"Acho que em qualquer época eu teria amado a liberdade; mas na época em que vivemos, sinto-me propenso a idolatrá-la"
(Tocqueville)

Damares tem razão: ensino domiciliar não configura evasão escolar

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Em maio deste ano, o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos encaminhou ofício para os conselhos tutelares explicando que a prática do ensino domiciliar é constitucional, consoante orientação do STF (RE 888.815), pendendo apenas de regulamentação legal (em vias de ser criada, visto que já apresentado pelo Governo o Projeto de Lei nº 2.401/2019 que trata do matéria). Posto isso, o ofício orienta aos conselheiros tutelares a que:

  1. As crianças e adolescentes educados em casa não sejam identificados como se estivessem em abandono intelectual;
  2. As crianças e adolescentes educados em casa, bem como as famílias educadoras, sejam excluídas de eventuais listas de evasão escolar, até a tramitação final do PL 2.401/2019;
  3. Os procedimentos em andamento envolvendo famílias educadoras sejam sobrestados pelo mesmo período; e
  4. Em eventuais visitas ou solicitações realizadas pelos assistentes sociais às famílias educadoras, as mesmas sejam tratadas com a dignidade da pessoa humana, garantida pela Constituição Federal de 1988.

Para ler a íntegra do ofício: Oficício Ministerio de Direitos Humanos – Ensino Domiciliar.

O documento gerou certa celeuma jurídica por parte de órgãos militantes contra a liberdade educacional das famílias, inclusive com ameaças desproporcionais e infundadas de responsabilização da ministra e das secretárias do ministério.

Contudo, a análise dos fatos e do direito aplicável mostra que a orientação do Ministério dos Direitos Humanos está correta: apesar de pender de regulamentação legal, o que priva o exercício do ensino domiciliar da capacidade de conceder automaticamente a respectiva diplomação escolar, a adoção do homeschooling – por si só – não configura evasão escolar, muito menos abandono intelectual. Essas figuras jurídicas (evasão e abandono) só poderão ser cogitadas caso os pais ou responsáveis, comprovadamente, apresentem comportamento negligente no que toca à prática de atividades de transmissão do conhecimento ou segregarem socialmente os educandos.

Com efeito, a norma constitucional que proíbe a evasão escolar está prevista no art. 208, § 3º, da Constituição, a qual prevê: “Compete ao Poder Público (…) zelar, junto aos pais ou responsáveis, pela freqüência à escola”.

Como deve ser interpretado esse dispositivo? O STF deixou linhas importantes sobre isso no julgamento do RExt. 888.815 que declarou a constitucionalidade do homeschooling, julgando-o apenas pendente de regulamentação legal.

No voto condutor da decisão, o Ministro Alexandre de Moraes afirmou:

“o legislador constituinte previu o § 3º do art. 208, que estabelece:

Compete ao Poder Público recensear os educandos no ensino fundamental, fazer-lhes a chamada e zelar, junto aos pais ou responsáveis, pela frequência à escola.

Não me parece, como defendido por alguns, nas sustentações feitas na tribuna – as quais cumprimento -, que esse dispositivo constitucional, ao estabelecer frequência, vedaria totalmente a possibilidade do ensino domiciliar. De maneira alguma. Esse dispositivo reforça a ideia básica de solidariedade entre Família/Estado no dever de educação.

Inclusive, logo após, o ministro cita o caso do ensino à distância, para demonstrar que já há métodos educacionais cuja frequência não é mensurada pela forma tradicional.

De fato, escrevemos outro artigo, no qual tratamos de nota técnica das Promotorias de Justiça de Defesa da Educação (Proeduc) do Ministério Público do Distrito Federal, de 29 de agosto do ano passado, expressando o entendimento de que as famílias têm o direito de escolha na educação de seus filhos, incluindo a educação em casa (homeschooling). Naquele texto registramos que a nota cita que “no ano de 2016, o Conselho Nacional de Educação, por meio da Câmara de Educação Básico, regulamentou a oferta de cursos e programas de ensino médio a distância, em consonância com a nova redação dada ao art. 36 da LDB (…) modalidade introduzida no sistema educacional pela Lei nº 13.415/2015 que instituiu a reforma do ensino médio, o que por si só demonstra a realidade de introdução de outras formas de educação em prol da efetividade do direito educacional.”

Pois bem, seguindo no voto do ministro, ele ressalta que a exigência constitucional de frequência escolar tem duas finalidades: 1) garantir que haja a transmissão do conteúdo acadêmico; e, 2) assegurar que à criança e ao adolescente estejam sendo proporcionadas ocasiões de socialização.

