"Acho que em qualquer época eu teria amado a liberdade; mas na época em que vivemos, sinto-me propenso a idolatrá-la"
(Tocqueville)

Entrevista com Promotor de Justiça da Infância sobre homeschooling

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7 atitudes essenciais para praticar ensino em casa. Foto: Unsplash
“Foto: Unsplash”

ensino domiciliar ou homeschooling é uma modalidade educacional que cresce exponencialmente ao redor do mundo, obtendo ótimos resultados em termos de rendimento acadêmico e índices de socialização de seus adeptos. Não por outro motivo já é contemplada pela legislação de várias nações desenvolvidas como Finlândia, Reino Unido, Canadá, Estados Unidos, Portugal, Áustria, França, Nova Zelândia e Austrália (nesta úlitma “Entre 2011 e 2017, o número de crianças educadas em casa […] cresceu mais de 80%”). E é adotada também por países em desenvolvimento como: Colômbia,  Bahamas, Barbados, Jamaica, África do Sul e Taiwan. Isso só para citar alguns.

Além disso, o reconhecimento da educação domiciliar é um passo fundamental, no Brasil, para a solidificação da liberdade de aprender e ensinar, do pluralismo pedagógico,  sendo, assim, um elemento decisivo para defesa da infância e da juventude e do papel primordial das famílias na educação, em colaboração com a sociedade e órgãos do estado.

Por esse motivo, temos dedicado uma série de textos ao tema, o qual tem avançado rapidamente no país:

a) Ano passado, poucos dias antes de o STF analisar a questão, divulgamos nota técnica de órgão do Ministério Público especializado em educação, o ProEduc, defendendo a modalidade;

b) Após a conclusão do julgamento histórico do STF do RE 888.815, publicamos texto mostrando como o voto condutor reconheceu a constitucionalidade da educação domiciliar, considerando-a apenas pendente de regulamentação legal;

c) Publicamos, ainda, artigo em que expusemos estudos e dados sobre o rendimento acadêmico e social de crianças educadas pela família;

d) Por fim, elaboramos um material demonstrando que, juridicamente, o homeschooling não implica negativa de escolarização (evasão escolar) e muito menos abandono intelectual.

Agora trazemos entrevista com o Promotor de Justiça Rafael Meira. Atuante na área de educação e juventude, mestre em Direitos Humanos, e com ampla atuação com famílias educadoras, ele respondeu a algumas de nossas perguntas sobre o tema.

1) No RE 888.815, julgado no ano passado, o STF enfrentou a questão do ensino domiciliar pela primeira vez. Esse tema também foi alvo de sua dissertação de mestrado em direito na Espanha. O senhor poderia explicar para nosso leitor, em breves palavras, o que foi decidido pelo Supremo, e qual sua opinião sobre a decisão tomada?

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Estudantes de várias famílias educadoras em atividade conjunta.

R.: O Supremo, ao julgar a questão, distanciou-se por completo da linha de raciocínio que pretendia considerar a educação domiciliar como uma ferramenta educativa vedada, proibida pela Constituição Federal. Os debates sobre esta questão, liderados pelo voto vencedor do Ministro Alexandre de Moraes, justamente consideraram que a educação domiciliar possui ancoragem constitucional. Em outras palavras, o STF deixou claro que a nossa Constituição Federal admite a prática do homeschool, ao menos em tese, formalmente. Para o STF, a prática da educação domiciliar é possível, mas depende de prévia edição de texto legal.

Abriu-se uma importante janela com a decisão do STF, a partir do momento em que se confirmou que a escola não é a única instituição apta a garantir o direito à educação previsto nos textos de direito internacionais e na legislação pátria.

Esta pode ser considerada a primeira grande vitória das famílias educadoras, e daqueles que defendem ou simpatizam com esta modalidade educativa.

Resumindo-se, o STF considerou que a educação domiciliar, para ser desenvolvida no Brasil, necessita de texto legal específico que defina o modo de sua realização, as instituições responsáveis pela fiscalização, dentre outras questões. Na ausência de legislação autorizativa, persiste a regra da obrigatoriedade de inserção de crianças e adolescentes na escola tradicional.

2) Recentemente secretaria do Ministério dos Direitos Humanos enviou ofício aos conselhos tutelares, orientando-os quanto à configuração de evasão escolar e abandono intelectual por parte dos pais ou responsáveis adeptos do homeschooling. O senhor poderia nos esclarecer se o exercício do ensino domiciliar pelas famílias educadoras caracterizaria, por si só, evasão escolar ou qualquer ilícito civil ou crime de abandono intelectual?

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Atividade literária conjunta de famílias educadoras.

Existem vários patamares de interpretação a serem considerados nesta questão, que ultrapassam a simples ideia de taxar as famílias educadoras como criminosas (como já acontece em outros países da Europa e até mesmo em alguns cantos do Brasil).

Veja-se que o conceito de evasão escolar é meramente fático, significa apenas se a criança (ou adolescente) frequenta ou não a escola. É um conceito muito pobre, imperfeito. Apenas para se exemplificar, uma criança de 8 anos de idade que está matriculada no ensino regular, que comparece às aulas mas, que passa todo o período de aula olhando para o teto, contando as rotações do ventilador, formalmente não pode ser considerada uma criança em situação de evasão escolar.

