"Acho que em qualquer época eu teria amado a liberdade; mas na época em que vivemos, sinto-me propenso a idolatrá-la"
(Tocqueville)

PEC da Prisão em Segunda Instância não colide com cláusula pétrea

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No último dia 7 de novembro, o STF, por apertada maioria de 6 votos a 5, julgou ilegal a prisão em segunda instância por força do art. 283 do Código de Processo Penal, segundo o qual “ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado ou, no curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva.” A maioria dos membros da Corte entendeu que o dispositivo é constitucional e constitui um óbice à prisão em segunda instância.

Ao contrário do propagado em algumas matérias, parcela majoritária do plenário do STF não decidiu que a prisão em segunda instância seja inconstitucional. O STF decidiu que, por ora, enquanto vigorar o art. 283 do Código de Processo Penal, ela seria ilegal. Logo, não é o art. 5º, LVII, da Constituição que impede a execução provisória da pena após o esgotamento das instâncias ordinárias. É apenas o dispositivo mencionado do CPP, materializado em lei ordinária e, portanto, norma infraconstitucional.

Por isso, bastaria uma outra lei ordinária alterando aquele dispositivo, para reverter o julgado; aliás, como esclareceu o Presidente da Corte, Dias Toffoli, a jornalistas. Frise-se que, somando seu entendimento ao dos demais cincos ministros que votaram que o art. 283 não veda a prisão em segunda instância, tem-se já maioria no Supremo Tribunal Federal em favor da autonomia do Parlamento para autorizar essa modalidade de prisão por mera alteração legislativa, sem necessidade de uma emenda constitucional.

De nossa parte, já escrevemos artigos:

1) explicando por que a Constituiçãode fato, autoriza a prisão em segunda instância; e,

2) defendendo que o art. 283 do CPP deveria ser interpretado de modo a não impedir a execução provisória da pena após esgotamento das instâncias ordinárias, tal qual votaram os cinco ministros vencidos (em nossa opinião, foram os votos mais bem fundamentados).

De um modo ou de outro, o objeto do presente artigo é outroNosso objetivo com o presente texto é demonstrar que mesmo que nossa Constituição vedasse o cumprimento da pena após a condenação em segunda instância (coisa que – repise-se – ela não faz), não haveria ofensa a cláusula pétrea em se alterar tal previsão para admitir essa modalidade de prisão. Ou seja, ainda que existisse um dispositivo que dispusesse: “é vedada a imposição de pena antes do trânsito em julgado” (o que não existe), sua alteração para permitir a execução provisória da pena após o esgotamento das instâncias ordinárias não esbarraria em cláusula pétrea.

A relevância do tema

Essa questão tem vindo à tona em virtude da tramitação da PEC 410/2018, a qual visa reformar o inciso LVII da Constituição, para estabelecer a seguinte redação: “ninguém será considerado culpado até a confirmação de sentença penal condenatória em grau de recurso.”

Como atualmente o inciso prevê que ninguém será considerado culpado “até o trânsito em julgado”, é patente que haverá uma alteração do regime constitucional da culpa.

Ocorre que essa matéria vem tratada no art. 5º da Constituição, o qual figura como o coração dos direitos fundamentais na Carta de 1988.

Somando-se a isso que o o art. 60, § 4, IV, da CRFB/88, prevê entre o rol de cláusulas pétreas “os direitos e garantias individuais”, alguns – de modo apressado e equivocado – passaram a arguir uma inconstitucionalidade da proposta.

Vejamos se essa tese procede.

Primeiro de tudo: o que é uma “cláusula pétrea”?

Cláusula pétrea é uma norma constitucional que não pode ser alterada mediante emenda constitucional.

Ela faz parte, de certo modo, da própria “identidade” da Constituição. Assim, sua alteração provocaria uma desconfiguração da estrutura do documento, não sendo admitida.

Isso não quer dizer que elas impliquem em imutabilidade incontornável. Elas poderiam ser alteradas mediante convocação de uma nova constituinte e, consequente, promulgação de uma nova Constituição.

O que está protegido como “cláusula pétrea” na Constituição de 1988?

