"Acho que em qualquer época eu teria amado a liberdade; mas na época em que vivemos, sinto-me propenso a idolatrá-la"
(Tocqueville)

Sobre o Direito Constitucional à Legítima Defesa

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A legítima defesa e o direito de se defender no Brasil estão ameaçados. Num país que aos poucos colhe resultados favoráveis em matéria de segurança pública, mas infelizmente ainda conta com dezenas de milhares de homicídios, estupros e roubos anuais, interpretações jurídicas esdrúxulas, notas de militantes que ocupam cargos públicos, perseguição a inocentes que agiram em defesa de terceiros, povoam tristemente noticiários, conversas e lamentos em redes sociais.

Por esse motivo, vamos escrever alguns artigos sobre o tema: neste primeiro buscaremos apontar por que a legítima defesa é um direito e qual sua natureza jurídica (direito constitucional fundamental). Num segundo artigo, iremos descrever analiticamente qual o conteúdo do direito fundamental à legítima defesa, isto é, exatamente o que ele garante. Por derradeiro, um último texto tratará de rebater opiniões contrárias e indicar por que é juridicamente admissível e politicamente conveniente a aprovação da Proposta de Emenda Constitucional que hoje tramita na Câmara dos Deputados para tornar a legítima defesa um direito expresso no rol de garantias fundamentais.

Vejamos.

A legítima defesa é um direito subjetivo da vítima

O direito, visto sob a ótica de seu titular, isto é, enquanto faculdade das pessoas (direito subjetivo, diz-se na classificação mais comum), nada mais é do que uma pretensão juridicamente tutelada. Sobre o tema dos direitos subjetivos e suas teorias, recomendamos sobremaneira o capítulo 12 do Oxford Handbook of Jurisprudence & Philosophy of Law (Oxford University Press, 2011), de autoria de KAMM, F. M. Também os capítulos relativos ao “Direito como Faculdade (Teoria dos Direitos Subjetivos)” do livro “Introdução à Ciência do Direito” de André Franco Montoro.

Assim, quando usamos a palavra direito naquela acepção em que designamos que “Fulano tem direito a X” ou “Beltrano tem direito a Y”, queremos apontar: o poder de alguém, protegido pela ordem jurídica, de exigir ou fazer algo em relação a outrem.

A legítima defesa, por sua vez, é a faculdade – juridicamente tutelada – de proteger seu patrimônio jurídico (vida, integridade física, dignidade sexual, liberdade etc.) de injusta agressão de terceiro, mediante emprego moderado dos meios necessários.

Logo, perceptível que a legítima defesa é, por razões lógicas, um direito, um direito subjetivo, na medida em que configura uma pretensão (de se defender ante injusta agressão de terceiro) a qual é juridicamente tutelada.

Cabe aqui salientar para deixar ainda mais claro: o fato de que uma conduta (proteger-se diante de injusta agressão de terceiro) seja protegida por uma norma jurídica por si só – e automaticamente – a constitui num direito. Interpretações heterodoxas de que haveria essa pretensão, que ela garantiria a ausência de responsabilidade em âmbito penal, mas que não seria um direito, corresponderia a dizer que “alguém é um animal racional, mas não é um ser humano”; ou que um “objeto com constituição física tangível não é corpóreo”; ou, ainda, entre muitos outros possíveis exemplos, que “um documento é um estatuto supremo e fundante de um estado e de uma ordem jurídica, mas não é uma Constituição”. É reconhecer a essência e negar-lhe a qualificação que dela deriva. É, pois, contradizer um princípio básico da razão teorética, o princípio de não contradição, segundo o qual “algo não pode ser e não ser ao mesmo tempo e sob o mesmo aspecto”.

Nesse sentido, na própria tradição jurídica brasileira, é comum verificar nos mais prestigiados juristas menções à legítima defesa como um autêntico e verdadeiro direito. Eis alguns exemplos, entre muitos outros:

1. Em artigo escrito por Eugenio Raúl Zaffaroni, Nilo Batista, Alejandro Alagia e e Alejandro Slokar, “Justificação (Primeira Parte)”, publicado na Revista Brasileira de Ciências Criminais (vol. 116/2015 | p. 39 – 76 | Set – Out / 2015), os renomados autores fazem constante referência ao direito à legítima defesa”, consignando que “seu fundamento não é outro senão o direito do cidadão a exercer coerção direta quando o Estado não puder proporcioná-la na situação concreta com idêntica eficácia”.

