"Acho que em qualquer época eu teria amado a liberdade; mas na época em que vivemos, sinto-me propenso a idolatrá-la"
(Tocqueville)
Alguns dados sobre o experimento sueco no combate à pandemia
O dogma do lockdown
Quando no início de 2020 a pandemia do coronavírus irrompeu mundo afora, a imposição de medidas draconianas foi defendida com força dogmática. Em artigo acadêmico, os professores Tom Ginsburg e Mila Versteeg, respectivamente, da Universidade de Chicago e Virgínia, afirmaram: “nunca antes as democracias do mundo experimentaram simultaneamente uma maior contração das liberdades civis como durante a pandemia de 2020”.
Tenho a impressão de que os argumentos eram basicamente três: o lockdown teria funcionado na China, resultando numa rápida redução das infecções em Whuhan, após relativamente poucos dias de paralisação; o “estudo” do Imperial College projetava um número inaceitável de óbitos e uma redução brutal mediante uso do isolamento radical; e, por fim, haveria um suposto consenso internacional de que as medidas extremistas seriam as únicas que poderiam ser defendidas por pessoas responsáveis.
Com isso, mesmo sem evidências científicas conclusivas, plano elaborado de reabertura, ou prazos e previsões, governos mundo afora passaram a fechar suas economias e trancafiar suas populações em casa. Várias pessoas passaram a defender que essa era a única saída possível. Em entrevista para a Gazeta do Povo, o economista Alexandre Schwartsman afirmou, em meados de março: “perdemos há semanas qualquer alternativa que não seja o lockdown“. O ministro do STF, Luís Roberto Barroso, num típico discurso dogmatista que invoca a ciência como argumento de autoridade, afirmou em entrevista à UOL: “a ciência defendeu o isolamento social para impedir um genocídio de pessoas“. O ministro ainda deu declarações no sentido de que onde há consenso médico, não poderia haver política de Estado em contrário. O ex-ministro da Saúde foi na mesma linha. Um grupo de juristas aloprados chegou a publicar artigo comparando políticas que não adotassem o isolamento com a tentativa de fazer o sol nascer no Oeste e se por no Leste mediante decretos presidenciais.
O discurso histérico que se impunha à sociedade, banindo questionamentos, era uníssono: não há alternativa, não há opção. Qualquer coisa que não seja obedecer à corrente que Guilherme Fiuza apelidou de “seita da terra parada” era um genocídio.
De lá pra cá, no entanto, inúmeras evidências empíricas mostraram que jamais existiu aquele grau de consenso. Ademais, vários dos dados utilizados pelos defensores do lockdown se mostraram falhos e falsos.
O fato é que sempre tivemos opção. O isolamento radical e o forte clima antiliberal que atacou o Ocidente nos últimos meses não foi uma fatalidade: foi uma escolha. Ele não foi receitado pela ciência (ainda que contasse com a aprovação de vários cientistas), mas imposto pela decisão política de determinados grupos que utilizavam a parcela da opinião científica que lhes era conveniente.
Vejamos quais as evidências que surgiram de lá para cá e nos parecem tornar insustentável aquele clima de dogmatismo uníssono; pelo contrário, tornam cada vez mais questionável que o bloqueio tenha sido a medida correta.
Alguns dados sobre as medidas de bloqueio
Em primeiro lugar, poucas semanas após países ocidentais iniciarem as medidas de lockdown, a decepção com os resultados já era inescondível. Matéria publicada na Itália e traduzida pela Gazeta do Povo trazia a seguinte chamada: “Contágios e mortes não diminuem: o ‘modelo italiano’ falhou”. O texto, basicamente, descrevia como os números da pandemia na Itália após a decretação do lockdown frustravam as expectativas e as projeções anunciadas pelo Governo.
Fenômeno semelhante foi visto depois na Espanha, na Bélgica e em Nova Iorque. No referido Estado americano, após cerca de 50 dias de severo bloqueio, pesquisa revelou que as novas internações atingiam majoritariamente pessoas sob isolamento: 66% estavam em casa e outros 18% em residências de repouso.
