"Acho que em qualquer época eu teria amado a liberdade; mas na época em que vivemos, sinto-me propenso a idolatrá-la"
(Tocqueville)

Entenda uma das principais ilegalidades cometidas no inquérito inconstitucional do STF

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Como todos sabem, no ano passado (2019), o STF instaurou um inquérito absolutamente ilegal e inconstitucional, mas que por razões alheias ao direito foi recentemente validado pelo Plenário da Corte, mesmo sem que qualquer argumento jurídico minimamente convincente tenha sido apresentado para tanto.

Já escrevemos um primeiro artigo apontando as irregularidades de origem da investigação e outro apontando por que um instrumento dessa natureza é incompatível com um regime livre e democrático.

No presente texto iremos demonstrar uma das mais monstruosas ilicitudes ocorridas no curso do inquérito. Trata-se da violação à cláusula de reserva de jurisdição aplicável às buscas domiciliares.

Vejamos.

A proteção constitucional do domicílio e a cláusula de reserva de jurisdição

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Nossa Constituição de 1988 permite que no interesse de investigações criminais alguns direitos fundamentais sejam flexibilizados. Particularmente os direitos decorrentes da proteção da privacidade, como a segurança de dados pessoais e o fluxo de comunicações (casos de interceptação).

Ocorre que diante da importância desses direitos a Constituição por vezes determina os requisitos para que possam ser flexibilizados. Um dos requisitos usualmente impostos pela Constituição é a exigência de decisão judicial. Ou seja, alguns direitos não podem ser objeto de restrição pela ação direta da autoridade policial, mas apenas após autorização jurisdicional.

Nesses casos, a autoridade policial representa pela medida invasiva, apresentando dados sobre sua conveniência. Após, o membro do MP se manifesta nos autos. Caso ele concorde, ele requer autorização para que a diligência seja realizada. Por fim, convencido da legalidade do ato, um juiz imparcial (ou seja, sem relação direta com a causa ou com as partes) autoriza que a polícia pratique os atos investigatórios.

É esse o rito das buscas domiciliares. A Constituição expressamente colocou essa medida sob cláusula de reserva de jurisdição, de modo que apenas mediante autorização judicial e durante o dia é possível que se execute mandados de busca em domicílio.

Veja o texto constitucional:

Art. 5º, XI – a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial;

O postulado da Reserva da Jurisdição conta com respaldo da jurisprudência, inclusive do STF, tendo sido bem explicado no seguinte julgado:

O postulado da reserva constitucional de jurisdição importa em submeter, à esfera única de decisão dos magistrados, a prática de determinados atos cuja realização, por efeito de explícita determinação constante do próprio texto da Carta Política, somente pode emanar do juiz, e não de terceiros, inclusive daqueles a quem se haja eventualmente atribuído o exercício de “poderes de investigação próprios das autoridades judiciais”. A cláusula constitucional da reserva de jurisdição – que incide sobre determinadas matérias, como a busca domiciliar (CF, art. 5º, XI), a interceptação telefônica (CF, art. 5º, XII) e a decretação da prisão de qualquer pessoa, ressalvada a hipótese de flagrância (CF, art. 5º, LXI) – traduz a noção de que, nesses temas específicos, assiste ao Poder Judiciário, não apenas o direito de proferir a última palavra, mas, sobretudo, a prerrogativa de dizer, desde logo, a primeira palavra, excluindo-se, desse modo, por força e autoridade do que dispõe a própria Constituição, a possibilidade do exercício de iguais atribuições, por parte de quaisquer outros órgãos ou autoridades do Estado. Doutrina. (MS 23452, Relator(a):  Min. CELSO DE MELLO, Tribunal Pleno, julgado em 16/09/1999)

Pois bem.

Vejamos agora como essa garantia tem sido violada pelo STF durante o curso do inquérito inconstitucional por ele instaurado.

Como o STF tem violado a garantia constitucional do domicílio

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Como vimos, a flexibilização do asilo inviolável do domicílio depende de autorização por meio de decisão de juiz imparcial.

No caso do inquérito inconstitucional do STF, no entanto, o responsável pelo feito, o min. Alexandre de Moraes, tem atuado de forma híbrida: ele é a autoridade policial que preside o inquérito. Mas, ao mesmo tempo, ele é o juiz que defere as medidas que ele mesmo pleiteou.

Nesse caso, obviamente, as garantias dos investigados ficam relativizadas, pois as medidas invasivas de investigação não passam pelo filtro de um juiz que atue como garante das regras do jogodas liberdades constitucionais.

Não há imparcialidade. A própria autoridade interessada no sucesso das investigações e em recolher a maior quantidade de dados possível autoriza a si própria a devassar a vida de suas vítimas. É como um jogo de futebol em que o atacante fosse o juiz e pudesse marcar pênaltis em seu favor.

Os alvos desses atos não estão sendo tratados como pessoas, sujeitos de direito, mas como coisas, objetos de persecução.

Assim, caso esse inquérito fosse constitucionalmente viável (que não é), ele deveria funcionar do seguinte modo: o ministro responsável pelo inquérito representaria pelas medidas, abrindo prazo para manifestação do Ministério Público, por meio da PGR. Após, caso o MP concordasse com a diligência, o pedido deveria ser enviado para outro ministro deferir ou não a medida.

Do contrário, trata-se de perseguição alheia ao Estado de Direito e às prerrogativas constitucionais dos cidadãos.

Logo, tendo em vista:

i) que o domicílio é protegido pela Constituição como asilo inviolável do indivíduo, só podendo ser objeto de mandado de busca após autorização por meio de decisão judicial por juiz imparcial;

ii) que, no caso do inquérito inconstitucional instaurado no STF, o ministro responsável pela investigação atua como “autoridade policial”, uma espécie de “delegado”, do inquérito;

iii) que ninguém pode ser no mesmo caso autoridade policialjuiz, pois isso viola flagrantemente a exigência de imparcialidade e de análise dos pedidos de medidas invasivas por terceiro que não faça parte das investigações, direito já assentado na jurisprudência das Cortes de Direitos Humanos;

iv) que, no entanto, no caso concreto, o ministro Alexandre de Moraes tem atuado no mesmo caso como investigador e juiz…

É inafastável a conclusão de que está havendo patente ofensa à cláusula de reserva de jurisdição, pois as medidas têm sido autorizadas pelo “delegado” do caso, sem análise por juiz imparcial. Por conseguinte, aliás, toda a prova é ilícita, pois são “assim entendidas as obtidas em violação a normas constitucionais”, segundo o art. 157 do Código de Processo Penal.

O que está havendo nesse malfadado inquérito, em verdade, são consecutivas inobservâncias da Constituição e violações de garantias fundamentais, numa espiral de degradação inédita durante a vigência da Constituição de 1988. É possível descrever o momento atual parafraseando a frase de John Locke: onde finda o direito, surge a tirania.

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