"Acho que em qualquer época eu teria amado a liberdade; mas na época em que vivemos, sinto-me propenso a idolatrá-la"
(Tocqueville)
Qual a política prisional correta para homens biológicos que se autoidentificam como mulheres?
Tatiana Almeida de Andrade Dornelles, atualmente, é procuradora da República (membro do Ministério Público Federal) no Rio Grande do Sul, e já foi promotora de Justiça do Distrito Federal. Natural de Salvador, a baiana é formada em Direito pela UFBA, tendo feito sua especialização em Segurança Pública e Justiça Criminal na PUC/RS; e o mestrado em Barcelona, Espanha, em Criminologia e Execução Penal pela Universitat Pompeu Fabra.
Ela tem dedicado os últimos meses de suas pesquisas sobre o tema da “invisibilidade social da mulher presa”, a partir do que tem criticado a colocação de homens biológicos em presídios femininos, sem que se leve em consideração os impactos de tais medidas para as mulheres encarceradas. Fruto de sua dissertação de mestrado sobre o assunto, ela agora tem no prélio sua primeira obra a ser publicada em breve, com o título: “Transmulheres nos presídios femininos: o debate omitido sobre a mulher presa”.
Tatiana Dornelles nos concedeu a honra de uma breve entrevista, em que adiantou alguns resultados de seus estudos.
1) A senhora falou em artigo recente para a imprensa brasileira sobre o que chama de “invisibilidade social da mulher presa”. Poderia nos dizer do que se trata?
A invisibilidade social da mulher presa é atestada por diversos pesquisadores na área da chamada criminologia feminista. As mulheres são minoria no sistema prisional, cerca de 5% do total de presos somente. E, mesmo proporcionalmente, elas geram menos “problemas” ao gestor. É uma minoria silenciosa e pouco organizada, ao contrário da população carcerária masculina. Como consequência, há menos publicações sobre o encarceramento feminino e há menos interesse em geral. É comum as mulheres ficarem com as ‘sobras” masculinas, aceitando as adaptações das políticas penitenciárias pensadas para os homens, inclusive sendo alojadas em adaptações de antigos presídios masculinos ou em “puxadinhos” dos atuais. E neste tema sobre transgêneros, a invisibilidade é ainda mais manifesta. Políticas públicas estão sendo elaboradas e decisões estão sendo tomadas não levando as mulheres presas em consideração.
2) Quando e por que começou a pesquisar sobre esse tema? Poderia adiantar alguns resultados de suas pesquisas acerca desse assunto?
A temática carcerária me interessa desde o começo da faculdade. Estagiei por mais de um ano na Penitenciária Lemos de Brito, em Salvador, por intermédio do Patronato de Presos e Egressos da Bahia. Posteriormente, como Procuradora da República, integrei no Amazonas o Conselho Penitenciário por mais de três anos, fazendo visitas constantes a presídios e carceragens de delegacias. Integrei no MPF o Grupo de Trabalho de Execução Penal, composto por colegas brilhantes e com bastante atuação na área.
Mas o fato é que a questão feminina só passou realmente a ser meu foco no final de 2016. À época, assumi a relatoria especial de gênero e sistema prisional na 7ª Câmara de Coordenação e Revisão da Procuradoria-Geral da República, sob a gestão do Dr. Mário Bonsaglia. Li livros e muitos artigos científicos sobre criminalidade feminina e a vida da mulher na prisão. Consolidei pelos estudos algo que eu já havia percebido em mais de três anos de visitas a presídios e carceragens como conselheira penitenciária: a mulher vivencia o crime e a vida na prisão de maneira diferente dos homens. No meu livro, há um capítulo sobre isto, em que recolho informações sobre gênero e crime de vários países.
O estudo de gênero e prisão permitiu conhecer as variadas dimensões do drama carcerário feminino. E um dos aspectos do tema é justamente a condição das transmulheres. Transmulheres são homens biológicos a quem o chamado transativismo demanda um tratamento como se mulheres fossem, para qualquer fim. Por esta razão, deveriam ser consideradas nas políticas públicas femininas. A literatura das ciências sociais à qual tive acesso à época sustentava esta posição. A conclusão era de que as transmulheres deveriam ser alojadas junto às outras mulheres nas prisões. Inicialmente, esta também me pareceu a solução correta.