O Financial Times elaborou uma matéria sobre o “excesso de mortalidade” (o quanto a mortalidade em geral, neste ano, excedeu à média dos anos anteriores). A reportagem traz um gráfico da dinâmica do excesso de mortalidade em alguns países e cidades, dentre as quais Madri, Londres e Nova Iorque, todas sob lockdown. Como se pode ver, as curvas não parecem exatamente achatadas:
Uma outra reportagem, dessa vez elaborada pela Revista Britânica The Economist, cujos gráficos foram divulgados no site OurWorldinData, da Universidade da Oxford (um dos repositórios mais elaborados de dados sobre a pandemia), mostrou a dinâmica do excesso de mortalidade em vários países por meio de gráficos. Abaixo, seguem os desenhos relativos à Bélgica e à Inglaterra. É interessante que o gráfico registra quando se iniciou o lockdown. Nele é perceptível que a dinâmica de mortes ocorre quase toda após a implementação da medida:
Quando os resultados aquém do esperado começaram a se intensificar nos países sob bloqueio, seus defensores passaram a apelar para o contrafactual: sem o lockdown teria sido pior. O fundamento dessa afirmação? O “estudo” do Imperial College que projetava uma catástrofe de milhões e milhões de mortos sobre a terra. Mais de um milhão no Brasil; mais de dois nos Estados Unidos; 500 mil na Inglaterra… e por aí vai.
Na medida em que os números de óbitos nos países que decretavam o bloqueio, apesar de seguirem crescendo após a imposição da medida, eram inferiores à projeções do Imperial College, alardeava-se que a paralisação fora um sucesso.
O problema é que um modelo não se confunde com a realidade. O modelo do Imperial College não era uma evidência fática. Era apenas uma projeção. Projeções podem errar. E, no caso concreto, temos todas as razões para acreditar que de fato elas erraram. Em post anterior, já alertávamos para o risco de tomar modelos como se evidências fossem:
é interessante aqui corrigir um equívoco que tem sido comum em abordagens sobre o tema: apresentar modelos de contágio e eficácia de medidas de isolamento social como se eles fossem efetivas evidências. De modo algum. Modelos são, basicamente, fórmulas de predição com base em determinadas suposições (como taxa de mortalidade, velocidade de contágio etc.). Contudo, esses modelos podem vir a se mostrar completamente equivocados em vista de reais evidências resultantes da paulatina coleta e análise de dados à medida que o fenômeno da pandemia se desenrola.”
Surgiu, então, a segunda evidência a questionar um dos argumentos em favor do dogma do lockdown. Com o passar dos meses sem que a Suécia decretasse o isolamento geral, foi possível constatar que as projeções do Imperial College estavam equivocadas: elas superestimam enormemente o número de vítimas fatais na hipótese de não haver isolamento social. Sabemos disso, pois aplicado para o caso da Suécia, aquela metodologia apontava que, na hipótese de ser mantida a atual resposta do governo sueco, o número de mortes passaria de 40 mil em 1º de maio, e nesse dia o sistema de saúde já teria entrado em colapso. Contudo, na data indicada o país escandinavo chegava a pouco mais de 2,5 mil mortes e seus hospitais estavam longe de colapsar. Mais: até o fim de junho, a Suécia teria registrado cerca de 96 mil mortes, segundo o modelo. Estamos em agosto, e o país atingiu pouco mais de 5.700 óbitos.
Atualmente, o número de óbitos diários na Suécia já alcançou forte redução, como se poder ver do gráfico a seguir:
Apenas mais um dado sobre o modelo do Imperial College, que já revelamos em artigo anterior: o pesquisador mais famoso responsável pelo estudo, Neil Ferguson, já era conhecido por elaborar estudos alarmistas mesmo antes do coronavírus. Curiosamente, de modo pitoresco e caricatural, mais tarde ele saiu da equipe do governo britânico, por ter furado a quarentena para se encontrar com uma amante.
Outro ponto relevante: devemos meditar sobre a autopromoção que a propaganda alarmista causa quando ela consegue forçar a adesão às políticas que propõem: se a Suécia houvesse embarcado na histeria dos quase 100 mil mortos, e decretado lockdown, muitos hoje estariam atribuindo a redução ao bloqueio. Porém, não teria qualquer ligação com ele. Isso pode ter ocorrido em vários lugares que adotaram o lockdown e apresentaram resultados positivos, mas possivelmente não causados pelo isolamento.
Com o passar do tempo, uma terceira coluna atingiu o dogma do suposto consenso acerca da eficiência do lockdown. Surgiram estudos (alguns deles de entidades bastante renomadas) com uma metodologia que parece fazer mais sentido: basicamente, tentando comparar os resultados dos países no combate à pandemia e examinar se há correlação com as medidas de isolamento adotadas. Aqui não se compara projeção com realidade, mas realidade com realidade.
