"Acho que em qualquer época eu teria amado a liberdade; mas na época em que vivemos, sinto-me propenso a idolatrá-la"
(Tocqueville)
Contra a desinformação: entenda o que muda na legítima defesa com o Pacote Anticrime
Em fevereiro deste ano, o Ministro da Justiça e Segurança Pública, Sergio Moro, enviou ao Congresso o Pacote Anticrime. Conforme editorial da Gazeta do Povo do dia 6 daquele mês, o qual explica os principais eixos do projeto:
“Trata-se de promover alterações em nada menos que 14 leis diferentes, incluindo o Código de Processo Penal, a Lei de Execuções Penais e o Código Eleitoral. Um esforço elogiável por ser ambicioso, abrangente e, ao mesmo tempo, robusto e simples, beneficiando-se da experiência de primeiríssima mão do ministro Moro, que, durante seu tempo na magistratura, teve a oportunidade de identificar as deficiências da legislação atual e as circunstâncias que facilitam a vida dos criminosos, especialmente os do colarinho branco, e colaboram para a impunidade.”
Um dos pontos do projeto adiciona novos dispositivos ao Código Penal tratando da legítima defesa. Como veremos a seguir, os pontos previstos são basicamente interpretativos e de esclarecimento. Segundo nossa leitura, eles se limitam a aclarar no texto legal como se deveria interpretar a iminência da agressão que autoriza a legítima defesa, e como deve ser lida a cláusula que pune o excesso. Frise-se, desde já (como explicaremos em maior detalhe adiante), que a interpretação concedida pelo projeto não foge do que é defendido hoje mesmo pelos melhores juristas e do que ocorre em nações de democracia absolutamente consolidada.
O item, no entanto, tem sido objeto de uma brutal guerra de desinformação. A estratégia está bem delineada: cada vez que um agente do Estado comete um abuso e – fora de qualquer hipótese de legítima defesa (lembre-se disso, será importante para entender a questão) – executa um civil, tentam fazer crer que o Pacote Anticrime tornaria esse atos impuníveis.
Por qualquer prisma que se olhe a questão; é patente, no entanto, que essa espécie de fato não tem qualquer conexão com a alteração legislativa debatida no Pacote Anticrime.
Nossa intenção com esse texto será, então, tentar demonstrar o que muda na legítima defesa com o Pacote Anticrime: já adiantamos que em nossa opinião não muda absolutamente nada de substancial. Ele apenas concede segurança jurídica, consignando na lei qual a correta interpretação do excesso e da iminência.
Para isso, vamos mostrar, primeiramente, o que é a legítima defesa, quais os seus pressupostos e o que configura o chamado excesso.
Ao tratar de modo mais aprofundado sobre a interpretação dos limites temporais da legítima defesa e de seu excesso, buscaremos apontar o que mudaria com o Pacote Anticrime.
O que é a legítima defesa?
A legítima defesa é uma forma do que, no Direito, chamamos de autotutela. Com efeito, a regra numa sociedade juridicamente organizada é que a prevenção e, principalmente, a punição de delitos seja realizada pela força estatal, segundo regras jurídicas que racionalizam o processamento e a sanção do ato criminoso. É o que chamamos de heterotutela: ou seja, quem realiza a proteção aos direitos mediante punição das infrações mais graves não é o próprio ofendido (em geral, propenso a excessos desproporcionais, deflagrando reação idêntica do outro lado, ocasionando escalada de agressões), mas um terceiro (agentes do Estado), com maior capacidade, regra geral, de adotar uma postura de distanciamento e imparcialidade em relação aos interesses em conflito.
Essa é a regra. No entanto, ela tem exceções. De fato, os mecanismos jurídicos de tutela estão a serviço da defesa da pessoa humana. Assim, não se poderia admitir a imposição exclusiva da heterotutela, caso isso implique que em casos concretos uma vítima de agressão injusta reste absolutamente impossibilitada de proteger-se com resguardo jurídico: estaria ela entre Cila e Caribde, ou sofreria a agressão ou sofreria futura punição do Estado pelos atos praticados para repelir a agressão.
Assim, todos os ordenamentos jurídicos comprometidos com a defesa de uma ordem pública pacífica e com a defesa dos bens humanos básicos admitem, excepcionalmente e dentro de hipóteses juridicamente reguladas, a autotutela. Entre os casos consagrados de autotutela nos ordenamentos jurídicos de modo geral, está a hipótese de reação do inocente que se vê injustamente agredido.
