"Acho que em qualquer época eu teria amado a liberdade; mas na época em que vivemos, sinto-me propenso a idolatrá-la"
(Tocqueville)
Ministério Público Federal em Goiás verifica caráter partidário de curso em defesa de Dilma e requer sua suspensão na Justiça
O Ministério Público Federal ingressou na Justiça contra a Universidade Federal de Goiás, requerendo a imediata suspensão de curso de extensão em defesa de Dilma Rousseff e contra seu impeachment.
O Ministério Público ingressou com a demanda após verificar que a atividade não tem caráter acadêmico, tampouco respeita a pluralidade de ideias e concepções, mas busca apenas fazer propaganda das opiniões dos organizadores com os recursos da universidade. Ademais, ocorrendo em ano eleitoral e tendo nítido viés político-ideológico, o curso possibilita o uso de bens públicos para promoção de partidos e candidatos.
O MP requereu, ainda, que ao final do processo “seja declarada a nulidade dos atos administrativos que culminaram na criação do curso de extensão ‘O golpe de 2016 e a universidade pública brasileira'”. Por fim, que “seja determinado à UFG que, na realização de eventuais cursos futuros sobre o impeachment ocorrido em 2016, adeque seu título e promova, no uso de sua autonomia universitária, a inclusão e representação das diversas correntes de pensamento a respeito desses eventos da história nacional recente, em conformidade com o princípio do pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas“.
A peça inicial pede que, em caso de descumprimento da ordem, seja aplicada multa diária à universidade.
A petição apresentada pelo Ministério Público Federal é de um primor singular, de modo que se recomenda sua leitura integral. Ela é rica de doutrina, citação de artigos científicos sobre os temas tratados, menção a precedentes, e análise dos fatos. Aqui buscaremos resumir o que consideramos as partes e argumentos principais.
Entenda o caso…
No início deste ano eleitoral várias universidades públicas lançaram cursos organizados por professores engajados com grupos de esquerda, visando defender que o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff teria sido um golpe.
Em 2016, após submissão a processo que respeitou todas as garantias e cujo rito sofreu pesada (creio que, inclusive, exagerada) fiscalização do Supremo Tribunal Federal (majoritariamente composto por ministros nomeados pelo PT), a ex-presidente foi condenada à perda do cargo em razão do cometimento de crimes responsabilidade por fraudes fiscais da ordem de 60 bilhões de reais, além da realização de gastos extraordinários sem a autorização do Congresso como exige a Constituição.
A prática das fraudes fiscais ajudou a agravar o cenário brasileiro levando à pior recessão da história do país, fato que jogou mais de 8 milhões de pessoas para baixo da linha da miséria e destruiu milhões de empregos.
A conduta ímproba levou a uma dupla rejeição das contas da ex-Presidente pelo TCU, nos anos de 2014 e 2015, e terá repercussões judiciais na esfera penal e por ato de improbidade administrativa.
O curso da Universidade Federal de Goiás…
Em 16 de março de 2018 a Universidade Federal de Goiás também criou um curso de extensão sobre o impeachment de Dilma Rousseff intitulando-o como “golpe”.
O curso ocorre na Faculdade de Educação e atende não só estudantes da instituição, mas permanece aberto a pessoas de fora.
A investigação pelo Ministério Público
Conforme notícia da Sala de Imprensa do Ministério Público Federal, “no final de março deste ano, o MPF/GO recebeu representação alegando que a UFG estaria franqueando ao seu corpo discente uma disciplina sobre o ‘golpe de 2016’, tendo como objeto a análise do processo de impeachment da ex-presidente da República Dilma Rousseff. De acordo com representação, o referido curso não seria revestido de caráter acadêmico ou de difusão do conhecimento, mas sim de propaganda político-partidária realizada com a utilização de bens públicos e custeada pelo erário, em prol do Partido dos Trabalhadores (PT).”
Os procuradores responsáveis pelo caso requisitaram informações da Universidade.
“Durante reunião feita na sede do MPF em Goiás, no último dia 2 de abril, os professores Edward Madureira Brasil e Sandramara Martins Chaves, reitor e vice-reitora da UFG, respectivamente, afirmaram expressamente que o curso foi idealizado como uma resposta política à declaração feita pelo ministro da Educação, Mendonça Filho.” Em fevereiro deste ano o Ministro se posicionou contrário a curso realizado pela UNB tratando o impeachment como “golpe”, requerendo investigação da legalidade do ato pelo MP, TCU e AGU. Ainda, em entrevista à Folha de São Paulo, o Ministro afirmou que o curso se tratava de “disciplina que não tem nenhuma base na ciência, é apenas promoção de uma tese de um partido político”. “Após a declaração, universidades públicas brasileiras, em reação, passaram a oferecer cursos e/ou disciplinas análogas, como acontece com a UFG”, conforme expõe a petição inicial.