Um primeiro artigo nesse sentido, foi divulgado no Portal de estudos sobre ciências da saúde MedRVix, concluindo em seu abstract:
“O presente estudo fenomenológico avalia os impactos das estratégias de bloqueio total aplicadas na Itália, França, Espanha e Reino Unido, na desaceleração do surto 2020 COVID-19. Comparando a trajetória da epidemia antes e após o bloqueio, NÃO ENCONTRAMOS EVIDÊNCIAS DE DESCONTINUIDADE na taxa de crescimento, tempo de duplicação e tendências dos números de reprodução. Extrapolando as tendências da taxa de crescimento antes do bloqueio, fornecemos estimativas do número de mortos na ausência de políticas de bloqueio e mostramos que ESSAS ESTRATÉGIAS PODEM NÃO TER SALVADO NENHUMA VIDA na Europa Ocidental. Também mostramos que os países vizinhos que aplicam medidas de distanciamento social menos restritivas (em oposição à contenção domiciliar imposta pela polícia) experimentam uma evolução temporal muito semelhante da epidemia.”
Mais tarde, apareceram dois estudos de maior peso.
O primeiro, elaborado pela Universidade de Oxford e divulgado em reportagem da Bloomberg, examinou os países europeus e não encontrou correlação linear e necessária entre o nível de restrição à mobilidade (Stringency Index) e o volume do excesso de mortalidade neste ano. Por outro lado, o estudo verificou uma maior recessão econômica nos países que permaneceram fechados de modo mais severo e por mais tempo.
O segundo estudo, encomendado pela JP Morgan, comparando o impacto do coronavírus entre os estados americanos em cotejo com os diferentes graus de medidas de isolamento adotadas, também não constatou correlação necessária. Matéria que divulgou o estudo registrou: “Lockdowns falharam em alterar o curso da pandemia e destruíram milhões de lares mundo afora”; “Estudo da JP Morgan diz que velocidade das contaminações caíram após a relativização dos lockdowns“; “Isso sugere que o vírus tem ‘dinâmica própria’ a qual ‘não está relacionada’ às medidas de isolamento”. O estudo ainda registrou: “Embora muitas vezes ouvimos que os lockdowns são motivados por modelos científicos e que existe uma relação exata entre o nível de atividade econômica e a disseminação do vírus, isso não é suportado pelos dados”.
À limitada eficácia sanitária do bloqueio, temos de adicionar seus pesados custos humanos e sociais: recessão econômica com impacto sobre a vida e a saúde; desemprego e falências; perdas educacionais pela paralisação das escolas; mortes por desespero (depressão, suicídios, abuso de drogas); violência doméstica; restrição das liberdades etc., etc.
De um modo ou de outro, com a pandemia já bastante reduzida na Suécia, é possível extrair algumas conclusões a partir de seus números.
O números da Suécia
Para a análise dos números da Suécia, utilizaremos, basicamente, dados e gráficos que vem sendo divulgados pelo Professor de Oxford Paul Yowell, em suas redes sociais. Estudioso do uso de argumentos morais e empíricos, Yowell acaba transitando bem tanto pelos abstrações do mundo do direito quanto pelos dados concretos das ciências sociais. Ele tem atualizado com alguma frequência informações sobre o experimento sueco. Quem tiver interesse, recomendamos que siga seu perfil no Twitter.
Primeiramente, cabe repisar que, conforme gráfico acima, o número de mortes na Suécia já se encontra em níveis bastante reduzidos. Ademais, a velocidade das contaminações também registrou queda e já há menos de 40 leitos de UTI ocupados por COVID em todo o país. Isso é um grande indício de que o “efeito rebanho” (herd immunity), o qual foi contestado por algum tempo, funciona. De fato, num país com estabelecimentos abertos, escolas funcionando e fronteiras liberadas, não parece haver explicação mais robusta para a queda na mortalidade, do número de casos e das internações.
A redução foi comemorada pelo Professor Paul Yowell, no dia 31 de julho, quando o país escandinavo ficou alguns dias seguidos sem registrar mortes:
Sweden update 31 July. Zero deaths in past 3 days; 5 in the past week. No lockdowns, no masks, no panic. pic.twitter.com/4CLTBB01nT
— Paul Yowell (@pwyowell) July 31, 2020
Ele também publicou um gráfico que compara a dinâmica dos óbitos na Inglaterra e na Suécia. Na Inglaterra, apesar do lockdown, a taxa de óbitos em proporção à população é superior. Além disso, como revela a imagem, a evolução das curvas é extremamente parecida:
[Updated 31/07] Comparing the epidemic curve in England and Sweden. pic.twitter.com/6x8REwSkoS
— Paul Yowell (@pwyowell) July 31, 2020
Ademais, o Professor Yowell tem criticado que se examine o caso sueco apenas comparando-o com seus vizinhos escandinavos, o que ele diz configurar a chamada falácia da “coleta seletiva de dados” (“cherry-picking“, que no sentido literal significaria “apanhar cerejas”).
