"Acho que em qualquer época eu teria amado a liberdade; mas na época em que vivemos, sinto-me propenso a idolatrá-la"
(Tocqueville)
Marco Aurélio deve sim sofrer impeachment pela presepada de fim de ano
“A pior ditadura é a do Poder Judiciário. Contra ela, não há a quem recorrer.”
Eis a frase lapidar do saudoso Ruy Barbosa. O provérbio não poderia vir mais a calhar. É que essa ditadura há alguns anos castiga a paz nacional.
Da fusão de empresas à privatização de estatais deficitárias (que obrigam o governo a drenar recursos da saúde, educação e segurança) até o impeachment do governo natimorto de Dilma Rousseff: não há nada mais que seja previsível para o povo brasileiro. Tudo o que parece certo pode amanhã estar revertido por uma liminar. Algum burocrata jurídico que nunca recebeu um voto na vida poderá, sem qualquer previsão legal, reverter meses de discussão e simplesmente impor sua opinião, a qual fingirá fundamentar invocando princípios abstratos previstos na Constituição e que ele dirá que a única forma de atender é a sua.
Pois bem. No dia 19 de dezembro de 2018, a novela da ditadura judicial teve mais um triste e ruidoso capítulo…
OS FATOS
Conforme noticiou a Gazeta do Povo, no último dia de funcionamento do Poder Judiciário antes do recesso –, o ministro do STF Marco Aurélio de Mello (nomeado para o Tribunal por seu primo, o ex-Presidente Fernando Collor de Mello, em 1990), proferiu decisão monocrática (ou seja, individual) “para suspender a possibilidade de prisão após condenação judicial em segunda instância”.
Na liminar, o ministro determinou “a suspensão de execução de pena para aqueles que tenham sido presos sem que o processo tenha transitado em julgado, ou seja, que ainda tenha recursos em andamento” A decisão do ministro não possuía efeitos imediatos, sendo necessário que os advogados individualmente requeressem a soltura de seus clientes caso a caso, perante os órgãos inferiores responsáveis pela execução.
A decisão foi proferia no bojo da Ação Declaratória de Constitucionalidade nº 54, ajuizada pelo Partido Comunista do Brasil, solicitando seja julgada constitucional a exigência de trânsito em julgado para a execução da pena privativa de liberdade.
Felizmente, ainda no mesmo dia, como também informou a Gazeta do Povo, “o presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Dias Toffoli, acatou recurso da Procuradoria-Geral da República (PGR) e revogou a decisão liminar do ministro Marco Aurélio Mello, da mesma Corte, que mandava soltar todos os presos condenados em segunda instância.”
“Toffoli decidiu que os efeitos da manifestação de Marco Aurélio, que tem caráter provisório, fiquem em suspensão até que o plenário do Supremo julgue a ação declaratória de constitucionalidade do PCdoB que contesta a execução antecipada da pena após condenação em segunda instância.”
DO CRIME DE RESPONSABILIDADE COMETIDO POR MARCO AURÉLIO
A análise de três fatores: 1) o conteúdo da decisão (contrário a precedente do Pleno do STF); 2) o instrumento utilizado por Marco Aurélio (julgamento monocrática); e, 3) o momento em que proferida (no último dia antes do recesso) demonstram que o decisum foi proferido em clara e manifesta usurpação da competência do Plenário do Tribunal e em franco desrespeito à autoridade do mesmo órgão.
Tal modo de proceder do ministro é “incompatível com a honra, dignidade e decoro de suas funções”, configurando crime de responsabilidade segundo o art. 39, 5, da Lei 1.079/50, devendo ele ser condenado à perda do cargo na forma do art. 70 da mesma lei.
Vejamos cada um desses pontos.
1) Conteúdo da decisão
Primeiro ponto: a decisão do ministro Marco Aurélio não encontra respaldo na Constituição, conforme demonstramos em publicação anterior, em artigo intitulado: “6 Coisas que você tem de saber sobre a prisão em 2ª instância“. Lá explicamos que “a Constituição não veda, em momento algum, a execução provisória da pena antes do trânsito em julgado. Disposição com semelhante conteúdo simplesmente não existe em nossa Carta Magna.”
Ademais, segundo apontou a associação “MP Pró-Sociedade”, em comunicado à população, a decisão do ministro desrespeita a autoridade de precedente do Plenário da Corte que já aceitou a execução provisória da pena após condenação em segundo grau.
De fato, segundo demonstramos em post que veiculou a manifestação da entidade:
“O STF voltou a admitir a prisão em segunda instância no julgamento do Habeas Corpus 126.292, em 17 de fevereiro de 2016 (…). Em julgamento dos embargos de declaração do julgado, o STF manteve novamente a posição. (…)
Mais tarde, em outubro de 2016, o Supremo Tribunal Federal (…) indeferiu liminar nas Ações Diretas de Constitucionalidade 43 e 44, reafirmando o entendimento supra. (…)
Por fim, no julgamento do Recurso Extraordinário com Agravo 964.246, analisado sob a sistemática de Repercussão Geral, sendo assim um precedente vinculante, em 11 de novembro de 2016 (…), a Suprema Corte reiterou a admissão da execução provisória da pena após condenação em segunda instância.”