Ante a constatação de que o curso tinha caráter político e não científico-pedagógico e de que não respeita a pluralidade de ideias, visando fazer propaganda de visão única sobre os fatos abordados, os procuradores fizeram recomendação para que o curso fosse alterado, de modo a “contemplar a participação de pessoas adeptas das demais correntes de pensamento sobre os eventos ocorridos no processo de impeachment em 2016.“
Mesmo cientes dos problemas do curso, os responsáveis pela universidade manifestaram que o manteriam nos mesmos moldes.
Diante da recalcitrância da entidade, o MPF ajuizou a ação com o pedido acima descrito.
Fundamentos da ação
1º Fundamento: a autonomia universitária não é absoluta. A universidade é autônoma dentro dos limites da Constituição e das leis
A petição inicial faz uma excelente análise sobre o conteúdo do princípio da autonomia universitária, previsto no art. 207 da Constituição. É recomendável a leitura da peça (item 4.1) para quem se interessa em aprofundar sobre o tema, pouco tratado pela doutrina brasileira o que acaba tornando-o de difícil compreensão pela comunidade jurídica.
Os procuradores que promoveram a ação afirmam – de modo absolutamente correto – que “a autonomia universitária não é absoluta. Deveras, nenhuma autonomia no estado democrático de direito é absoluta. Assim como o princípio da independência funcional dado à magistratura e ao ministério público também não é absoluto, pois é temperado com o dever de fundamentar suas decisões, que não podem violar as leis e a constituição.”
Na fundamentação citam as seguintes lições do grande constitucionalista Celso Ribeiro Bastos:
“A autonomia da universidade é um poder funcional derivado, e como tal não deve ser confundida com a independência ou com soberania.
A autonomia universitária confere à universidade o poder de se autodeterminar, desde que tal autodeterminação não exorbite da ordem jurídica democrática vigente em nosso país.
É de bom alvitre advertir que, apesar de nossa Carta Maior conceder autonomia às universidades, cabe ao Poder Público fiscalizar o ensino que nelas está sendo ministrado, pois a fiscalização é um dever e uma tarefa pedagógica do próprio Estado. A autonomia encontra os seus limites na legislação do Estado, que tem o poder e o dever de inspecionar o modo pelo qual estão sendo utilizados os recursos financeiros a ela concedidos e de que maneira está sendo exercida a sua política pedagógica.”
Também mencionam a opinião concordante, igualmente acertada, do publicista Adilson Abreu Dallari:
“Em síntese, a autonomia administrativa é uma margem de liberdade que pode ser conferida ou pela lei, ou excepcionalmente (caso da universidade e do Ministério Público) pela Constituição, mas sempre, de qualquer forma, significando uma faculdade, um poder de tomar decisões em nível infralegal, debaixo da lei, em conformidade com a lei”.
Por fim, ainda, o clássico Oswaldo Aranha Bandeira de Mello: “O ente autônomo, não obstante sua natureza, sujeita-se também a controle de vigilância, específico e estrito, nos termos constitucionais ou legais”.
Aliás, o próprio Supremo Tribunal Federal já reconheceu que “o princípio da autonomia das universidades (CF, art. 207) não é irrestrito, mesmo porque não cuida de soberania ou independência, de forma que as universidades devem ser submetidas a diversas outras normas gerais previstas na Constituição”, conforme julgamento da Medida Cautelar na ADI 1599, relatada pelo Min. Maurício Correa.
Mais recentemente, no Recurso Extraordinário 566.365, o STF voltou a confirmar: “Autonomia administrativa da Universidade. Submissão à normas gerais da educação nacional. (…) As universidades gozam de autonomia administrativa, o que não as exime do dever de cumprir as normas gerais da educação nacional.”
