"Acho que em qualquer época eu teria amado a liberdade; mas na época em que vivemos, sinto-me propenso a idolatrá-la"
(Tocqueville)
Afinal de contas: o que é a dignidade da pessoa humana?
O objetivo do presente texto é responder à seguinte pergunta: o que é a dignidade da pessoa humana?
Em outros dois futuros textos iremos trabalhar outros dois pontos relacionados a essa questão: qual o fundamento da dignidade humana, ou seja, o que faz com que o ser humano seja detentor de uma dignidade singular; e quais as consequências jurídicas da dignidade humana, que basicamente são o que hoje chamamos de direitos humanos.
No tocante à busca pela essência da dignidade humana, um bom modo de enfrentar a questão é primeiro definindo o substantivo, dignidade; e, depois, esclarecendo o sentido do adjetivo que o predica, humana. Com isso, segue-se a velha fórmula de definir por meio do gênero próximo (dignidade) e sua diferença específica (humana).
A noção de dignidade de modo geral
Pois bem, a dignidade é, basicamente, o atributo decorrente da fruição de um valor elevado. Em artigo acadêmico sobre o tema, lecionam Robert P. George e Patrick Lee, a “palavra dignidade se refere a uma ou mais propriedades que levam alguém a se destacar e, assim, a suscitar ou merecer o respeito dos demais”.
Como há razões diferentes que podem proporcionar uma condição de excelência e, consequentemente, que suscite ou mereça um particular respeito, também “há várias formas de dignidade”, como explicam os mesmos autores.
Nesse sentido, outra autoridade sobre o tema da dignidade, o pesquisador Lennart Nordenfelt, em artigo sobre o tema, intitulado The Varieties of Dignity, arrolou e trabalhou algumas de suas formas, todas elas “caracterizadas por uma posição numa escala de valor, especificadas por sua relação com noções de direito, respeito e autoestima”.
Dignidades sociais
Num primeiro grupo de espécies de dignidade, o autor coloca aquelas que são distribuídas de modo desigual entre as pessoas, e estão sujeitas a processos de aquisição e incremento por um lado; e decadência e perda por outro. Ou seja, segundo esses tipos de dignidade, as pessoas podem ser mais dignas ou menos dignas; e sua posição na “escala” de dignidade pode variar no tempo.
O autor menciona três dessas formas de dignidade:
i) dignidade de mérito;
ii) dignidade de estatura moral; e,
iii) dignidade de identidade.
Sobre elas, leciona:
“[1] A dignidade de mérito depende da hierarquia e posição social da pessoa. Há várias espécies desse tipo de dignidade e ela é distribuída de uma forma bastante desigual entre os seres humanos. A dignidade de mérito existe em graus diversos e está sujeita a aquisição, incremento, perda e restabelecimento.
[2] A dignidade de estatura moral é o resultado dos feitos morais do sujeito; assim como a outra, ela pode ser reduzida ou perdida por meio de feitos moralmente reprováveis. Esse tipo de dignidade está ligado à ideia de um caráter dignificado e à dignidade enquanto virtude. A dignidade de estatura moral é uma dignidade usufruída em graus diversos pelas pessoas, sendo, portanto, distribuída de modo desigual.
[3] A dignidade de identidade, por sua vez, está ligada à integridade do corpo e da mente do sujeito, e por vezes, ainda que não sempre, também depende de sua autoestima. Esse tipo de dignidade pode ser conquistada ou perdida como resultado das ações dos membros da comunidade ou por força de mudanças corporais ou mentais do sujeito.”
A dignidade, nesses casos, uma vez que não é intrínseca, demanda que ela seja conferida à pessoa, mediante atribuição de um status reputado de elevada colocação e de valor especial. De fato, “quando alguém é colocado numa alta posição social, esse apontamento e suas consequências em termos de dignidade conferida dependem da decisão de pessoas com autoridade legítima para tanto”, como bem explica Nordenfelt.
a) Dignidade de Mérito
Tratando de alguns pormenores de cada um desses tipos, quanto à dignidade de mérito, o autor aponta: “uma pessoa que possui uma distinção ou detém um cargo que envolve a concessão de direitos possui uma especial dignidade. Esse é provavelmente o sentido da velha dignitas latina, a qual era usada para se referir a condições de excelência e distinção”.
Segundo ele, há dignidades de mérito de tipo formal e informal. A primeira ligada, por exemplo, à nomeação oficial para um cargo ou posição honoríficos; enquanto as últimas relacionadas ao prestígio e à autoridade conquistada, num determinado campo do saber ou das artes.
Ensina o autor, ainda, que “a dignidade de mérito refere-se a noções de direito e respeito”, de modo que aqueles que detém essa forma de dignidade “têm direitos concedidos por sua posição. Esses direitos devem ser respeitados por aqueles que entram em relação com essas pessoas dentro do campo relevante de sua dignidade”. Quanto à dignidade de mérito informal, decorrente da autoridade e do prestígio, muito embora “normalmente essas pessoas não possam invocar um direito formal, elas são comumente tratadas como se possuíssem tais direitos”.
b) Dignidade de Estatura Moral
Quanto ao segundo tipo de dignidade mencionado, dignidade de estatura moral, segundo Nordenfelt, ela está “relacionada à ideia de que uma conduta digna é uma ação de acordo com a lei moral”. Como bem explica, “algumas vezes, a ideia de conduta digna está ligada a ações de excepcional valor ético, por exemplo em face a adversidades extremas e onde é alto o preço a ser pago”. É possível que “alguém diga que essa dignidade é uma forma especial de dignidade de mérito”, no caso um tipo especial de mérito: o mérito moral; “porém, há uma diferença relevante entre a dignidade de mérito e a dignidade de estatura moral, visto que a última não implica na concessão de direitos ao sujeito”. Sem dúvida, “há um especial respeito que o agente moral merece, mas esse respeito não está ligado a quaisquer direitos seus. Nós devemos respeito ao agente moral no sentido de ter um conceito elevado dele e falar bem de sua pessoa”.