De fato, no início defendi que transmulheres devessem ser transferidas para os presídios femininos. E isto é curioso. Hoje recebo acusações de intolerância, de transfobia, de fascismo, e até de “anticiência”. Isto tudo porque questionei a mim mesma sobre a validade de um determinado ponto de vista. Mas fazer ciência é justamente isto, é questionar as hipóteses. Se sua hipótese não pode ser falseada, você não está fazendo ciência, você está sustentando dogmas. E aí caímos no campo da crença.
Esse tipo de mudança de posicionamento pode acontecer de várias formas. Comigo, foi por acaso. Em uma conversa informal com um promotor da execução, a quem expus minha posição de então sobre o tema, ouvi o relato de um episódio importante. Em Porto Alegre, a administração penitenciária tentou alocar uma transmulher no presídio feminino local, mas mulheres que ali estavam presas não aceitaram. Pela primeira vez, tomei consciência de que eu havia aderido àquela posição sem me preocupar com a opinião das mulheres que receberiam um homem biológico em seu ambiente carcerário. Logo eu, feminista e relatora especial de gênero e cárcere!
Apesar do impacto inicial, eu ainda não havia decidido estudar especificamente o problema da transgeneridade na prisão. Isto ocorreu quando decidi o tema de minha dissertação no mestrado na Espanha. Escolhi o programa de criminologia e execução penal tendo em mente que gostaria de me aprofundar no tema das mulheres encarceradas e contribuir para melhorar o quadro de invisibilidade destas pessoas. Na primeira entrevista com o coordenador do curso, levei uma lista de temas que me interessavam, como maternidade no cárcere, crescimento da população penitenciária feminina, relações familiares no cárcere, entre outros.
Houve uma boa receptividade a todos os temas, exceto um: “transgêneros no cárcere e possíveis riscos às mulheres”. Segundo o coordenador, o tema não era interessante. Na realidade, constatei algo pior: o tema causava incômodo no ambiente acadêmico em geral, que já possui um posicionamento fechado sobre o assunto. Qualquer tentativa de investigação ou argumentação que pudesse contradizer esta posição era repelida com todo tipo de desincentivo, direto ou indireto, incluindo reflexos negativos na atribuição de notas e chamadas públicas criticando a “insensibilidade” ao drama deste movimento social.
Este ambiente hostil a quem investiga o tema sob uma ótica diversa é, ao final, um dos primeiros resultados de meu trabalho. A constatação de que praticamente não há literatura acadêmica que faça contraponto ao entendimento de que a concepção subjetiva de gênero de cada um deve guiar as políticas públicas, inclusive deve ser determinante para alocação da pessoa na prisão. No final das contas, as potenciais consequências negativas seriam sentidas pelas mulheres – mais uma vez não ouvidas, sequer consideradas.
Não tive dúvidas. Consolidei a minha escolha deste tema. Iniciei a pesquisa do zero. Não tive orientação ou um material base para começar. Fiz o que imagino qualquer estudante interessado faria: busquei tudo o que havia disponível fisicamente na biblioteca ou virtualmente nos repositórios de busca. Fiz uma revisão literária sobre transgêneros na prisão e sobre mulheres presas. Há muita literatura sobre os dois temas, separadamente. Mas pouca correlacionando mulheres presas e transmulheres. Principalmente, não há quase nada que questione quais são as repercussões sobre as mulheres presas na aceitação de transmulheres em seu ambiente carcerário.