É exatamente o caso da legítima defesa. Ela está prevista, no direito brasileiro, no art. 25 do Código Penal, nos seguintes termos:
“Entende-se em legítima defesa quem, usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem”.
No jargão jurídico, diz-se que a legítima defesa é uma excludente de ilicitude ou de antijuridicidade. Isto é, ela exclui a contrariedade do ato em relação à ordem jurídica. Assim, mesmo que a pessoa cometa algo previsto em lei como proibido (por exemplo, causar lesões corporais ou mesmo a morte de outrem), caso essa conduta seja praticada em legítima defesa, ela não será antijurídica, mas lícita.
Frise-se também que mesmo do ponto de vista moral, tendo em vista que a intenção da pessoa no caso é defender a si ou terceiro inocente, e não agredir, as grandes tradições éticas avalizam a legítima defesa como eticamente válida. De fato, eventuais danos que venham a ser causados contra o agressor são aqui meramente o meio para repelir a injusta agressão. O policial que, em legítima defesa e cumprimento do dever de salvaguardar a ordem pública, atinge um criminoso que sequestrou um ônibus e ameaça tocar fogo no automóvel com reféns dentro, não está buscando assassinar o criminoso; mas salvar as vítimas. A provocação da morte ocorre como meio, no caso proporcional e necessário, para proteger as vítimas.
Como bem pondera o Promotor Público de São Paulo, Fernando Pedroso, em artigo intitulado “Legítima Defesa” (Doutrinas Essenciais de Direito Penal, vol. 2, p. 1.215-1.252, out. 2010):
“A figura jurídico-penal em pauta, destarte, não se corporifica em revide ou vingança, mas em defesa, como sua própria denominação jurídica está a elucidar. Não constitui desforço ou vingança, mas proteção“.
Claro que para isso os requisitos da legítima defesa terão de ser atendidos. Tem de haver uma agressão, atual ou mesmo iminente, mas efetiva; bem como a utilização moderada de meios necessários.
Vejamos, pois, esses requisitos.
Quais os requisitos de legítima defesa?
A configuração da defesa como legítima depende da presença de pressupostos, que podemos organizar da seguinte forma:
a) Injusta agressão;
b) Agressão atual ou iminente;
c) Uso moderado dos meios necessários para defesa.
O primeiro deles, a agressão injusta, ocorre quando aquele que se protege em legítima defesa sofreu alguma investida não protegida pela lei. Por exemplo, se você praticou um crime e o policial está prendendo-o em flagrante, você não pode reagir à prisão, sob pena de responder pelo delito de resistência, porque a agressão do policial à sua liberdade não é injusta. Ela tem respaldo em lei. Pelo contrário, se um criminoso aborda um lojista com uma arma, a vítima pode atuar em legítima defesa, pois a agressão do ladrão é injusta.
Quanto ao segundo, o qual exige que a agressão seja atual ou iminente, ela veda a vingança por uma agressão passada; ou a ação contra uma agressão hipotética futura.
Por fim, os meios utilizados devem ser necessários para repelir a injusta agressão, e seu uso deve ser moderado. Caso a vítima se valha de um meio desnecessário ou, mesmo utilizando um meio necessário, faça-o de modo desproporcional, responderá por excesso.
Aqui gostaria de me concentrar na questão de iminência da agressão (segundo requisito) e necessidade e moderação do meio utilizado (quarto requisito), visto que são os pontos objeto do Pacote Anticrime.
O conceito de agressão iminente
Afinal de contas, o que significa agressão iminente? Quando ela deixa de ser uma agressão futura e torna-se iminente?
De modo geral, a doutrina ensina que iminente é o ataque que está prestes a acontecer, em vias de efetivação. Pode-se dizer que quando a situação permite que a agressão seja efetivada a qualquer momento, já há iminência.