O conceito ideal para ser trabalhado, no que concerne à garantia do direito à educação, não deve ser o da evasão escolar mas o de abandono intelectual. Aqui novamente há que se ater à nomenclatura legal. Há várias dimensões do abandono intelectual, e podemos falar aqui sobre duas dimensões propriamente ditas.

A primeira dimensão seria a criminal, uma vez que o Código Penal possui uma tipificação criminal no seu art. 246. Neste âmbito, considera-se abandono intelectual a prática dos responsáveis legais que deixam de “prover a instrução primária de filho em idade escolar”. O tipo penal, o crime em si, é muito específico, e apenas ocorre quando não se alcança a instrução primária. Para que se possa processar e condenar um pai ou uma mãe por abandono intelectual é necessária a prova da ausência de instrução. É por esta razão que, ainda que se tome a educação domiciliar como modalidade educativa ainda não autorizada pelo legislador, a sua ocorrência não se traduz automaticamente em atitude criminal.

Uma segunda dimensão do abandono intelectual é bem presente em todos os rincões do país. Ocorre o abandono intelectual propriamente dito quando uma criança ou adolescente não tem a sua educação alcançada. O exemplo dado anteriormente, do aluno que vai à escola e não executa nenhuma atividade, não estuda para as provas, comporta-se inadequadamente, sem qualquer intervenção dos responsáveis, é o caso paradigmático do abandono. Infelizmente, esta é uma realidade que se apresenta, sem receio de generalização, em todos os municípios do país. E a resposta que se dá a estes casos, pelo estado, tende a ser muito mais condescendente do que aquele que atualmente se tem observado em relação às famílias educadoras.

Para que os genitores, ou responsáveis legais, possam ser enquadrados nesta dimensão de abandono intelectual, há que se demonstrar que sonegam aos filhos o acesso ao conhecimento, que os privam do convívio social, e que não os preparam para os desafios da vida adulta (este é o núcleo duro do direito à educação). As famílias educadoras alcançam, e com sobra, estes patamares mínimos previstos na legislação de regência. Por esta razão é que entendo que a simples ausência do ambiente escolar não se traduz automaticamente em abandono intelectual.

3) O senhor poderia nos esclarecer como seria, na prática, a abordagem correta dos órgãos responsáveis pelo cuidado das crianças e adolescentes quanto às famílias educadoras?

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Atividades esportivas entre famílias educadoras.

Há uma pluralidade de abordagens possíveis para as famílias educadoras, mas poderia afirmar que, regra geral, o melhor modo do estado cumprir a sua função alcança-se com a aproximação a estas famílias.

Explico-me melhor. Todos os agentes que integram a rede de proteção dos direitos de crianças e adolescentes com quem me relacionei, e que experimentaram a necessidade de acompanhar famílias que optaram pela educação domiciliar, relataram-me que se surpreenderam com o grau de qualidade no qual os “alunos” (filhos) são estimulados. Um dos pontos que mais surpreende aqueles que se aproximam da educação domiciliar é a carga de sacrifícios pessoais e profissionais que os pais experimentam para garantir uma educação baseada na excelência.

Uma abordagem a estas situações deve ser respeitosa, desprovida de preconceitos, e deverá analisar, no caso concreto, se cada uma das famílias investigadas é ou não capaz de prover aos filhos o necessário. A participação do Conselho Tutelar, de agentes das Secretarias Municipais de Educação, Assistência Social, etc., geralmente resultam na confecção de relatórios de acompanhamento nos quais só se relatam boas experiências.

Não acrescenta nada, ao contrário, o acompanhamento destas famílias com uma visão desconfiada, que parta do pressuposto que as famílias são incapazes de educar (aliás, este pressuposto foi destruído pelo STF, que entende que as famílias são uma instituição capaz de prover o direito à educação).

Agora, assim como ocorre nos demais casos (crianças escolarizadas), se uma família utilizar a educação domiciliar para violar os direitos dos filhos, há que recair sobre ela todos os rigores da lei, sem distinção.

4) No seu exercício profissional, o senhor já atuou com famílias educadoras? Qual sua impressão.

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Atividade de homeschooling.

Atuando em uma Promotoria de Justiça da Infância, tenho me deparado com várias famílias educadoras. Tenho percebido que também as famílias educadoras perdem, paulatinamente, as resistências em relação à atuação da rede, o que vem se traduzindo em uma experiência positiva. Conselho Tutelar, CREAS, Educação, todos percebem, pouco a pouco, que estas famílias desempenham com maestria a função educativa.

Em minha percepção, não posso indicar sequer uma família educadora com quem tive contato que não tenha sido capaz de desempenhar, com “sobra”, os papéis que a legislação exige. Já participei de Congressos, Seminários, Reuniões, e em todas as situações nas quais interagi com crianças educadas em casa, apenas percebi excelentes resultados. Estas crianças, em poucos anos, mostrarão à sociedade (como já se observa há anos nos EUA, por exemplo) que o homeschooling cumpre integralmente aquilo que a Constituição exige.

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