2. No trabalho com o título “Legítima Defesa Antecipada” do juiz federal e professor da UFF William Douglas, publicado pela Revista dos Tribunais (vol. 715/1995 | p. 428 – 430 | Maio / 1995), ele diz: “Os juízes togados, mais cautelosos na interpretação da lei, para não feri-la, bem podem repensar a interpretação dos requisitos da legítima defesa vendo-a como é: uma pessoa exercendo, como pode, o sagrado direito de se proteger”. E ainda: “Se a agressão ainda não se iniciou mas se prenuncia com suficiente certeza, deve ser assegurado à pessoa o direito de autodefesa, que é metajurídico.”

3. No julgamento do RECURSO ESPECIAL Nº 1.793.203 – PR (2019/0017259-2), o relator Jorge Mussi, registrou: “a autodefesa guarda relação com contrapartidas vinculadas a práticas injustas de terceiros, bem como ao direito de não incriminação. Nesse contexto, admitem-se, por exemplo, o direito à legítima defesa e ao silêncio”.

Saliente-se ainda tal configuração está longe de ser uma peculiaridade do direito brasileiro. Aqui vale a citação da obra “Human Rights and Personal Self-Defense in International Law”, provavelmente o melhor livro sobre o tema hoje disponível no mercado, publicado pela prestigiada Oxford University Press e escrito por Jan Arno Hessbruegge, doutor em direito internacional e funcionário do escritório do Alto Comissariado para Direitos Humanos da ONU em Nova Iorque, onde já atuou como conselheiro jurídico e relator especial para vários estudos. Nesse trabalho, o autor faz um exaustivo levantamento bibliográfico e de estudos de direito comparado, concluindo que a legítima defesa pessoal é um autêntico direito, constituído em “princípio geral do direito reconhecido pelas nações sob o direito internacional” (2017, p. 3, versão digital), visto que é “reconhecido através das diferentes tradições culturais, filosóficas e religiosas” (p. 73).

Reconhecida, então, a legítima defesa como um direito, caberia estudar analiticamente seu conteúdo exato, ou seja, as espécies de pretensão que dele decorrem. Todavia, esse exame analítico será efetuado em um segundo artigo. Agora queremos nos dedicar ao exame da natureza jurídica e do status desse direito.

O direito à legítima defesa possui hierarquia constitucional

A característica essencial das normas constitucionais “reside na sua supremacia hierárquica, no sentido de que as normas constitucionais prevalecem em relação a toda e qualquer forma normativa (incluídas as leis elaboradas pelo Poder Legislativo) e todo e qualquer ato jurídico na esfera interna da ordem estatal” (SARLET, Curso de Direito Constitucional, 2017, p. 97).

Ou seja, o traço que caracteriza uma norma como sendo constitucional é a sua supremacia em relação aos demais tipos normativos. Assim, um direito, quando possui status constitucional, não pode ser revogado por disposições infraconstitucionais. E vice-versa: quando um direito não pode ser abolido por normas infraconstitucionais, é porque ele possui natureza constitucional.

Os direitos dessa espécie podem ter duas origens. Em primeiro lugar, eles podem decorrer de previsão expressa na Constituição, o que ocorre quando estão textualmente descritos na redação constitucional. É a hipótese mais óbvia. Mas há uma segunda possibilidade: quando o direito, apesar de não estar explicitamente inserido no texto, decorre de maneira implícita dos princípios e do regime constitucional ou de tratados a que o Brasil tenha aderido. Em nossa Constituição, essa segunda alternativa é inquestionável em virtude do previsto em seu art. 5º, § 2º: “Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.”

O direito à legítima defesa cai exatamente nesse segundo caso. Apesar de não estar expressamente descrito no corpo da Constituição, ele é um desdobramento necessário de outros direitos, como vida, integridade física, dignidade sexual, propriedade etc. Ele é um direito que decorre da inerente prerrogativa dos titulares dos direitos materiais específicos de protegê-los (ou tê-los protegidos por outros), mediante uso moderado dos meios necessários, quando injustamente agredidos por terceiros.

Vale aqui relembrar o que dissemos acima: o traço de um direito constitucional é sua supremacia hierárquica. Assim, sabe-se que um direito configura propriamente uma prerrogativa constitucional implícita (e não apenas uma faculdade infraconstitucional que apenas concretiza um direito constitucional), exatamente pela inviabilidade de o legislador ordinário extingui-lo.