Segundo artigo de autoria dos penalistas Eugênio Raúl Zaffaroni, Nilo Batista, Alejandro Alagia e Alejandro Slokar (“Justificação – Primeira Parte”, Revista Brasileira de Ciências Criminais, vol. 116, 2015, p. 39-76), “quanto aos limites da ação defensiva, nossa lei autoriza a reação contra injusta agressão atual ou iminente (…). A situação de defesa, portanto, estende-se desde que surge uma ameaça imediata ao bem jurídico“. E ainda: “uma agressão iminente é uma agressão ainda não realizada, embora prestes a realizar-se. (…) É possível legítima defesa desde que o agressor torne manifesta, por palavras ou atos, sua vontade de agredir tendo à sua disposição meios idôneos para fazê-lo. O decisivo é a iminência de um perigo imediato para o bem jurídico titularizado pelo agredido“. Por fim, arrematam: “por agressão iminente, portanto, entende-se a exigência de um sinal de perigo imediato para o bem jurídico, a ‘presença concreta do perigo’“. “A agressão iminente não precisa ser cronologicamente imediata”, de modo que “quando um sujeito saca sua arma, pouco importa que demore dois segundos ou duas horas para disparar”.
Claramente não se trata de um conceito exato, matemático, apodítico. Pelo contrário, trata-se de um conceito aberto, o que no em direito pode ser chamado de conceito jurídico indeterminado.
Lembra quanto ao ponto o penalista Guilherme de Souza Nucci: “cabe destacar que o estado de atualidade da agressão necessita ser interpretado com indispensável flexibilidade“ (p. 252, Manual de Direito Penal, 3ª ed.).
Assim, por exemplo, se um agente de segurança pública se encontra em um contexto em que há criminosos armados, podendo ser deflagrado um conflito imediatamente, já estão presentes todos os elementos que permitem que a injusta agressão por parte dos delinquentes inicie a qualquer momento. Logo, entendemos que já estaria configurada, nesse caso, a agressão iminente. Isso mesmo hoje, diante da nossa legislação atual, pela simples interpretação correta da expressão injusta agressão iminente. A ação do agente de segurança nesse contexto já estaria acobertada pela excludente de ilicitude da legítima defesa (ou cumprimento do dever legal).
Nesse sentido, veja a seguinte decisão judicial, que rejeitou denúncia proposta pelo Ministério Público Federal. O MPF ofertou a peça acusatória contra um Policial Rodoviário Federal que disparou contra criminoso que, após empreender fuga, desceu do carro armado, mas ainda não havia disparado contra os policiais. Assim, o membro do MP atuante – a nosso ver de forma equivocada – entendeu que houve excesso por parte dos policiais. A justiça, no entanto, corretamente, rejeitou a denúncia sob os seguintes fundamentos:
14. Nesse ponto específico, destaco que o agente de segurança, diante do diminuto tempo para decidir como atuar, conforme asserido pelos peritos, não pode hesitar em agir, no estrito cumprimento de seu dever legal – que é o de velar pela segurança da sociedade – sendo indiscutível que o receio de atuar, valendo-se dos meios necessários e conferidos pelo aparato estatal, pode acarretar o comprometimento da promoção da segurança dos cidadãos.
15. Na forma dos artigos 6º e 144, ambos da Constituição Federal, a segurança, direito social e dever do Estado, deve ser exercida também pela Polícia Rodoviária Federal, a quem incumbe resguardar as rodovias federais, mediante o uso do aparato posto à disposição do agente de segurança, inclusive, de armas de fogo, como na situação analisada.
16. Não se mostra razoável exigir-se do policial, ora acusado, que aguardasse, de modo passivo, para além do risco assumido em razão do exercício de suas atividades funcionais, a concretização do disparo de arma de fogo pelo suspeito, expondo-se a perigo concreto, para somente a partir de tal momento fazer uso da arma que lhe foi conferida para o cumprimento de seu munus que é o de garantir a segurança da coletividade.
(…)
21. Registro, por fim, que a presunção de atuação regular e de boa-fé do Policial Rodoviário Federal, que se coloca, cotidianamente, em situação de risco em proteção da sociedade, somente pode ser afastada diante de elementos concretos que evidenciem a conduta criminosa, inocorrente na espécie, repito. (sem destaques no original, Autos 0044047-59.2012.4.01.3400 – 12ª VARA – BRASÍLIA. Decisão publicada em 23/10/2017)
Veja que é inegável que o termo iminente admite mais de uma interpretação, e uma leitura assaz restrita (como a realizada pelo membro do MPF no caso acima) poderia deixar hipóteses de real legítima defesa de fora da cobertura legal. Isso acaba provocando entre os cidadãos e agentes de segurança perplexidade sobre como reagir em determinados contextos. E, em conjunturas de grande risco e tensão, a hesitação pode ser fatal para pessoas inocentes.