Abro aspas para registrar as palavras do julgador:

O controle de frequência tem dois papeis principais, sob pena de descumprimento dos princípios estabelecidos na Constituição para a educação. O estabelecimento dessa frequência será feito não só para a avaliação – e qual o melhor tipo de avaliação no ensino domiciliar deve ser discutido e estabelecido pela legislação –, porém, mais do que isso, a Constituição exige que a educação pela família e pelo Estado, em solidariedade, vise à convivência comunitária. A frequência, que deverá ser analisada por especialistas, mesmo que seja diversa da tradicional, não irá apenas avaliar pedagogicamente o aluno, mas também será necessário que permita a plena avaliação de sua convivência comunitária e da concretização de sua socialização, a partir da pluralidade de ideias.

Ou seja, a norma que veda a evasão escolar serve, não para necessariamente impor a matrícula em escolas, mas para obrigar que se respeite o direito da criança e do adolescente ao ensino das disciplinas básicas e à convivência comunitária.

No jargão jurídico, pode-se dizer que a interpretação da norma constitucional em questão não deve ser literal, mas finalística ou teleológica. Isto é, deve-se assegurar que as finalidades protegidas pela norma (transmissão de conhecimento acadêmico e socialização) estejam sendo cumpridas.

Em sentido semelhante, ao tratar das regras que cuidam da exigência de frequência escolar, o ministro Luís Roberto Barroso, apesar de voto vencido quanto à tese principal daquele julgado, fez observações que permanecem válidas quanto ao ponto: “essas regras que falam em matrícula e controle de frequência são regras que se aplicam aos pais que tenham optado, como a maioria de fato opta, pela educação escolar, pela escolarização formal dos seus filhos, porque a própria Lei de Diretrizes e Bases da Educação, no seu art. 1º, § 1º diz: ‘§ 1º Esta Lei disciplina a educação escolar, que se desenvolve, predominantemente, por meio do ensino, em instituições próprias.’ Portanto, a lei cuida da educação escolar. Não exclui, eu penso, a possibilidade de outros mecanismos e outras escolhas por parte dos pais.”

E ainda:

48. Diferentemente do que afirmado pelos opositores ao ensino domiciliar, contudo, a finalidade do art. 208, § 3º não é adotar a escolarização como único método de ensino autorizado pela ordem constitucional, mas sim assegurar que os pais optantes por essa modalidade fiscalizem a frequência de seus filhos nos bancos escolares e que o poder público realize o devido recenseamento dos alunos. Não se trata aqui de uma proibição ao homeschooling, mas sim de um reforço ao dever do Estado e dos pais optantes do ensino escolar de acompanharem a presença das crianças e adolescentes matriculadas em instituições de ensino. E mais: a norma está claramente inserida em artigo específico que trata do “dever do Estado com a educação” (art. 208, caput) e não do dever dos pais com a educação. Cabe ao poder público disponibilizar o acesso às escolas, mas cabe aos pais, no seu dever constitucional de educar seus filhos (art. 229, CF/88), escolher o método e o tipo de educação que será dada, o que inclui o ensino doméstico como uma modalidade legítima dentro da pluralidade pedagógica reconhecida pela Constituição (art. 206, III). Em outras palavras, caso decida pelo método escolar de ensino, os pais devem assegurar que seus filhos compareçam à escola, mas isso não veda a adoção de método de ensino alternativo como o homeschooling.

49. A interpretação adequada dos dispositivos infraconstitucionais também corrobora esse raciocínio. Por um lado, o art. 1º, § 1º, da Lei nº 9.394/1996 – Lei de Diretrizes e Bases da Educação – esclarece que o diploma legislativo “disciplina a educação escolar, que se desenvolve, predominantemente, por meio do ensino, em instituições próprias”, o que leva à conclusão de que a lei não regulamenta outras formas de ensino não escolar, como é o caso da educação domiciliar. Logo, a obrigação de matrícula está diretamente relacionada a opção pela educação escolar, predominantemente escolhida pelos pais brasileiros, mas não uma proibição a outro método de ensino formal. Por outro lado, a Lei nº 8.069/1996 – Estatuto da Criança e do Adolescente – também afirma que a interpretação do diploma deve levar em consideração o melhor interesse da criança e do adolescente (art. 6º), que os pais têm o dever de sustento, guarda e educação dos seus filhos (art. 22) e que, no processo educacional, devem ser respeitados os valores culturais, artísticos e históricos próprios do contexto social da criança e do adolescente, garantindo-se a estes a liberdade da criação e o acesso às fontes de cultura (art. 58). Como já afirmado, considero que os pais são mais aptos a definirem se o estudo domiciliar ou escolar é a melhor opção para os seus filhos. A opção pelo ensino escolar, porém, exige a matrícula em instituição da rede regular de ensino, conforme disposto no art. 55 do ECA.

