, quase vinte anos depois, não paira dúvida que as alterações da EC nº 32 continuam sendo vistas como providenciais regras para a consecução do sistema de freios e contrapesos.
É nesse cenário que a decisão presidencial deve prevalecer, permanecendo o COAF junto ao Ministério da Justiça e Segurança Pública. A interferência da Comissão Mista do Congresso Nacional é inconstitucional porque diretamente fere a atribuição privativa do Executivo em organizar a Administração federal da forma que melhor atender sua pretensão de governar, e porque indiretamente desrespeita a Constituição tocante o sistema de freios e contrapesos previsto em seu artigo 2º, parágrafo único.
II. Do caso concreto
As propostas do Presidente Bolsonaro em relação ao COAF partiram de duas iniciativas legislativas. Uma delas a Medida Provisória nº 870; a outra o Decreto autônomo nº 9663/2019.
O artigo 72 da MP nº 870 pretendeu alterar o caput do artigo 14 da Lei nº 9613/98 (Lei de Combate à Lavagem de Dinheiro). Se na redação original consta “Fica criado, no âmbito do Ministério da Fazenda, o Conselho de Controle de Atividades Financeiras – COAF, na medida provisória consta que “Fica criado, no âmbito do Ministério da Justiça e Segurança Pública, o Conselho de Controle de Atividades Financeiras – COAF”.
Por determinação do artigo 62 da CF/88, as MPs devem ser apreciadas pelo Congresso Nacional: primeiro por uma Comissão Mista (§ 9º) e depois por cada uma de suas Casas (§ 5º). Em razão disso é que o assunto acabou sendo submetido à apreciação do Legislativo, o qual, por meio da Comissão Mista, não acolheu a alteração do caput do artigo 14 da Lei nº 9.613/98, mantendo, então, o COAF junto ao Ministério da Fazenda (sic da Economia).
Mas pensa-se que não havia a impreterível necessidade do presidente submeter o tema ao Congresso Nacional em virtude de duas razões:
1ª) por disposição constitucional, como visto, a organização da Administração é assunto interna corporis do Executivo, bastando que a posição estrutural do COAF fosse definida por decreto autônomo;
2a) que a mudança proposta na redação do artigo 14 da Lei de Combate à Lavagem de Dinheiro é inapropriada.
Sobre esse segundo ponto, a redação prevista na MP nº 870 prevê que “será criado, no âmbito do MJ, o COAF”. Ora, a redação é falha porque o COAF já foi criado (em 1998). Substituir “Ministério da Fazenda” por “Ministério da Justiça” no caput do artigo 14 não tem aptidão para alterar algo já concretizado no mundo dos fatos. O COAF já existe. O que o governo pretende é deslocar o órgão de controle existente para o MJ, e não criá-lo.
Portanto, diante dessa impropriedade, se os parlamentares mantiverem a redação original da lei, isto é, o COAF “criado no âmbito do Ministério da Fazenda” é até o correto a ser feito. Mas como dito anteriormente, o fato da lei seguir com o COAF “criado” junto ao Ministério da Fazenda não impede que, por decreto autônomo (afinal não haverá aumento de despesa nem criação/extinção do órgão), o Presidente da República organize a Administração e desloque o órgão de controle para a pasta da Justiça e Segurança Pública.
Dessa feita, as conclusões são as seguintes:
1º) parece mais adequado que a redação do caput do artigo 14 da Lei nº 9613/98 prossiga tal como é, não acolhendo a redação proposta na MP nº 870;
2º) mesmo que caia por terra o texto contido na Medida Provisória que altera o caput do artigo 14, o diploma legal que subsistirá para definir os destinos do COAF será o Decreto Autônomo 9663/2019, o qual, por se tratar de tema interna corporis afeto à questão de como o Presidente da República que montar sua Administração, é absolutamente legítimo ao prever no artigo 1º de seu Anexo: “O Conselho de Controle de Atividades Financeiras – Coaf, órgão de deliberação coletiva com jurisdição no território nacional, criado pela Lei nº 9.613, de 3 de março de 1998, integrante da estrutura do Ministério da Justiça e Segurança Pública” (veja que está prevendo a integração do COAF ao MJ, e não sua criação, tal como ocorre com o texto da Medida Provisória).
A fim de que o celeuma fosse logo resolvido, entende-se que o ideal seria o Presidente da República, por meio da Advocacia-Geral da União (AGU), propusesse perante o STF uma ação declaratória de constitucionalidade (ADC).
Uma análise da Corte Máxima com a adequada observação da Constituição, tal como acima demonstrado, seguramente implicaria decisão reconhecendo que o Decreto 9663/2019, ao prever o COAF integrado ao Ministério da Justiça e Segurança Pública, é constitucional. Munido com a decisão acerca do Decreto por meio da ADC, eventual manobra do Congresso Nacional com a Medida Provisória nº 870 retirando o COAF das mãos do Ministro Sérgio Moro não surtiria efeitos.
Há de se recordar que quase quarenta por cento de Deputados federais e Senadores são investigados ou alvo de ações penais. O delito de lavagem de dinheiro guarda estreita relação com o famoso crime de “caixa dois”, que se consubstancia em uma danosa prática enraizada na cultura política do país. A depender de grande parte dos congressistas que dela se valem, é imprescindível que não haja a ruptura desse status quo criminoso e antirrepublicano. Disso é fácil perceber que a interferência dos congressistas em face da localização administrativa do COAF está a serviço da impunidade.
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