Logo, percebe-se que a invocação de autonomia universitária não é, e não pode ser, uma carta branca para todo tipo de abuso. A universidade, embora didaticamente autônoma em relação ao governo eleito, permanece restrita pela Constituição e normas gerais da educação dispostas em lei. Assim, permanece vedado à universidade promover cursos que contrariem princípios como o respeito à pluralidade, o atendimento impessoal ao bem público, e a vedação ao uso de bens estatais para promoção de candidatos e partidos.
2º Fundamento: o curso não tem caráter científico-educacional, mas político-partidário. Assim, não atende ao interesse público da educação, mas aos fins privados de militância política de seus organizadores
Conforme declarado expressamente na reunião com o Ministério Público, o curso não tem por fim a expansão do conhecimento mediante o exercício da ciência e da educação. Ele foi, como confessaram seus organizadores, um ato político em resposta à atuação prévia do Ministério da Educação.
Ora, cursos não podem ser criados para fins de militância política.
Como bem salienta a petição inicial, citando o administrativista José dos Santos Carvalho Filho:
“para que haja verdadeira impessoalidade, deve a Administração voltar-se exclusivamente para o interesse público, e não para o privado, vedando-se, em consequência, sejam favorecidos alguns indivíduos em detrimento de outros e prejudicados alguns para favorecimento de outros. (…) o alvo a ser alcançado pela Administração é somente o interesse público, e não se alcança o interesse público se for perseguido o interesse particular, porquanto haverá nesse caso sempre uma atuação discriminatória.”
Diz – corretamente – a peça que “o princípio da impessoalidade exige que as atividades acadêmicas de uma universidade pública não sejam utilizadas como manifestação de interesses privados, de determinados grupos, alheios ao interesse público.”
No entanto, “a verdadeira ratio da instituição desse curso é o intuito de promover uma “resposta”, uma “reação política” às declarações do Ministro da Educação, o que foi expressamente afirmado pelos reitores da UFG a estes membros do Parquet. Tal fato demonstra claramente o desvio de finalidade dos atos administrativos da Universidade Federal de Goiás que criaram o curso de extensão”.
3º Fundamento: formato do curso em pleno ano eleitoral pode ocultar uso de bens públicos para propaganda de partidos e candidatos
Consta da petição: “Mais ainda, a oferta do curso sobre o ‘golpe de 2016’ com viés ideológico fortemente tendencioso, encampando a narrativa de determinados grupos político-partidários, em pleno ano eleitoral, pode ser interpretado como uma tentativa de influenciar a comunidade acadêmica a adotar o discurso e as pretensões eleitorais dessas determinadas forças políticas.”
“Tal constatação é muito grave. A universidade como instituição de ensino, pesquisa e promotora da cultura tem o dever de participar do debate a respeito dos temas mais graves que ocorrem à vida nacional. Todavia, essa participação deve visar contribuir para a reflexão e o desenvolvimento da cidadania e não ser um evento ideológico travestido de curso de extensão.”
4º Fundamento: o curso não respeita a pluralidade de ideias
O art. 206 da Constituição de 1988 é explícito ao determinar que “O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios: (…) III – pluralismo de idéias”.
Contudo, o órgão do Ministério Público Federal constatou que “os assuntos abordados no curso foram cuidadosamente selecionados para abordar temáticas de especial interesse de determinados agentes e forças políticas atuantes no país.”
A investigação do MPF constatou que o curso está todo montado para dar voz e vez apenas para o grupo específico que defende a ex-presidente, sem promover qualquer debate sério ou sequer expor uma bibliografia, “se é que realmente ele esteja embasado em referenciais capazes de subsidiar disciplinas ou atividades universitárias”, registra a peça.
“Isto não quer dizer que tais temas não pudessem ser abordados em um curso universitário de extensão, mas, que esses temas somente serão abordados, na UFG, sob o prisma monocular de um determinado espectro político-ideológico já previamente definido, sem contemplar a amplitude do debate e da reflexão necessários a qualquer atividade que se possa denominar acadêmica ou científica.”
Conclusão:
Logo, tendo em vista que a autonomia universitária não é absoluta, estando limitada pelos princípios igualmente constitucionais
i) da impessoalidade e da busca do interesse público da educação nas instituições estatais de ensino;
ii) da vedação ao uso de bens públicos para promoção de partidos e candidatos, ainda mais em ano eleitoral;
iii) do pluralismo de ideias;
A petição requer a suspensão do curso; a anulação dos atos de sua criação; a adequação de eventuais futuros cursos sobre a temática, adequando-se ao pluralismo e à liberdade de ensinar e aprender.
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