Logo, pode se mostrar interessante hoje aprovar adendos ao dispositivo do Código Penal que tratam da legítima defesa deixando alguns pontos de sua interpretação expressos.
De fato, o uso de conceitos jurídicos indeterminados é um técnica legislativa que visa um propósito específico: conceder flexibilidade e maleabilidade ao operador do direito, para que possa adaptar a lei a circunstâncias variadas. É uma virtude dessa técnica.
Todavia, aquilo que se ganha em adaptabilidade, perde-se, inegavelmente, em segurança jurídica. Tanto que no caso acima, o membro do MP entendeu de um modo, e a juíza de outro. Esse simples receio deixa uma espada de Dâmocles sob a cabeça de quem atua em contextos arriscados.
Assim, se em determinado momento histórico o legislador percebe que um conceito legal indeterminado tem admitido no meio jurídico interpretações excessivamente díspares, o órgão legiferante poderá entender que convém agora esclarecer expressamente algumas situações.
É exatamente isso que faz o Projeto de Lei Anticrime no tocante à iminência da agressão.
Veja o dispositivo proposto, o qual inclui, no artigo 25 que trata da legítima defesa, um parágrafo único, com a seguinte redação:
“Parágrafo único. Observados os requisitos do caput, considera-se em legítima defesa:
I – o agente de segurança pública que, em conflito armado ou em risco iminente de conflito armado, previne injusta e iminente agressão a direito seu ou de outrem; e
II – o agente de segurança pública que previne agressão ou risco de agressão a vítima mantida refém durante a prática de crimes. “
Perceba que diante da interpretação de agressão iminente acima defendida, a modificação é mínima, senão nula. Trata-se, basicamente, de uma cláusula interpretativa, que visa sanar confusões e inseguranças que têm decorrido da indeterminabilidade e uso de leituras excessivamente restritas do conceito de iminência da agressão.
Cuida-se, pois, de alteração que nos parece acertada, absolutamente equilibrada e compatível com os mais altos padrões de proteção aos direitos humanos.
Vejamos agora a questão do excesso.
O que é o excesso na legítima defesa?
Como vimos acima, um dos requisitos da legítima defesa é o uso moderado dos meios necessários. Por conseguinte, se um cidadão comum ou agente de segurança utiliza meios desnecessários ou faz uso imoderado ainda que de meios necessários, ele comete excesso.
Assim, por exemplo, se uma pessoa agredida por um agente armado reage com tiros de arma de fogo, o meio é necessário, proporcional ao perigo, visto que o agressor também estava armado. Contudo, se chega a neutralizar o agressor, vindo este a cair no chão aparentemente desmaiado, deixando sua arma voar distante do corpo, cessou a agressão. Se a vítima, após perceber claramente a situação, prosseguisse com os disparos, configurar-se-ia excesso. O agressor já estava neutralizado. Não havia mais perigo atual ou iminente. Lembre-se que a legítima defesa não é uma punição. Não é uma pena de morte. É um modo de defesa. Cessado o ataque, perde sua razão de ser.
Aqui, todavia, entra um problema grave, decorrente do mesmo fator anteriormente explorado: as cláusulas legais “uso moderado” e “meio necessário” são também flexíveis e com textura aberta. Não são conceitos exatos.
Por isso, sua interpretação aceita divergência. E caso venha a haver excessiva disparidade sobre sua correta compreensão no seio da sociedade ou do meio jurídico, isso poderá causar insegurança jurídica indesejada. Perceba novamente: esses institutos são utilizados em momentos de enorme estresse e em ocasiões que duram segundos. Logo, a perplexidade pode ser absolutamente fatal para o inocente.
Há que se levar em conta no tocante ao excesso que, conforme registra a medicina forense, num momento de grande adrenalina a pessoa pode efetuar mais disparos do que aquilo que seria estritamente necessário numa situação normal. A própria percepção sensível de que o agressor já foi neutralizado e a tomada de consciência desse fato pode demorar alguns segundos, tempo suficiente para que o automatismo ocasionado pela tensão leve a pessoa a seguir pressionando o gatilho e efetuando disparos. Tudo isso deve ser levado em conta na interpretação do excesso.