Não questiono que os transgêneros, e todos aqueles considerados como minoria sexual, são uma população vulnerável na prisão. O que eu sustento no livro é que a proteção de um grupo não pode comprometer os direitos de um outro grupo vulnerável, que são as mulheres. Existe uma origem histórica na criação dos espaços exclusivos femininos, como prisões exclusivas de mulheres, que está sendo ignorada. É o histórico de vitimização da mulher pelo homem. E o que mostro no livro é que a mulher ainda é vulnerável ao homem biológico, independentemente do gênero com o qual esta pessoa subjetivamente se identifica. Para mostrar isto, entre outros aspectos, apresento dados estatísticos de padrão de criminalidade que comprovam que, objetivamente, a mulher é diferente do homem. Conjugo este ponto com dados de investigações quantitativas e qualitativas que mostram que a transmulher ainda apresenta padrões de comportamento que são mais parecidos com o masculino.
É importante que as pessoas entendam que eu não estou julgando um indivíduo nem estou dizendo que todas as transmulheres apresentam um perigo para as mulheres. O fato de haver políticas protetivas especiais para as mulheres, como a Lei Maria da Penha, não significa que o ordenamento jurídico rotulou todos os homens como agressores. Mas, nas políticas públicas, são realizadas análises de riscos. Considerando vários fatores conjugados, eu entendo que as mulheres devem permanecer com o direito de ter espaços exclusivos somente para elas. Não importa o gênero subjetivo que cada um adote. Um transhomem, que é uma mulher biológica, igualmente deve estar alojada apenas em presídios femininos.
E mais uma vez, isto não impede que outras soluções sejam construídas para as transmulheres, visando sua segurança e bem-estar.
3) A senhora tem sido crítica de alguns pontos da Resolução 1/2014 do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária e do objeto da ADPF 527. Poderia nos dizer do que tratam essas normas e qual o seu defeito?
Eu considero a Resolução 1/2014 um excelente documento, que deve ser efetivamente aplicado. É um grande avanço à causa LGBTT+. A resolução garante o direito ao tratamento pelo nome social, a manutenção dos cabelos compridos e roupas segundo a identidade subjetiva de gênero, o direito a visita íntima, a manutenção de tratamento hormonal ou de transição. Ela também protege a população LGBT de transferências compulsórias entre celas e alas, e assegura a igualdade de condições quanto ao recebimento de auxílio-reclusão aos dependentes do recluso.
A minha crítica é ao artigo 4º, que determina que as transexuais femininas (homens biológicos) sejam encaminhadas aos presídios femininos. Então eu questiono. Que transexuais? As que já fizeram a redesignação sexual ou as que possuem pênis também? Exige-se alguma prova de que a pessoa esteja em tratamento hormonal ou não? Precisa provar que a pessoa vive como mulher há algum tempo ou também inclui pessoas de gênero fluido, que decidiram que eram mulheres minutos antes de serem presas? Qualquer transexual pode ir, inclusive a que está presa por delitos sexuais praticados contra mulheres? E se esta transexual atacar uma mulher, ela voltaria ao presídio masculino? Veja que são questões básicas que deveriam ser bem debatidas antes da publicação de uma determinação genérica como esta.
Neste ambiente de insegurança, foi ajuizada a ADPF 527 que, entre outras coisas, pede que travestis possam escolher se querem ou não ir a um presídio feminino. Certamente não perguntaram às mulheres presas suas opiniões. A Resolução 1/2014 já oferecia uma boa solução, que seria a criação de espaços de vivências diferenciados, de acesso voluntário, onde travestis e homens gays poderiam ter um espaço de proteção dentro dos presídios masculinos.
4) A senhora é especialista em segurança pública. Saindo, agora, do tema específico das mulheres presas, como a senhora avalia as medidas de soltura de presos adotadas em razão da pandemia do coronavírus?
Tenho uma posição contrária, no geral. Excepcionalmente seria possível a concessão de prisão domiciliar em casos específicos, fundamentada na pandemia. Na subseção em que atuo, tivemos um caso de um senhor de 74 anos, debilitado, que não oferecia riscos concretos e que postulava prisão domiciliar. Pelas circunstâncias concretas do caso, a medida foi autorizada com parecer favorável do MPF. Sob a ótica da segurança pública, medidas gerais de desencarceramento a qualquer custo são potencial fonte de caos social e de mais violência e insegurança. E estas são sentidas especialmente pela população mais humilde, que não pode contar com recursos próprios para fazer sua segurança privada.
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