"Acho que em qualquer época eu teria amado a liberdade; mas na época em que vivemos, sinto-me propenso a idolatrá-la"
(Tocqueville)
Atos convocados pelas centrais sindicais contra as reformas são paralisações ilegais. Entenda por quê.
“(…) ninguém pode ser admitido a ser juiz na própria causa.”
Esse é um dos princípios basilares de um Estado de Direito, como bem pontua o jusfilósofo de Oxford Johnn Finnis1.
De fato, num sistema em que se admita que cada um possa julgar a própria pretensão, caso não se chegue a um consenso e não se aceite submeter a causa a uma instituição independente e imparcial, só haverá uma forma de dirimir o conflito: buscar impor a própria solução à outra parte.
Se ambas buscam esse caminho, nada mais haverá do que, ao final, a imposição do mais forte sobre o mais fraco.
O uso sistemático desse mecanismo gera o incentivo para que as partes busquem incrementar sua força bruta, a fim de poderem resistir ou se impor perante terceiros, numa escalada infinda de violência e brutalidade.
Por isso, a admissão do exercício arbitrário das próprias razões – ou seja, de que alguém sentindo-se lesado possa impor-se ao outro por contra própria, sem intervenção institucional – tem por resultado nada menos do que a barbárie. Essa prática é alheia a todos os países desenvolvidos, e seu constante uso por grupos extremistas em nações atrasadas é, sem dúvida, um dos fatores de seu subdesenvolvimento.
Por isso, os sistemas legais se baseiam na regra da heterotutela, isto é, no princípio segundo o qual, em caso de litígio e ausência de solução pacífica, o conflito deve ser levado a uma autoridade institucional, constituída por um terceiro estranho à causa, imparcial.
É bem verdade que existem exceções. Realmente, visto que há bens jurídicos extremamente importantes e que podem acabar sob risco de agressão grave a qualquer tempo, e os agentes do sistema jurídico não são onipresentes, admite-se excepcionalmente e desde que sob os requisitos dispostos em lei, que uma pessoa ou grupo ante perigo de lesão grave e imediata possa repelir a agressão por conta própria. São os casos de aututela legal.
São exemplos: a legítima defesa, em que a vítima de agressão injusta e iminente a repele utilizando-se dos meios necessários e proporcionais; o desforço imediato, em que pessoa deparando-se com invasor em seu imóvel pode imediatamente expulsá-lo; e a greve.
Greve como mecanismo legítimo de autotutela
A greve, por sua vez, também é um mecanismo de autotutela legalmente admitido.
Entretanto, para que um ato seja assim enquadrado deve respeitar os requisitos legais. Do contrário, sem atendimento aos ditames legais, a legítima defesa e o desforço tornam-se simples agressões penalmente puníveis; e a greve, mera paralisação ilícita.
É o caso dos atos que têm sido convocados por centrais sindicais contra as reformas.
Com efeito, um dos requisitos para que uma greve seja legal é que o objeto das demandas refiram-se à específica relação entre empregados e empregador.
Não se admite em nosso sistema greve para reclamar algo do governo ou em relação a tema alheio especificamente à relação de trabalho.
O Tribunal Superior do Trabalho já pacificou esse entendimento.
Para citar dois precedentes:
Num primeiro julgado recentemente proferido pelo TST (Recurso Ordinário n.º TST-RO-1393-27.2013.5.02.0000), constatou-se que “a mobilização levada a efeito pela categoria dos trabalhadores portuários teve como propósito abrir espaço à negociação do novo marco regulatório implantado pela Medida Provisória n.º 595, de 6 dezembro de 2012, que dispunha sobre a exploração direta e indireta, pela União, de portos e instalações portuárias e sobre as atividades desempenhadas pelos operadores portuários, entre outras providências (MP atualmente convertida na Lei n.º 12.815, de 5 de junho de 2013).”
Por isso, aquela Corte decidiu:
“Firme, nesta Seção, o entendimento segundo o qual a greve com nítido caráter político é abusiva, na medida em que o empregador, conquanto seja diretamente por ela afetado, não dispõe do poder de negociar e pacificar o conflito.”
