"Acho que em qualquer época eu teria amado a liberdade; mas na época em que vivemos, sinto-me propenso a idolatrá-la"
(Tocqueville)
Por que consideramos a instituição do “Juiz de Garantias” um avanço.
Conforme noticiado pela Gazeta do Povo, “o presidente Jair Bolsonaro sancionou, com 25 vetos, o projeto de lei anticrime, apresentado pelo ministro da Justiça e Segurança Pública, Sérgio Moro. A Casa Civil havia recomendado uma rejeição maior à proposta, tendo sugerido 38 vetos. Bolsonaro sancionou a nova lei nesta terça-feira (24), quando foi publicada uma edição extra do Diário Oficial da União.”
Um dos pontos mantidos pelo Presidente e que causou maior repercussão foi o do chamado “Juiz de Garantias”, visto que o ministro Sérgio Moro, um dos pilares do governo, havia sugerido o veto a esse ponto.
De nossa parte, consideramos a instituição do juiz de garantias um avanço e a defendíamos já há tempos. Para explicar o porquê, vamos primeiramente descrever o que é o juiz de garantias e qual sua razão de ser. Após, vamos tentar responder alguns ataques (a nosso ver infundados) que o instituto tem sofrido.
Para entender o que é o juiz de garantias e por que ele foi instituído é preciso entender minimamente o processo penal, o qual é um meio pelo qual se busca o julgamento de uma pessoa a quem a acusação atribui a prática de um ato criminoso.
Existem dois modelos clássicos de processo penal (e isso é importantíssimo para entender a razão do juiz de garantias): o inquisitivo, em que uma mesma pessoa pode cumular as funções de acusar e julgar. E o modelo acusatório, em que há uma clara distinção entre as pessoas responsáveis uma por acusar e outra por julgar.
Nossa Constituição Federal fez opção indubitável pelo modelo acusatório, quando no art. 129, inciso I, instituiu que “são funções institucionais do Ministério Público: I – promover, privativamente, a ação penal pública, na forma da lei”.
E essa foi uma excelente opção. De fato, o modelo acusatório promove uma maior distribuição dos poderes, o que evita abusos, e ao limitar o raio de atribuições do Estado-juiz investe mais poderes nas partes Ainda, preserva em maior medida a imparcialidade do magistrado. Particularmente, creio que o modelo acusatório é mais consentâneo com os ideias do conservadorismo-liberal.
Imagine: se o próprio juiz promove a acusação o que ele irá julgar ao final? Muito provavelmente, se estava convencido da culpa ao princípio, será mais difícil que venha a mudar de ideia. Também é possível que ele restrinja a atuação defensiva, pois as ações da defesa criticando a acusação estariam nesse caso criticando o próprio trabalho do juiz.
Estando entendido que, em nosso modelo, um órgão acusa e outro julga, fica a pergunta: mas quem investiga? Onde ficam os atos prévios à acusação?
Aqui entra um ponto importante. A investigação é uma mera função apêndice da atribuição acusatória. Para acusar é necessário ter os elementos que demonstrem que o crime ocorreu e que o denunciado é seu provável autor (o que chamamos de justa causa no jargão jurídico). O levantamento desses elementos ocorre por meio da investigação, cuja natureza é, portanto, instrumental à tarefa de acusar.
Não por outro motivo, a Constituição colocou a investigação sob permanente controle do órgão titular da ação penal, o Ministério Público. Ele pode: a) investigar diretamente; b) requisitar (o que é sinônimo de ordenar, não de requerer) a instauração de investigação (art. 129, VIII, da CRFB); c) definir a estratégia investigativa e determinar a prática de diligências ou as provas que pretende ver produzidas (art. 129, VIII, da CRFB); d) promover, com exclusividade, o arquivamento da investigação caso esteja convencido da ausência de elementos de culpa (art. 28 e 17 do Código de Processo Penal) ou denunciar (art. 129, I, da CRFB/88 e art. 40 do CPP).