Por fim, “como se pode perceber, a dignidade de estatura moral” também “pode ser dividida em graus. O padrão de moralidade de cada qual pode ser alto ou baixo, ou pode até mesmo não atender a um mínimo necessário”.
c) Dignidade de Identidade
A terceira espécie de dignidade – e a última arrolada por Nordenfelt no conjunto das que estão submetidas a contingências – é o que ele chama de dignidade de identidade.
Fundamentalmente, ela está ligada às ideias de integridade corporal e psicológica, e autonomia. Ela decorre da ausência de danos corporais ou psicológicos que levem a algum grau de exclusão social ou redução da capacidade de autodeterminação ou liberdade de ação. Também pode ser ofendida por um entorno social hostil ou desrespeitoso que prejudique a autonomia ou integridade (física ou mental) da pessoa. Esse tipo de dignidade, assim como a dignidade de estatura moral e diferentemente da dignidade de mérito, não implica em reconhecimento formal de direitos.
Para comparar essas espécies de dignidade com a dignidade humana, é interessante perceber que esses são padrões de dignidade entre diferentes pessoas ou momentos. Isto é, são posições de excelência no interior do universo dos seres humanos. São, de certo modo, “dignidades sociais”, que fixam de algum modo padrões de tratamento, direitos, prestígio ou autonomia dentre as várias pessoas. Mas se está aqui a tratar de algo interno ao grupo humano universalmente considerado.
Contudo, existe algo que faz os seres humanos – todos eles e de modo indiscriminado entre eles – distinguirem-se e se destacarem de outros seres, sejam eles seres brutos, vegetais ou animais, suscitando e merecendo um tratamento diferenciado.
Esse elemento que faz com que os seres humanos – repise-se, de modo geral e indiferenciado entre eles – sobressaiam em valor, fazendo com que seja ética e juridicamente exigível uma determinada forma de tratamento mais elevado e exigente, é exatamente o que buscamos exprimir com o termo dignidade humana: é humana porque separa o valor e o tratamento devido a todos os indivíduos no universo dos seres humanos em relação aos demais seres.
Dignidade da Pessoa Humana
Diferentemente das demais formas de dignidade vistas acimas, as quais estavam sujeitas a movimento de conquista e perda, incremento ou redução, a dignidade humana é universal, idêntica e perpétua. Ou seja: é usufruída por todos os seres humanos; em igual medida por cada um; e, por toda sua existência.
Logo, é um valor que, além de elevado, é também intrínseco.
Nesse sentido, ensinam Patrick Lee e Robert P. George: “há dignidade que varia em graus diversos, que é manifestação ou atualização daquelas capacidades que distinguem os humanos”. Contudo, “essa dignidade, variável em grau, é distinta daquela dignidade mais básica que deriva do simples fato de ser uma pessoa”. Insistem eles em que a pessoa poder ter a sensação de perda da dignidade; ela pode ser tratada de modo contrário à sua dignidade, mas não poderá jamais perder – ou aumentar – a sua dignidade básica de pessoa humana.
Do mesmo modo, porém em maior detalhe, explica Nordenfelt:
Eu havia introduzido três noções de dignidade, que são bem diferentes entre si, mas têm duas características importantes em comum: primeiro, as pessoas podem ter esses tipos de dignidade em vários graus. Algumas pessoas têm elevados níveis de dignidade, ocupam um alto escalão em alguma hierarquia, têm um exigente padrão moral ou resguardam íntegra sua identidade. Outros ficam num nível mais baixo nessas dimensões e podemos ter combinações em que uma pessoa tem um alto grau de dignidade em uma escala e baixo em outra. Em segundo lugar, todas as três dignidades podem ir e vir. Pode-se passar de uma posição em uma escala para outra. Um pode ser promovido ao mesmo tempo e rebaixado no outro. O status moral de uma pessoa pode aumentar e diminuir. E a identidade de alguém pode ser destruída e restaurada. (…)
Nesses aspectos importantes, existe um tipo de dignidade completamente diferente. (…) um tipo de dignidade que todos nós, como seres humanos, temos apenas pelo simples fato de sermos seres humanos. Este é o valor especificamente humano. Temos esse valor no mesmo grau, ou seja, somos iguais em relação a esse tipo de dignidade. E é significativo que [esse tipo de dignidade] (…) não pode ser retirado do ser humano (…).
Logo, podemos concluir que a dignidade humana é o atributo decorrente do valor elevado e intrínseco reconhecido em todo ser humano, de maneira indiferenciada e por toda sua existência, o qual suscita e exige um tratamento respeitoso e diferenciado em relação aos outros tipos de seres, sejam eles inanimados, vegetais ou meramente animais.
A questão que fica em aberto é: qual o fundamento para essa dignidade especial do ser humano? Esse será o tema de um próximo artigo.
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