Frise-se que, como bem reconheceu o presidente do STF ao suspender a decisão do Ministro Marco Aurélio, essa posição consta inclusive entre as teses com repercussão geral do Supremo (Tema 925), com a seguinte redação:
“A execução provisória de acórdão penal condenatório proferido em grau recursal, ainda que sujeito a recurso especial ou extraordinário, não compromete o princípio constitucional da presunção de inocência afirmado pelo artigo 5º, inciso LVII, da Constituição Federal.”
Ainda, como ressaltamos em nossos artigos anteriores: “não houve desde então qualquer modificação normativa ou social que dê motivo à revisão do entendimento. A composição do STF também permaneceu quase inalterada. Desse modo é possível concluir que não há qualquer justificativa jurídica para a decisão proferida, tratando-se de mera resistência do ministro em aceitar que seu entendimento foi derrotado no Plenário, e não atende aos justos e razoáveis clamores da sociedade demonstrados nos últimos anos, inclusive nos pleitos eleitorais.”
Por fim, quanto a esse ponto, importante relembrar que o órgão máximo e responsável pela fixação dos precedentes vinculantes é o Plenário da Corte, ao qual estão submetidos os órgãos fracionários (turmas) e monocráticos (ministros individualmente).
Deveras, “o Pleno do STF é o órgão máximo, o que ele decide tem que ser aplicado, sob pena de violação explícita da ordem jurídica pelos Ministros e/ou Turma dessa Corte. Nesse contexto institucional, fixada a uniformização da jurisprudência pelo STF, nenhum tribunal, nem mesmo a mais alta Corte, seja por Ministros individualmente, seja por suas Turmas isoladas, pode alegar que “a decisão vale apenas para o processo em questão”, a pretexto de afastar a aplicação da jurisprudência uniformizada do Plenário, sob pena de se degradar inescusavelmente a ordem Constitucional, cuja preservação depende, por exemplo, do cumprimento dos artigos 926 e 927 do Código de Processo Civil”.
Logo, tendo em vista que o órgão superior e responsável pela fixação dos precedentes é o Pleno do STF, ao qual estão submetidos os ministros e as turmas do Tribunal, e que aquele já havia firmado a tese do cabimento da execução provisória da pena após condenação em segunda instância, em reiterados julgados, inclusive em regime de repercussão geral, conclui-se que o ministro Marco Aurélio de Mello desrespeitou a autoridade jurisdicional daquela Corte ao julgar monocraticamente em sentido contrário.
Contudo, apenas esse fato não seria suficiente para promover um processo de impedimento do ministro. Julgadores são passíveis de erro. Podem desconhecer um precedente, ou interpretá-lo equivocadamente, o que não é capaz de gerar responsabilidade do julgador, devendo o fato ser objeto de recurso.
Todavia, a análise dessa circunstância, conjuntamente com o instrumento utilizado pelo ministro (decisão individual) e o momento em que proferido o julgado, deixam claro o propósito doloso de desatender a decisão da Corte, usurpando sua atribuição para decidir sobre o tema.
Analisemos os outros dois pontos.
2) O instrumento utilizado pelo Ministro Marco Aurélio: decisão monocrática em Ação Declaratória de Constitucionalidade
Tendo, como vimos, o plenário do STF fixado a tese segundo a qual é admissível a execução provisória da pena após condenação em segunda instância, apenas o mesmo plenário poderia reformar o precedente. Ministros monocraticamente ou turmas não têm autoridade para tanto.
Um ministro pode, vislumbrando que determinado precedente se mostra desatualizado, suscitar sua alteração, ao que deverá remeter o caso para o Pleno. Jamais poderá ele, sozinho ou por meio do órgão fracionário, desautorizar o precedente ou modificá-lo.
Isso se torna ainda mais grave em se tratando de ação direta de inconstitucionalidade (ADIn) ou ação declaratória de constitucionalidade (ADC) (como era o caso decidido pelo ministro Marco Aurélio), visto que sequer há previsão legal para decisão monocrática, salvo no que toca às ADIns no período de recesso.
De fato, consoante o art. 21 da Lei 9.868/99 que rege o procedimento das ADCs, “o Supremo Tribunal Federal, por decisão da maioria absoluta de seus membros, poderá deferir pedido de medida cautelar na ação declaratória de constitucionalidade”.
Em virtude disso já decidiu, acertadamente, aquela Corte que “a decisão sobre medida cautelar é da competência do Tribunal Pleno e sua concessão depende do voto da maioria absoluta de seus membros, ouvidos, previamente, os `órgãos ou autoridades dos quais emanou a lei’ (Lei 9.868/99, art. 10). A lei abre uma única exceção à regra: ‘Salvo no período de recesso’ (Lei 9.868/99, art. 10). Em nenhum momento, salvo o recesso, a lei autoriza a decisão de cautelar pelo relator. Mesmo nos casos de `excepcional urgência’, a lei mantém a competência da decisão com o Tribunal.” (MS 25.024-MC, rel. Min. Eros Grau, decisão monocrática proferida pelo presidente Min. Nelson Jobim, julgamento em 17-8-2004, DJ de 23-8-2004)
É bem verdade que o STF têm admitido, de modo excepcionalíssimo, a relativização da regra (o que é corretamente criticado pela doutrina), invocando a norma aplicável às ADPFs (arguição de descumprimento de preceito fundamental, sob regência da Lei 9.882/99) e o Regimento Interno da Corte.