Ora, essa é, indubitavelmente, a condição do direito à legítima defesa. É incogitável que se permitisse ao legislador ordinário revogá-lo. Com efeito, violaria todos os direitos correlatos acima mencionados, além da razoabilidade, que o legislador ordinário passa-se a impedir uma mulher diante de uma tentativa de estupro de legitimamente se defender (ou ser defendia por outrem); ou que se o fizesse pudesse ser punida por isso. O mesmo vale para uma pessoa diante de um invasor de sua propriedade ou qualquer cidadão sob risco de vida atual ou iminente em virtude de ação criminosa de terceiro.

Por conseguinte, conclui-se que, além de ser um direito subjetivo – como visto anteriormente – esse é um direito constitucional implícito.

Mas não só: ele é um direito tipicamente fundamental. Vejamos por quê.

O direito constitucional à legítima defesa possui natureza fundamental

Enquanto o traço de direitos constitucionais de modo geral é a sua supremacia sobre as demais espécies normativas, os pontos distintivos de um direito constitucional de natureza fundamental são, basicamente, três:

1) conexão direta com a dignidade da pessoa humana;

2) aplicação sobre ele do estatuto delineado nos parágrafos do art. 5º da Constituição;

3) impassibilidade de revogação sequer por meio de Emenda Constitucional, por força do art. 60, § 4º, inciso IV, da CRFB/88.

Esses direitos fundamentais também podem ser implícitos, por força do mesmo § 2º do art. 5º citado acima. Nesse sentido, confira a doutrina de Paulo Gustavo Gonet Branco:

“é legítimo, portanto, cogitar direitos fundamentais previstos expressamente no catálogo da Carta e de direitos materialmente fundamentais que estão fora da lista. (…) A sua fundamentalidade decorre da sua referência a posições jurídicas ligadas ao valor da dignidade humana; em vista da sua importância, não podem ser deixados à disponibilidade do legislador ordinário” (GONET, Paulo. Curso de Direito Constitucional, 2017, p. 169, grifos nossos).

Tendo isso em vista, é possível afirmar, com segurança, que o direito constitucional à legítima defesa possui todas essas características.

De fato, primeiramente, ele consubstancia um mecanismo essencial para salvaguardar a faculdade de as pessoas se protegerem contra as formas mais brutais de vilipêndio a seus direitos. É patente que configuraria tratamento desumano e degradante impor a um pai que não reagisse, com uso moderado dos meios necessários, ao ver o filho ser alvo de uma tentativa de violação sexual, ou diante de uma ameaça atual ou iminente à vida, ou ante uma invasão a sua residência. Igualmente desumano seria permitir que essas pessoas pudessem responder civil ou penalmente após se protegerem dessas injustas agressões. Logo, o direito constitucional à legítima defesa é um desdobramento natural e uma obrigação derivada das exigências de um tratamento humano digno. Portanto, o direito constitucional à legítima defesa possui uma conexão direta com a dignidade da pessoa humana.

Em segundo lugar, a ele se aplica o estatuto do art. 5º, no caso, basicamente o §1º, motivo pelo qual tem aplicação imediata, não dependendo de regulação jurídica para ser invocado (embora, seja legítimo que o Estado defina seus contornos).

Por fim, afigura-se igualmente patente que não se admitiria em nossa ordem jurídica, marcada pelo humanismo constitucional, que mesmo o legislador constituinte derivado extinguisse o direito natural à legítima defesa, ainda que mediante Emenda Constitucional. Violaria o núcleo essencial dos direitos passíveis de serem protegidos pela legítima defesa, bem como a razoabilidade. Basta perceber o quão incogitável seria prever a punição de uma mulher por reagir a uma tentativa de estupro ou de assassinato.

Logo, conclui-se que o direito constitucional à legítima defesa tem natureza fundamental, a ele se aplicando todo o estatuto decorrente.