Ou seja, o Ministério Público atua antes, durante e depois de investigação. Ele pode instaurá-la ou determinar sua instauração; acompanhá-la e determinar diligências; e encerrá-la por meio do arquivamento ou denúncia. Com isso, fica claro o nexo de instrumentalidade entre investigação e acusação, sendo os elementos colhidos durante a investigação destinados ao titular da ação penal.
Nesse sentido, já assinalou o Ministro TEORI ZAVASCKI o papel do Ministério Público em dirigir a investigação criminal, referindo-se a casos em trâmite na Suprema Corte do País:
(…) o modo como se desdobra a investigação e o juízo sobre a conveniência, a oportunidade ou a necessidade de diligências tendentes à convicção acusatória são atribuições exclusivas do Procurador-Geral da República (Inq 2913-AgR, Min. LUIZ FUX, Tribunal Pleno, Tribunal Pleno, DJe de 21-6-2012), mesmo porque o Ministério Público, na condição de titular da ação penal, é o verdadeiro destinatário das diligências executadas (Rcl 17649 MC, Min. CELSO DE MELLO, DJe de 30/5/2014).
Logo, num sistema acusatório, o órgão judicial – que não pode exercer função típica do órgão de acusação – deve ser afastado da fase investigatória. Tanto assim, que na ADI 1570 o STF julgou inconstitucional dispositivo da antiga lei de organizações criminosas (Lei 9.034/95) que permitia que o magistrado praticasse pessoalmente atos durante a investigação. Do contrário, o juiz tornar-se-ia também investigador e, com isso, estaria se misturando com uma atividade instrumental à acusação. Ao participar ativamente da investigação, ele logicamente já estaria tomando conhecimento dos elementos que vão sendo produzidos sem a participação da defesa e de modo alheio ao contraditório, formando sua opinião previamente à ação penal.
Só que há um problema: para própria proteção da intimidade e de alguns direitos dos investigados, há atos de investigação que demandam autorização judicial. É uma forma de impedir que o órgão de acusação diretamente tenha acesso a elementos da intimidade do investigado. Por exemplo, caso pretenda promover uma interceptação telefônica ou quebra de sigilo bancário ou fiscal, exige-se que o magistrado autorize a medida.
Todavia, perceba que idealmente nessa fase o juiz não deve atuar como investigador; pelo contrário, a ideia é que atue como garante dos direitos dos investigados, prevenindo abusos. Ele não deve ser o promotor da investigação, mas um fiscal dela. Não é atacante, mas goleiro. Sua função, obviamente, também não é a de boicotar a investigação ou analisar a conveniência dos pleitos do órgão acusatório: é apenas verificar se os requisitos legais das medidas estão presentes. Por isso, acerta o dispositivo da lei aprovada ao definir que “art. 3º-B. O juiz das garantias é responsável pelo controle da legalidade da investigação criminal e pela salvaguarda dos direitos individuais“
O site “O Antagonista” publicou artigo que viralizou na internet e no qual questiona: “Garantias para quem, cara-pálida?” Ora, de toda e qualquer pessoa, inclusive eu e você leitor. Qualquer pessoa pode vir a ser alvo de uma investigação, mesmo sendo inocente. Basta estar no lugar errado, na hora errada. E todos gostariam de ter suas garantias constitucionais preservadas.
De todo modo, o fato é que ao atuar durante as investigações – mesmo que exclusivamente como garante -, isso implicará em contato do juiz com as provas produzidas fora do contraditório e formação paulatina da convicção antes do processo.
Ora, o que fazer nesse caso para preservar o princípio acusatório e a imparcialidade do magistrado? Parece intuitivo que a melhor saída é simplesmente definir que o magistrado que atuou durante a investigação não poderá julgar a causa. Essa separação entre juiz que investigou e juiz que julgará, inclusive, já é adotada em vários países, ainda que com diferentes formatos, como Estados Unidos, Chile e Espanha. Perceba que são nações com nível de sucesso superiores aos do Brasil em termos de combate à criminalidade e à corrupção.