De fato, se fosse possível julgar a eficácia do isolamento apenas com base em duas regiões vizinhas, no Brasil exame semelhante poderia levar à conclusão de que o isolamento aumenta a mortalidade. Bastaria para isso comparar o Estado do Mato Grosso do Sul, que registrou baixos índices de isolamento e foi o menos afetado, com São Paulo, que permaneceu em isolamento horizontal por meses e sofreu muito mais.
Assim, o Professor Yowell mostra que numa comparação mais ampla, é possível perceber que a Suécia se saiu melhor do que com 4 países europeus e 12 estados americanos (todos eles sob isolamento legalmente imposto):
Sweden has fewer Covid-19 deaths per capita than 12 US states and 4 European countries, all of which imposed legal lockdowns. In analysing the success of lockdowns, comparing Sweden only to its Scandinavian neighbours is cherry-picking (the fallacy of incomplete evidence). pic.twitter.com/yE0UfoBJAA
— Paul Yowell (@pwyowell) August 3, 2020
Aliás, do gráfico é possível perceber que a Dinamarca tem mais do dobro de óbitos por milhão de habitantes da Noruega. Ora, se ambos os países recorreram a severas medidas de bloqueio, essa não pode ser a causa única e determinante dos resultados. Do contrário, teriam de ter sido semelhantes em ambos os países.
Ele apresenta, ainda, outros dados interessantes que colocam em cheque o argumento de que a Suécia teve uma mortalidade superior ao restante da Escandinávia em razão de não impor o lockdown. Nesse sentido, o Prof. Yowell revela que em algumas regiões limítrofes (Øresund), ambos os países tiveram níveis semelhantes de mortalidade, apesar de o lado dinamarquês estar fechado, enquanto o lado sueco ter permanecido aberto.
1/6 If the success of lockdowns is proven by lower mortality in Denmark, Norway, and Finland than in Sweden, then this should hold true in the Oresund region crossing Denmark and southern Sweden. In fact, Covid-19 mortality across the region is about the same. pic.twitter.com/TKPnFeZk12
— Paul Yowell (@pwyowell) August 7, 2020
Ele diz que na região limítrofe, provavelmente, a Suécia teve mortalidade reduzida por ter conseguido prestar uma maior assistência aos idosos, especialmente em casas destinadas aos cuidados dessas pessoas. Ele acredita que o grande ponto falho na Suécia foi o cuidado insuficiente com idosos, e que isso teria resultado em uma mortalidade elevada; não a ausência de lockdown.
Em suporte a essa conclusão, o Prof. Yowell apresenta os dados de excesso de mortalidade na Suécia seccionado por grupo etário. Ele, então, demonstra que abaixo de 65 anos, a mortalidade sueca em geral foi menor neste ano do que na média dos anteriores (2015-2019), tendo registrado até 4 de agosto apenas cerca de 230 óbitos por COVID entre pessoas abaixo de 60 anos:
In Sweden all-cause mortality this year is below average for people aged 64 and under. https://t.co/eLdUj0hEyn
— Paul Yowell (@pwyowell) July 24, 2020
Ele também apresenta dados consolidados, entre a população em geral, relativos ao excesso de mortalidade na Suécia neste ano:
Informative, detailed post showing that all-cause mortality in Sweden this year is broadly similar to previous years. Aligns with with earlier analysis by @HaraldofW. https://t.co/PqRTK3s6Oh
— Paul Yowell (@pwyowell) August 3, 2020
Bom, para além desses dados, teríamos de adicionar que a Suécia não sofreu (ao menos, não na mesma medida) os impactos sociais da quarentena, como aumento da violência doméstica, mortes por desespero (suicídio e abuso de álcool e drogas), prejuízos educacionais pelo fechamento das escolas, e pesados prejuízos econômicos (com seus comprovados efeitos sobre a saúde e a vida das pessoas).
Encerramos, assim, com um questionamento e uma provocação: levando tudo isso em conta, o lockdown foi a melhor opção? É difícil dizer, e provavelmente jamais haverá um estudo conclusivo. Pois não se trata de uma opção estritamente técnica. Cuida-se de decisão política, valendo-se de dados técnicos. Uma coisa nos parece fato: a questão não tem a resposta consensual que os dogmáticos afirmavam no princípio. Aos possíveis benefícios do lockdown é preciso descontar seus inevitáveis custos (como alertou a própria UNICEF), valendo a mesma coisa para qualquer política pública alternativa. Há mais de um modelo razoável e responsável, até porque não fechar o país não significa não fazer nada. Pode-se ampliar a saúde intensiva, promover testes, proteger idosos, estimular hábitos de distanciamento e higiene, lançar mão de tratamentos precoces etc. Como disse o responsável pela política sueca: “Acho que muitos países deveriam ter pensado duas vezes antes de decretar uma medida drástica como o lockdown”. “Isso, sim, foi experimental, não o modelo sueco”.
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