Assim, concluímos que a adoção do homeschooling – por si só – não configura evasão escolar. A exigência de regulamentação legal para sua prática – que por ora representa a tese defendida pela maioria dos ministros da Suprema Corte – não implica em que sua adoção configure – por si só – situação equiparável à evasão escolar. Essa ausência de previsão legal limita-se a impedir que o exercício da educação domiciliar possa ensejar a concessão de diplomas aos seus adeptos, dificuldade que tem sido contornada pelas famílias educadoras, em geral, mediante a frequência em curso supletivo quando do atingimento da idade necessária.

Logo, por ora, até que sobrevenha legislação regulamentando a matéria e estabelecendo parâmetros para as famílias educadoras, cabe às autoridades envolvidas examinar o caso concreto, imputando a prática de evasão escolar apenas quando, comprovadamente, a criança ou adolescente não estiver recebendo a transmissão dos conhecimentos próprios para a idade ou sofrer segregação social (diga-se de passagem, algo muito raro de acontecer no homeschooling, conforme inúmero estudos empíricos – para saber mais aqui).

Ademais, quanto à configuração ou não do crime de abandono intelectual, parece ainda mais claro que o exercício do ensino domiciliar não se enquadra no tipo penal. Aliás, parece-me aberrante que se cogite tal hipótese.

Na doutrina, há vários artigos que – mesmo quando contrários ao homeschooling – rejeitam que sua prática configure crime. Em texto sobre o tema, o jurista Felipe Augusto Cury, acertadamente, conclui: “Ainda que se adote a interpretação de que o homeschooling é ilícito, certamente não se trata de um ilícito penal, não sendo possível a imputação do crime de abandono intelectual aos pais que optam pelo homeschooling.”

No voto antes mencionado, o ministro Luís Roberto Barroso também abordou essa questão:

50. Na mesma linha, ainda tratando da legislação infraconstitucional pertinente ao tema, não há como afirmar que pais que optam pelo ensino domiciliar promovem o abandono intelectual de seus filhos, crime previsto no art. 246 do Código Penal. Como já mencionado, a opção pelo ensino doméstico é diametralmente oposta à ideia de abandono intelectual, uma vez que os pais assumem responsabilidade ainda maior na educação dos seus filhos. Nada garante que os pais que apenas matriculam seus filhos na escola, sem acompanhá-los devidamente, asseguram uma melhor educação do que os que optam pelo ensino domiciliar. Pelo contrário, o esforço inerente ao homeschooling parece demonstrar uma preocupação ainda maior com a educação das crianças e adolescentes.

Igualmente o ministro Gilmar Mendes, mesmo demonstrando resistência ao homeschooling em seu voto, também ressaltou: “Logicamente, a prática da educação domiciliar não deve configurar, por si só e automaticamente, o crime de abandono intelectual, mas é claro que o tipo penal em questão presta-se a garantir que a educação seja concretizada em toda a sua amplitude”.

Em suma, diante da legislação aplicável ao tema e das considerações acima, concluímos que:

  1. em razão da inexistência de regulamentação legal, o exercício do ensino domiciliar está privado da capacidade de conceder automaticamente a respectiva diplomação escolar;
  2. de todo modo, a adoção do homeschooling – por si só – não configura evasão escolar, tampouco abandono intelectual;
  3. até que advenha lei regulamentando a prática do ensino domiciliar, cabe às autoridades envolvidas examinar o caso concreto, configurando-se a evasão escolar apenas quando, comprovadamente, a criança ou adolescente não estiver recebendo a transmissão dos conhecimentos básicos próprios para a idade ou sofrer segregação social.

À vista dessas razões, acertado o ofício do Ministério dos Direitos Humanos. Ainda mais quando se considera que a prática do ensino domiciliar é hoje uma prática social consolidada, atingindo cerca de 10 mil famílias, segundo a ANED – Associação Nacional de Ensino Domiciliar, e em vias de ser regulamentada. Inclusive, hoje mesmo, o Deputado Felipe Franceschini fez a seguinte publicação em sua conta no Twitter:

Francischini Homeschooling

Portanto, como também conclui a ANED em nota de apoio à Ministra dos Direitos Humanos, “como a constitucionalidade do ensino domiciliar já foi reconhecida, tratando-se de uma realidade social, e havendo projetos de lei sobre o tema tramitando em prioridade, não faria sentido obrigar pais que estão provendo adequadamente a educação de seus filhos a se submeterem a um processo artificial, forçado e por vezes difícil de adaptação escolar, para daqui a poucos meses retornarem ao ensino domiciliar, por mera omissão legislativa. Logo, a orientação repassada pelo MMDFH aos Conselhos Tutelares, além de não encerrar qualquer ilegalidade, é consentânea com a realidade e com o bom senso.”

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