O problema é que no Brasil o art. 83 do CPP previa exatamente o contrário: o juiz que conhecesse de qualquer requerimento relativo à causa, mesmo que antes do recebimento da denúncia, tornar-se-ia prevento para julgar o processo. Esse é um dos exemplos que ilustram como, apesar de nossa Constituição instituir um modelo acusatório, nosso sistema processual penal previsto na legislação era fortemente autoritário em 1988, o que vem desde o “estado varguista”. Assim, o Brasil vem há anos tendo de promover reformas que concretizem em maior medida o sistema legal com a Constituição.
A criação da figura do “Juiz de Garantias”, a nosso sentir, é um dos passos nesse sentido e vem corrigir o equívoco do art. 83 acima citado.
A novel legislação prevê que um magistrado atuará durante a investigação. Encerrada essa fase, o Ministério Público extrairá os documentos probatórios relevantes e ofertará a denúncia em outros autos. O juiz de garantias examinará o recebimento ou não da peça acusatória (art. 3º-C).
Saliente-se que o juiz de garantias será designado por critérios objetivos, como ocorre com os processos de maneira geral hoje em dia, consoante previsão expressa do novo art. 3º-E do CPP.
Perceba, assim, o quão improcedente é a seguinte crítica ao instituto constante do já mencionado post no portal “O Antagonista”:
“ele [o juiz de garantias] ocupará o lugar do juiz natural do caso, que será praticamente escanteado por um magistrado escolhido a dedo (“designado”) pelo presidente do tribunal em questão — como ocorreu no caso do famigerado inquérito secreto aberto por Dias Toffoli no STF, para cuja condução o presidente do Supremo escolheu discricionariamente Alexandre de Moraes”
Há dois erros crassos: um, ele não ocupará o lugar do juiz natural. Ele será o juiz natural para as investigações. O juiz natural nada mais é do que aquele com atribuição previamente estabelecida segundo critérios objetivos para cuidar de determinado caso. O juiz de garantias será exatamente isso no tocante à fase pré-processual. Em segundo lugar, ele não será designado a dedo, porque isso feriria a vedação ao juiz de exceção prevista na Constituição, que é exatamente aquele indicado após o fato sem amparo em regras objetivas e impessoais. Caso alguma regulação de tribunal preveja indicação ad hoc (ou seja, para cada caso), ela será ilegal e inconstitucional e deverá ser combatida judicialmente.
Pois bem. Após o recebimento da denúncia, encerra-se a participação do juiz de garantias.
O processo, então, sofrerá nova distribuição para outro juiz. Nessa distribuição, o juiz que atuou como fiscal das garantias estará impedido (art. 3º-D). Ele não estará vinculado às decisões do juiz de garantias, podendo revertê-las e terá competência para julgar questões pendentes.
Frise-se que ao contrário do que alguns têm alegado, a medida não amplia em absolutamente nada a carga de trabalho do Poder Judiciário. A razão é muito simples: perceba que a função de juiz de garantias já existe. Ela apenas é cumulada pelo mesmo juiz responsável pela instrução e julgamento.
A novidade legislativa apenas modifica a divisão das atribuições, sem ampliação de carga de trabalho. O magistrado “Fulano” que antes cuidaria no “caso X” dos requerimentos investigativos e, após, da instrução e do julgamento; agora será responsável apenas por uma dessas fases, enviando a outra para o juiz “Ciclano”; enquanto isso, esse seu colega que recebeu parte do “caso X”, deixará por sua vez de cumular as atribuições no “caso Y”, enviando uma das fases para o julgador “Fulano”.
E nas comarcas em que há apenas um magistrado? Bom, primeiramente é importante mencionar que cidades pequenas não costumam sediar operações muito complexas. De todo modo, o parágrafo único do novo art. 3º-D prevê que “nas comarcas em que funcionar apenas um juiz, os tribunais criarão um sistema de rodízio de magistrados, a fim de atender às disposições deste Capítulo.” A redação é péssima e não explica nada. Mas o que se imagina é que os tribunais irão criar “regiões judiciais”. Assim, o tribunal poderá, por exemplo, constituir uma região com cinco pequenas cidades limítrofes, cada uma com um juiz. Logo, uma investigação da Comarca X poderá ser distribuída para qualquer magistrado das outras quatro, de modo que a instrução e o julgamento posteriormente fiquem a cargo do juiz da própria comarca. É de se frisar que a distância e o tempo de deslocamento entre municípios que possuem um único juiz são inferiores ao que se verifica entre bairros de uma cidade como São Paulo ou Rio de Janeiro.