Aliás, o direito brasileiro não está isolado nessa opção:

a) nos Estados Unidos, a Suprema Corte em 2008, no caso District of Columbia Vs. Heller, afirmou um “inerente direito à legítima defesa”. Essa posição foi reafirmada no caso McDonald Vs. Chicago, em 2010.

b) no Canadá, o professor Hamish Stewart da Universidade de Toronto, em artigo intitulado “The Constitution and the Right of Self-Defence”, explica que apesar de se admitir a regulação do direito à legítima defesa naquela jurisdição, “a Constituição, longe de permitir a extinção do direito, assegura que ele não pode ser simplesmente abolido”. Segundo ele, “seria inconstitucional para o legislador remover o direito à legítima defesa”.

c) além disso, ao menos quatro países asseguram expressamente o direito de legítima defesa em suas Constituições: México, Haiti, Timor Leste e Peru.

d) há, ainda, países que, apesar de reconhecerem expressamente esse direito apenas na legislação infraconstitucional, fazem-no em linguagem que lhe concede um status diferenciado, indicando-o como um “direito não revogável”, como é o caso da Austrália, no Australian Defence Force Publication.

Esclareça-se que ainda que se faça a leitura de que o direito à legítima defesa não configura um direito autônomo, mas um desdobramento dos direitos que podem ser tutelados por ele (direito à vida, integridade física, propriedade, dignidade sexual etc.), posição defendida por alguns tanto no âmbito interno quanto no direito internacional, isso não desconfigura sua fundamentalidade enquanto direito constitucional.

A razão é que nossa tradição constitucional, seguida expressamente pela Constituição atual, prevê duas espécies de prerrogativas fundamentais: direitos e garantias. O constitucionalista e atual ministro do STF Alexandre de Moraes esclarece em sua obra “Direito Constitucional” que “a distinção entre direitos e garantias fundamentais, no direito brasileiro, remonta a Rui Barbosa” (33ª ed., 2017, p. 32). Os direitos são os bens materiais diretamente usufruídos pela pessoa humana. Já as garantias são instrumentais, são mecanismos jurídicos criados e assegurados na Constituição para preservação dos direitos propriamente ditos. Um exemplo pode ser esclarecedor: pense na liberdade de locomoção e no habeas corpus. A liberdade de locomoção é um direito, é o bem jurídico efetivamente pretendido pelas pessoas. Mas para garantir esse direito a Constituição criou um instrumento específico e o dotou de status constitucional e fundamentalidade: o habeas corpus. Ele está previsto expressamente no art. 5º, inciso LXVIII, da Constituição: “conceder-se-á habeas corpus sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder”.

Perceba que o habeas corpus não é um bem jurídico pretendido em si mesmo. Pelo contrário, a pretensão das pessoas é jamais precisar de um habeas corpus. O bem pretendido é a liberdade. Contudo, o caráter instrumental do habeas corpus não lhe afasta a fundamentalidade constitucional enquanto garantia.

Nesse sentido, confira a lição do constitucionalista português Jorge Miranda, citada por Alexandre de Moraes, na obra citada acima:

“Clássica e bem actual é a contraposição dos direitos fundamentais, pela sua estrutura, pela sua natureza e pela sua função, em direitos propriamente ditos ou direitos e liberdades, por um lado, e garantias por outro lado. Os direitos representam só por si certos bens, as garantias destinam-se a assegurar a fruição desses bens; os direitos são principais, as garantias acessórias e, muitas delas, adjectivas (ainda que possam ser objecto de um regime constitucional substantivo); os direitos permitem a realização das pessoas e inserem-se directa e imediatamente, por isso, nas respectivas esferas jurídicas, as garantias só nelas se projectam pelo nexo que possuem com os direitos; na acepção jusracionalista inicial, os direitos declaram-se, as garantias estabelecem-se” (MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional, 4ª ed. Coimbra: Coimbra Editora, p. 88-89, apud MORAES, Alexandre. Direito Constitucional, 33ª ed. São Paulo: Editora Atlas, 2017, p. 32-33).

Logo, ainda que se veja o direito à legítima defesa como instrumental, de modo que a inconstitucionalidade de sua fragilização decorreria não da negativa de um direito autônomo, mas por gerar uma proteção deficiente dos direitos por ela potencialmente protegidos (como vida, integridade física, propriedade, dignidade sexual etc.), isso não desconfiguraria sua natureza como prerrogativa constitucional fundamental. Nesse caso, como garantia fundamental.

Conclusão

Por conseguinte, conforme as razões acima, conclui-se que a legítima defesa é um autêntico direito (ou garantia) com status constitucional e natureza jurídica fundamental.

No próximo artigo faremos um exame analítico das pretensões decorrentes dessa prerrogativa constitucional.

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