Todavia, mesmo que se admita de modo excepcionalíssimo decisões liminares monocráticas, é necessário averiguar a função dessa técnica de julgamento.
Com efeito, a decisão monocrática é uma técnica decisória que atende a dois fins: racionalizar os trabalhos, evitando que ações cuja matéria já está pacificada, ou cujo pleito é absurdo, ocupem a pauta dos colegiados; ou/e, atender a necessidade imperiosa a fim de evitar perecimento de direito, ou seja, permitir decisões em casos nos quais a demora natural para pautar o processo posse acarretar o esvaziamento do direito.
No caso em tela, contudo, o ministro Marco Aurélio não visava a atender quaisquer dessas hipóteses:
i) ele não buscou aplicar tese já pacificada pela Corte, muito pelo contrário buscou revisá-la monocraticamente;
ii) tampouco se pode dizer que havia urgência irremediável: primeiramente, porque casos individuais que eventualmente exigissem urgência poderiam ser decididos mediante pleito particular dos presos perante os juízes de execução. Frise-se que a própria decisão do Ministro Marco Aurélio afirmou que não era automática, dependendo de pedido perante os juízos inferiores. Em segundo lugar, porque o pedido de liminar foi apresentado junto com a ação em abril de 2018, tendo o PCdoB reiterado o pleito liminar em junho deste ano. Um requerimento que já havia aguardado por oito meses, sem que qualquer mudança fática relevante tenha ocorrido, com certeza poderia esperar até sua análise pelo órgão competente.
Logo, o que se percebe é que o ministro Marco Aurélio desnaturou completamente as finalidades da técnica decisória: em geral, julga-se monocraticamente porque se tem grande confiança de que a decisão será acolhida pelo colegiado, porém não há tempo ou razão para aguardar.
No caso concreto, o que houve foi o uso da decisão monocrática exatamente contra a posição do colegiado. O que, infelizmente, tem ocorrido por vezes no STF, é que ministros têm decidido monocraticamente como uma forma de impor sua visão individual, subtraindo a questão ao corpo coletivo de julgadores.
Por isso, como dissemos em artigo anterior, “a decisão do ministro Marco Aurélio foi muito mais um ato de militância do que de exercício racional da jurisdição.”
É uma subversão completa da ideia e dos fins de tal técnica decisória.
Possível concluir, portanto, que o Ministro Marco Aurélio valeu-se de julgamento monocrático fora dos casos em que cabível a medida.
E não foi só. Escolheu uma data em que o Tribunal ficaria inviabilizado de reverter a decisão. É o que veremos a seguir.
3) A data escolhida, ocultamente, por Marco Aurélio
Se Marco Aurélio realmente acreditava que seu caso demandava uma decisão liminar, deveria tê-la proferido tão breve o processo aportou em seu gabinete. Ou, ao menos, poderia ter escolhido qualquer uma das semanas do ano desde abril (quando a ação foi proposta) ou junho (quando o pleito foi reiterado).
Mas não. Marco Aurélio escolheu o último dia do ano antes do recesso, quando já não haveria mais sessões do Pleno aptas a examinar e reverter seu julgado.
Esse talvez seja o elemento que deixa mais indícios do propósito de usurpar a competência do Plenário. Como bem descreveu o articulista da Gazeta do Povo Mário Vitor Rodrigues:
“quando surgiu a notícia de que o ministro Marco Aurélio Mello havia determinado a soltura de condenados em segunda instância, a grita foi tão forte quanto imediata. Nada mais natural. Não bastasse o teor da decisão — estapafúrdia como poucas, pois beneficiaria cerca de 169 mil presos, segundo o Conselho Nacional de Justiça, além de ferir o princípio da colegialidade —, o comportamento sorrateiro adotado pelo ministro causou espécie. A escolha pelo último dia antes do recesso para agir e o fato de ter preferido o silêncio em vez de manifestar suas intenções aos colegas da Corte deixaram claro o seu maquiavelismo.”
CONCLUSÃO
Examinando o teor da decisão em comento do ministro Marco Aurélio (contrariando precedente vinculante do Plenário), o instrumento por ele utilizado (decisão monocrática sem previsão legal, subtraindo a discussão ao colegiado) e a data escolhida (último dia antes do recesso, ocasião em que já não haveria mais sessões do pleno aptas a reexaminarem o julgado): é possível concluir que houve nítido propósito de desacatar a autoridade de tese já fixada pela Corte e usurpar a competência do plenário para reavaliar questão, o que configura conduta “incompatível com a honra, dignidade e decoro de suas funções”, configurando crime de responsabilidade segundo o art. 39, 5, da Lei 1.079/50. A conduta está sujeita à condenação de perda do cargo, na forma do art. 70 da mesma lei.
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