O rol de cláusulas pétreas na Constituição de 1988, vem previsto nos incisos do § 4º do art. 60:

§ 4º Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir:

I – a forma federativa de Estado;

II – o voto direto, secreto, universal e periódico;

III – a separação dos Poderes;

IV – os direitos e garantias individuais.

O grande equívoco aqui – o qual erroneamente fundamenta a arguição de inconstitucionalidade da PEC 410/2018 – é achar que a Constituição obstou qualquer mudança no regime da federação, do voto, da separação de poderes ou dos direitos fundamentais. Em absoluto.

Preste atenção na redação do § 4º: ela veda que uma proposta de emenda constitucional (PEC) delibere sobre objeto tendente a abolir a federação, o voto (direto, secreto, universal e periódico), a separação de poderes ou algum dos direitos ou garantias individuais.

Todavia, qualquer alteração que não seja tendente a abolir é perfeitamente admissível. Um direito fundamental pode ser, inclusive, reduzido, desde que essa redução não seja tendente a abolir o respectivo direito.

Ora, mas o que seria uma modificação tendente a abolir? Primeiramente, pode-se dizer que se basta que ela seja “tendente a”, não é necessário que ela simplesmente promova a extinção do direito, para que seja inconstitucional. Porém, em segundo lugar, não é qualquer alteração que pode ser enquadrada como “tendente a abolir”.

O que a correta tradição constitucional no Brasil afirma é que o sistema de cláusulas pétreas, apesar de permitir mudanças na redação e no conteúdo dos institutos e direitos tratados no § 4º do art. 60, impede mudanças que atinjam o chamado núcleo essencial dos princípios protegidos.

Nesse sentido, cirúrgica a lição do constitucionalista Paulo Gustavo Gonet Branco:

“A cláusula pétrea não tem por meta preservar a redação de uma norma constitucional – ostenta, antes, o significado mais profundo de obviar a ruptura com princípios essenciais da Constituição. Esses princípios, essas estruturas é que se acham ao abrigo de esvaziamento por ação do poder reformador. Nesse sentido, Jorge Miranda lembra que a cláusula pétrea não tem por escopo proteger dispositivos constitucionais, mas os princípios neles modelados” (Curso de Direito Constitucional, 2017, p. 122).

Essa lição, inclusive, já foi absorvida pela própria jurisprudência do STF. Confira o seguinte precedente:

(…) as limitações materiais ao poder constituinte de reforma, que o art. 60, § 4º, da Lei Fundamental enumera, não significam a intangibilidade literal da respectiva disciplina na Constituição originária, mas apenas a proteção do núcleo essencial dos princípios e institutos cuja preservação nelas se protege. (ADI 2024 MC, Relator(a):  Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, Tribunal Pleno)

Idêntico conteúdo foi afirmado pelo relator no julgamento da medida cautelar do Mandado de Segurança 23.047.

Ainda, no Informativo 721 do STF, relativo ao julgamento do Mandado de Segurança 32.262, constaram as seguintes lições:

Por se tratar de limitações ao poder de deliberação das maiorias – elemento inerente à democracia –, as cláusulas pétreas devem ser interpretadas com comedimento. Nessa linha, não se proíbe toda e qualquer alteração no enunciado textual ou no regime constitucional de um direito fundamental, mas apenas a deliberação de propostas tendentes a aboli-lo – i.e., daquelas que, uma vez aprovadas, atingiriam seu núcleo essencial, esvaziando ou minimizando em excesso a proteção conferida pelo direito. É preciso encontrar, no particular, o ponto de equilíbrio que preserve o núcleo de identidade da Constituição sem promover o engessamento da deliberação democrática por parte do Congresso Nacional.

No caso concreto, a PEC 410/2018 ofende “cláusula pétrea”?

Das lições acima se depreende que o regime dos direitos fundamentais não é intangível. A Constituição admite alterações e, inclusive, restrições, desde que não cheguem a violar o núcleo essencial do princípio jurídico protegido, tendendo a abolir o direito insculpido como cláusula pétrea no § 4º do art. 60 da Carta de 1988.