Pense no exemplo de uma pessoa que é atacada com sua família por um criminoso armado e reage. Ela efetua vários disparos em sequência durante o conflito, inclusive alguns logo após a pessoa já estar abatida. Mas cessa quando inequivocamente percebe que o risco já se desfez. Isso, hoje, diante de nossa legislação atual, não deveria ser enquadrado como excesso. Está dentro da margem de razoabilidade do conceito.
Contudo, como o conceito jurídico é indeterminado, essa leitura dependerá da interpretação do operador do direito. Um exemplo recente é o conhecido “caso Ana Hickmann“. Ela foi atacada por um agressor portando arma de fogo junto com sua irmã e cunhado. Sua irmã chegou a ser alvejada. O cunhado, vendo a esposa atingida, reagiu, tomou a arma do agressor e, em meio a combate corporal, desferiu três tiros contra ele. O cunhado foi denunciado pelo MP, por suposto excesso. A justiça absolveu-o, mas o Ministério Público recorreu da decisão. Ao final, o Tribunal de Justiça de Minas Gerais confirmou sua absolvição, entendendo que, de fato, ficou configurada a legítima defesa. Mas nisso foram anos respondendo por crime de homicídio e tendo gastos com o processo.
No acórdão, o Tribunal de Justiça de Minas consignou a seguinte lição:
“Como bem destacou a magistrada primeva na sentença, ‘tal questão é resolvida com o conhecimento pacífico e indiscutível de que a legítima defesa não se mede objetivamente, pois, a pessoa que luta por sua vida, desfere tantos tiros quanto sua emoção no momento, ou mesmo seu instinto de preservação, demonstram ser necessários. Nenhum de nós, em momento de contenda física incessante, como comprovado, consegue ter discernimento se se está efetuando os disparos estritamente necessários para resguardar sua vida, ou não‘ (f. 865).”
Perceba pelo fato de ter havido denúncia (tendo, pois, um membro do MP entendido que houve excesso), enquanto o Judiciário em duas instâncias fez uma leitura diversa, que hoje o conceito de uso moderado dos meios necessários se tornou excessivamente vago, podendo provocar grave insegurança jurídica. Isso torna conveniente uma alteração legislativa que deixe alguns pontos mais claros.
É exatamente isso que faz o Pacote Anticrime.
Ele propõe adicionar ao art. 23 do Código Penal os seguintes parágrafos:
“§ 2º O juiz poderá reduzir a pena até a metade ou deixar de aplicá-la se o excesso decorrer de escusável medo, surpresa ou violenta emoção.
§3.º O disposto no parágrafo anterior não se aplica a crimes praticados no âmbito de violência doméstica ou familiar, ou praticados contra a mulher por razões da condição de sexo feminino, em favor do agressor”.
A medida é absolutamente razoável. Aliás, conta com paradigmas no direito comparado.
O Código Penal Alemão apresenta uma solução semelhante, em seu art. 33:
Se, por perturbação de ânimo, apreensão ou terror, o autor ultrapassar os limites da legítima defesa, ele não é punido.
No mesmo sentido, o Código Penal português consagra em seu art. 33.
1 – Se houver excesso dos meios empregados em legítima defesa, o facto é ilícito, mas a pena pode ser especialmente atenuada.
2 – O agente não é punido se o excesso resultar de perturbação, medo ou susto, não censurável.
Logo, percebe-se que a modificação aqui também é basicamente interpretativa. Ela deixa mais bem delineados os contornos do excesso, de acordo, inclusive, com as melhores práticas internacionais.
Modificações do Pacote Anticrime não se aplicam aos casos invocados pelos desinformadores
Das razões acima percebe-se quão incorreta é a afirmação de que as modificações do Pacote Anticrime poderiam ser aplicadas para tornar impunes casos de civis inocentes mortos em ações policiais.
O motivo é muito simples: não há nesses casos sequer legítima defesa.
Logo, não haveria que se examinar excesso se não havia legítima defesa; nem iminência se não havia sinal de agressão. Frise-se que “a reação defensiva só é legítima quando dirigida ao agressor. Por isso, não há legítima defesa quando a reação defensiva atinge terceiros” (“Justificação – Primeira Parte”, Revista Brasileira de Ciências Criminais, vol. 116, 2015, p. 39-76).
Não só. O uso da morte de inocentes (inclusive crianças) para envenenar o debate público, além de juridicamente absurdo, sendo uma mera cortina de fumaça sobre a realidade em discussão, é ainda moralmente abjeto, politicamente oportunista, e intelectualmente nulo.
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