Outro ponto a ser respondido é a alegação de que a norma seria “anti-Moro”. A afirmação nos soa absurda. Há de se pensar o processo penal sob a perspectiva geral e no longo prazo, não sob figuras do momento, por mais importantes e relevantes que elas tenham sido para melhorar o país, como no caso do Ministro Sérgio Moro. Saliente-se, aliás, que a criação do “Juiz de Garantias” não deve significar qualquer crítica ao fato de o ministro, quando juiz, ter atuado em alguns casos tanto na fase investigativa quanto processual, visto que era isso que a legislação impunha à época. Aliás, a imparcialidade do magistrado à frente da Lava Jato é inquestionável, a não ser pelos defensores da impunidade, visto que seu trabalho foi revisado inúmeras vezes por instâncias independentes com enorme taxa de manutenção de suas decisões.
Ainda, é de se ressaltar que a proposta de instituição do juiz de garantias já é estudada há anos no Brasil. Em 2014, por exemplo, antes da Lava Jato, dissertação de mestrado na USP já abordou o tema com grande qualidade, tratando da proposta de um novo CPP, elaborada por uma comissão de juristas e que contemplava a criação do juiz de garantias. Por isso, não se deve ver aqui qualquer polarização com o ministro.
Alguns citam fatos como: Bretas será afastado de ações futuramente propostas na Lava Jato do Rio em que tenha atuado na fase de investigação: e daí? Apesar do excelente trabalho que o juiz Bretas desempenhou, isso é um personalismo sem sentido. Não se pode brecar uma reforma que moderniza o sistema e o torna mais consentâneo com o modelo acusatório, simplesmente pelo caso X ou Y e pela pessoa Z ou V.
Também não devemos temer que o respeito a direitos do réu e o controle da atividade judiciária tenha necessariamente efeitos negativos sobre a impunidade e o combate ao crime e à corrupção. De modo algum. Não se deve pretender reduzir garantias consagradas nas civilizações mais avançadas e que tiveram enorme sucesso no combate ao crime, achando que é um meio necessário para reduzir a enorme criminalidade do Brasil. O que se deve pretender é o que Albert Venn Dicey chamou em seu clássico “Introduction to the Study of the Law of the Constitution” como Rule of Law, expressão que pode ser traduzida por Império da Lei e cuja “exigência mais importante (…) é que as pessoas em posições de autoridade exerçam seu poder dentro de uma estrutura restritiva de normas públicas bem estabelecidas, e não de maneira arbitrária, ad hoc ou puramente discricionária, com base em suas próprias preferências. ou ideologia. Insiste em que o governo deve operar dentro de uma estrutura legal e que tudo o que faz deve poder ensejar responsabilização quando houver a possibilidade de ação não autorizada pela ordem jurídica”.
A imposição de que o Estado respeite as prerrogativas do cidadão fortalece a cultura de que as normas tem de ser respeitadas, favorecendo uma cultura de apreço e observância da lei. Por isso, o “Império da Lei não se refere apenas ao governo. Exige também que os cidadãos respeitem e cumpram as normas legais, mesmo quando discordam delas”.
Assim, pensamos que a experiência do instituto do juiz de garantias é bem-vinda e as críticas excessivas e apressadas até agora apresentadas são, em geral, improcedentes. É um instituto moderno, que concretiza em maior medida o princípio acusatório, fortalece a imparcialidade do magistrado e, por si só, caso bem implementado, não prejudica a persecução penal ou o combate à impunidade. Aliás, trata-se de experiência crescente em outros países, inclusive mais bem sucedidos do que o Brasil no combate à criminalidade.
deixe sua opinião