Então, em abstrato, podemos concluir que uma emenda à Constituição poderia alterar e, inclusive, reduzir um direito fundamental.

Mas: e no caso concreto da PEC 410/2018? Ela ofende ou não cláusula pétrea?

Nesse caso, o princípio constitucional objeto da emenda é o da presunção de inocência.

Logo, para saber se a PEC é ou não constitucional, é necessário verificar se faz parte do núcleo essencial da presunção de inocência a sua manutenção até o trânsito em julgado. Ou seja, a fixação do termo final da presunção de inocência antes do trânsito em julgado chegaria a esvaziar esse princípio, ferindo seu núcleo essencial?

Para responder essa questão, basta verificar que várias democracias consolidadas, as quais observam os mais elevados standards de proteção aos direitos humanos, dispõem que a presunção de inocência cessa após o duplo grau de jurisdição (ou mesmo após simples comprovação da culpa em primeiro grau). De fato, consoante nota pública do Fórum de Juízes Criminais, com a recente e lamentável decisão do STF ao vedar a prisão sem segundo instância, o Brasil passou a ser o único país de todos os Estados-membros das Nações Unidas (ONU) a não permitir a prisão após condenação em primeira ou segunda instância.

Do mesmo modo, os tratados internacionais de direitos humanos não exigem o trânsito em julgado para superação da presunção de inocência. Com efeito, o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos exige apenas a comprovação legal da culpa, o que pode ocorrer inclusive mediante sentença de primeiro grau (art. 14, 2). Em igual sentido o art. 11, 1, da Declaração Universal de Direitos Humanos, bem como o art. 8º, 2, da Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica).

Por conseguinte, a não ser que se julgue que todas as nações desenvolvidas e os pactos internacionais estão em situação de inadimplência perante os direitos humanos, e que seus patamares de garantias atuais violam o núcleo essencial da presunção de inocência, há que se concluir que a Constituição brasileira concretizou esse princípio para muito além de seu núcleo essencial (possivelmente, inclusive, de modo desproporcional).

Assim, o dispositivo pode sofrer reforma, alinhando-o às melhores práticas internacionais e ao tratados de direitos humanos de que o Brasil é parte, sem que com isso se viole o núcleo essencial de tal princípio.

Assim, tendo em vista que:

a) o regime dos direitos fundamentais em nossa Constituição não é imutável;

b) que a intangibilidade das cláusulas pétreas impede apenas reformas tendentes a abolir os princípios protegidos, atingindo seu núcleo essencial;

c) que não faz parte do núcleo essencial da presunção de inocência sua manutenção até o trânsito em julgado, visto que essa prática não é adotada pelos tratados internacionais de direitos humanos e pelas nações de democracia consolidada, sendo inerente a esse princípio a condição de inocência apenas até comprovação legal da culpa em processo judicial; e

d) que a PEC 410/2018 respeita esse núcleo de intangibilidade:

Conclui-se que referida proposta de emenda constitucional não viola cláusula pétrea.

Por fim, frise-se que a amplitude das cláusulas pétreas deve ser julgada com parcimônia e deferência à democracia, pois fechadas para o povo as portas das reformas, só lhe restará a via da revolução.

A finalidade das cláusulas pétreas é apenas manter o núcleo de identidade da Constituição, não eternizar decisões pontuais. Elas não pode implicar um “governo dos mortos sobre os vivos” como alertavam Thomas Jefferson e Thomas Paine, impondo-se à geração atual como imutáveis aspectos pontuais inseridos na Constituição pela geração de 1988.

Deve-se respeitar o preceito consignado no art. 28 da Declaração Dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1793:

Um povo tem sempre o direito de rever, de reformar e de mudar a sua constituição: – Uma geração não pode sujeitar às suas leis as gerações futuras.

De fato, caso as instituições brasileiras optassem por impor como imutável um regime jurídico desproporcional e incapaz de assegurar mecanismos eficientes para o combate à corrupção e à criminalidade de modo geral, e assim de salvaguardar os direitos humanos das vítimas, passaria a figurar como única alternativa o solapamento da ordem atual, com a inauguração de um novo marco jurídico-constitucional, mediante deflagração de nova constituinte.

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