Em sua fundamentação, o Tribunal fez menção a precedente mais antigo, que confirma e esmiúça a corretíssima lição:
GREVE. NATUREZA POLÍTICA. ABUSIVIDADE. A greve política não é um meio de ação direta da classe trabalhadora em benefício de seus interesses profissionais e, portanto, não está compreendida dentro do conceito de greve legal trabalhista. Entende-se por greve política, em sentido amplo, a dirigida contra os poderes públicos para conseguir determinadas reivindicações não suscetíveis de negociação coletiva. Correta, portanto, a decisão que declara a abusividade do movimento grevista com tal conotação, máxime quando inobservado o disposto na Lei 7.783/89. Recurso Ordinário conhecido e desprovido.” (RODC – 571212-31.1999.5.01.5555. Data de Julgamento: 31/8/2000, Relator: Juiz Convocado Márcio Ribeiro do Valle, Seção Especializada em Dissídios Coletivos, Data de Publicação: DJ 15/9/2000.)
Em outro julgado importante sobre o tema (Recurso Ordinário n° TST-RO-51534-84.2012.5.02.0000), o TST se debruçou sobre paralisação de empregados da PUC de São Paulo, em razão de o primeiro nome de lista tríplice não ter sido efetivamente apontado como reitor (a segunda colocada na lista foi indicada).
Arrematou o egrégio Tribunal na ementa do julgado:
RECURSO ORDINÁRIO. DISSÍDIO DE GREVE. NOMEAÇÃO PARA REITOR DA PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO – PUC. CANDIDATA MENOS VOTADA EM LISTA TRÍPLICE. OBSERVÂNCIA DO REGULAMENTO. PROTESTO COM MOTIVAÇÃO POLÍTICA. ABUSIVIDADE DA PARALISAÇÃO.
1. A Constituição da República de 1988, em seu art. 9º, assegura o direito de greve, competindo aos trabalhadores decidir sobre a oportunidade de exercê-lo e os interesses que devam por meio dele defender.
2. Todavia, embora o direito de greve não seja condicionado à previsão em lei, a própria Constituição (art. 114, § 1º) e a Lei nº 7.783/1989 (art. 3º) fixaram requisitos para o exercício do direito de greve (formais e materiais), sendo que a inobservância de tais requisitos constitui abuso do direito de greve (art. 14 da Lei nº 7.783).
3. Em um tal contexto, os interesses suscetíveis de serem defendidos por meio da greve dizem respeito a condições contratuais e ambientais de trabalho, ainda que já estipuladas, mas não cumpridas; em outras palavras, o objeto da greve está limitado a postulações capazes de serem atendidas por convenção ou acordo coletivo, laudo arbitral ou sentença normativa da Justiça do Trabalho, conforme lição do saudoso Ministro Arnaldo Süssekind, em conhecida obra.
4. Na hipótese vertente, os professores e os auxiliares administrativos da PUC se utilizaram da greve como meio de protesto pela não nomeação para o cargo de reitor do candidato que figurou no topo da lista tríplice, embora admitam que a escolha do candidato menos votado observou as normas regulamentares. Portanto, a greve não teve por objeto a criação de normas ou condições contratuais ou ambientais de trabalho, mas se tratou de movimento de protesto, com caráter político, extrapolando o âmbito laboral e denotando a abusividade material da paralisação.
Conclusão
Em vista dessas lições, patente que as paralisações convocadas pelas centrais sindicais – uma vez que voltadas para combater reformas legislativas – são ilícitas.
É bem verdade que até o momento os atos têm contado com baixa adesão. De todo modo, conseguindo cooptar grupos específicos, como profissionais de transporte, têm gerado enorme transtorno, especialmente para pessoas mais carentes que dependem do sistema público. Os atos também foram marcados por vandalismo, violência e dilapidação do patrimônio público.
Por fim, importante registrar que agrava ainda a situação o fato de que o Brasil conta com um dos piores sistemas sindicais do mundo. Particularmente em razão da contribuição sindical que subtraía cerca de 4 bilhões por ano do trabalhador, sem que serviços de qualidade proporcional lhe fossem dados em troca. A verba no entanto mantinha sindicatos de fachada e com péssimos serviços, quando não envolvidos em corrupção. Ademais, as centrais sindicais têm baixo nível de representatividade no país, o que se revela pelo diminuto quantitativo de trabalhadores sindicalizados.
Aos sindicalistas e seus apoiadores ficam franqueados os mesmos meios que possuem todos os demais cidadãos: a tentativa de formar consensos na sociedade por meio de razões – não de violência, intimidação ou ameaça – e a articulação junto aos representantes do povo nos poderes constituídos.
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1Natural Law and Natural Rights. 2 ed., Oxford, Oxford University Press, 2011, p. 288.
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