"Acho que em qualquer época eu teria amado a liberdade; mas na época em que vivemos, sinto-me propenso a idolatrá-la"
(Tocqueville)
Entenda por que o inquérito instaurado por Dias Toffoli é ilegal
Conforme noticiou a Gazeta do Povo, “o presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Dias Toffoli, anunciou a abertura de um inquérito criminal para apurar notícias falsas (fake news) e ataques feitos a ministros da Corte.”
O presidente do STF anunciou também que o inquérito será conduzido pelo ministro Alexandre de Moraes, mediante designação, sem livre distribuição do feito.
“Em seguida, o presidente da Corte leu a portaria assinada por ele para a instauração do inquérito. ‘Considerando a existência de notícias fraudulentas, conhecidas como fake news, denunciações caluniosas, ameaças e infrações revestidas de ânimos caluniante, difamante e injuriante, que atingem a honorabilidade e segurança do Supremo Tribunal Federal, de seus membros e familiares, resolve, como resolvido já está, nos termos do artigo 43 e seguintes do regimento interno, instaurar inquérito criminal para apuração dos fatos e infrações correspondentes em toda a sua dimensão'”
Pois bem. Agora vamos explicar para você 5 motivos pelos quais a instauração do inquérito foi completamente abusiva.
1) O objeto do inquérito é indefinido, não indicando fato específico a ser investigado
O que o inquérito instaurado pelo Presidente do STF faz, basicamente, é instituir um “Estado Policial” no Brasil. Qualquer pessoa hoje está sob permanente investigação sobre qualquer fato que, segundo opinião subjetiva dos próprios ministros, “atingem a honorabilidade e segurança do Supremo Tribunal Federal, de seus membros e familiares”.
Obviamente isso é um ato flagrantemente abusivo. É incompatível com as liberdades constitucionais uma investigação que não contenha um fato específico que lhe sirva de objeto.
Há vários dispositivos que, seguindo as garantias protegidas pela Constituição, caminham nesse sentido: o Código de Processo Penal, por exemplo, em seu art. 5º, § 1º, define que o requerimento para abertura de inquérito deve conter “a narração do fato, com todas as circunstâncias“. A resolução do Conselho Nacional do Ministério Público que regulamenta as investigações ministeriais também determina em seu art. 4º que “o procedimento investigatório criminal será instaurado por portaria fundamentada, devidamente registrada e autuada, com a indicação dos fatos a serem investigados“.
A amplitude quase que ilimitada da investigação do STF, inclusive, gera outros possíveis abusos: por exemplo, o inquérito investiga também parlamentares? Ora, esses gozam de imunidade por suas opiniões, palavras e votos. Investiga também pessoas sem foro perante o Supremo? Mas nesse caso falece competência ao tribunal, como veremos adiante. Esse inquérito pode investigar fatos supervenientes, isto é, posteriores à sua instauração?
Logo, o primeiro vício do inquérito instaurado pelo Presidente do STF, decorre de possuir alcance excessivamente amplo, determinando a investigação de fato incerto e de pessoas indetermináveis.
2) A indicação de ministro responsável viola a exigência livre distribuição
A fim de salvaguardar a isenção dos magistrados que atuam em procedimentos que versam sobre matéria criminal, a legislação determina que a distribuição dos autos seja feita de modo impessoal, por livre distribuição.
É o que expressamente impõe o art. 66 do Regimento Interno do STF: “A distribuição será feita por sorteio ou prevenção, mediante sistema informatizado, acionado automaticamente, em cada classe de processo.” No mesmo sentido vai o art. 75 do Código de Processo Penal.
É uma forma de não permitir que o processo seja um “jogo de cartas marcadas”, destinado a magistrado com opinião previamente conhecida sobre o caso.
Por isso, foi abusivo o procedimento adotado pelo Presidente do STF ao designar o Ministro Alexandre de Moraes como responsável pelo inquérito.
3) O STF não tem atribuição para o caso
Em se tratando de investigação criminal, o Supremo Tribunal Federal só possui atribuição para duas coisas:
- fiscalizar, por meio de um relator, inquéritos presididos pela autoridade policial que investiguem autoridades com foro por prerrogativa de função perante aquela Corte;
- em caso de infração cometida dentro da sede ou dependência do STF, instaurar inquérito na forma do art. 43 do seu Regimento Interno (de constitucionalidade duvidosa, diga-se de passagem, mas deixemos isso de lado, neste momento).
No caso, o inquérito instaurado não versa sobre crime ocorrido no tribunal, e não há qualquer indicação de que cuida de pessoa com foro perante o STF.
Portanto, o Supremo não possui qualquer atribuição sobre o caso.
4) Instauração de inquérito pelo órgão do Poder Judiciário viola o sistema acusatório adotado pela Constituição de 1988
Existem dois sistemas processuais penais muito distintos:
1) o sistema inquisitório, em que não há separação entre a pessoa com função de acusar e julgar, de modo que o próprio futuro juiz da causa tem poder para deflagrar a persecução penal, instaurando a investigação, acusar, e após julgar;
2) sistema acusatório, em que há nítida separação entre o órgão com função de acusar (que pressupõe o poder instrumental de investigar) e a autoridade com competência para julgar.
A Constituição Brasileira de 1988, no art. 129, I, ao determinar que compete privativamente ao Ministério Público promover a ação penal pública, alijou o Poder Judiciário da função de acusar, instituindo um sistema acusatório, o qual, diga-se de passagem, é mais condizente com as garantias do cidadão perante o poder de punir do Estado.
Assim, conforme leciona a maioria dos processualistas penais no Brasil, os juízes não possuem atribuição para acusar, tampouco para deflagrar a investigação, visto que essa é um desdobramento instrumental da função de acusar. Se o juiz pudesse participar da investigação, ainda que apenas determinando sua abertura, o magistrado já fulminaria sua imparcialidade, pois demonstraria comprometimento com o sucesso da persecução do ato ou da pessoa investigada.
A conduta do juiz mais consentânea com o sistema acusatório, ao deparar com uma possível prática delitiva, é remeter os autos ao membro do MP, conforme prevê o art. 40 do Código de Processo Penal (“Art. 40. Quando, em autos ou papéis de que conhecerem, os juízes ou tribunais verificarem a existência de crime de ação pública, remeterão ao Ministério Público as cópias e os documentos necessários ao oferecimento da denúncia”).
Por conseguinte, quando o Presidente do STF, membro do Poder Judiciário, pessoalmente instaurou um inquérito, ele violou de modo patente o princípio acusatório.
5) O inquérito viola a liberdade de expressão
A forma como o inquérito foi aberto, sem indicar fato preciso, indicam a finalidade de instaurar um clima de terror, uma autêntica “caça às bruxas”, inibindo críticas à Corte.
Embora a liberdade de expressão não seja absoluta no Brasil, ela assegura o direito à crítica, mesmo que ácida, especialmente contra os titulares de cargos do Estado. Isso porque nesse caso a crítica encontra fundamento não só na liberdade de manifestação, mas também no princípio republicano. O cidadão é o titular da coisa pública. O servidor público o mero exercente de uma função a ele atribuída. Ora, é lógico que o cidadão possa criticar aquele que deve atuar em seu favor.
Por isso, o inquérito também viola a liberdade de expressão e de crítica política.
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