"Acho que em qualquer época eu teria amado a liberdade; mas na época em que vivemos, sinto-me propenso a idolatrá-la"
(Tocqueville)
Entenda a portaria do Ministério da Justiça sobre deportação sumária de pessoas perigosas
O Ministério da Justiça, no dia 25 de julho deste ano, publicou portaria que regulamentou três institutos essenciais para a segurança pública no Brasil, e para que ao contrário do que ocorreu em passado recente, o país não figure como um destino preferencial de criminosos perigosos, em virtude da triste leniência que imperava em relação a tais pessoas.
Quais institutos foram regulamentados e para que eles servem?
Os três institutos regulados foram:
a) o impedimento de ingresso no Brasil de pessoa considerada perigosa por ter praticado ato contrário aos princípios e objetivos dispostos na Constituição Federal;
b) a repatriação imediata da pessoa impedida de aqui ingressar pela razão acima;
c) a deportação sumária da pessoa perigosa que já ingressou em território nacional.
O impedimento de ingresso está previsto no art. 45 da Nova Lei de Migração. Ele cuida das hipóteses em que uma pessoa ao chegar na aduana brasileira é impedida de ingressar no país no algum motivo previsto em lei, como já ter sido expulsa ou não apresentar documento válido.
Uma das hipóteses que autoriza o impedimento de ingresso está no inciso IX do art. 45 da Lei de Migração, dispondo que “poderá ser impedida de ingressar no País, após entrevista individual e mediante ato fundamentado, a pessoa: (…) que tenha praticado ato contrário aos princípios e objetivos dispostos na Constituição Federal.“
Agora fica a pergunta: o que seria praticar ato contrário aos princípios e objetivos da Constituição? Como se pode notar, o dispositivo prevê um conceito jurídico indeterminado, e por isso carente de regulação. Regular essa previsão foi exatamente o que a portaria fez, ao especificar o que a autoridade migratória deve entender como enquadrado na hipótese, e que explicaremos no próximo tópico.
Outra dúvida que surge nesses casos é: o que fazer com quem foi impedido de entrar? É para isso que serve o segundo instituto. A repatriação, que está descrita no art. 49 da Lei de Migração como a “medida administrativa de devolução de pessoa em situação de impedimento ao país de procedência ou de nacionalidade“.
Ou seja, caso uma pessoa seja impedida de ingressar no Brasil (na hipótese tratada na portaria, por ser considerada perigosa), ela será imediatamente devolvida ao país do qual partiu ou de sua nacionalidade.
Por fim: e se a pessoa já havia ingressado no Brasil quando se descobriu que ela não preenchia os requisitos para ingressar ou por algum motivo posterior ao seu ingresso ela deixou de atender às exigências legais para permanecer? Em suma: o que se faz com quem já está no território nacional, porém em situação migratória irregular? É para isso que serve o instituto da deportação, definida no art. 50 da Lei de Migração como “retirada compulsória de pessoa que se encontre em situação migratória irregular em território nacional“.
Esse último instituto, o da deportação, ocorre ao final de um procedimento administrativo, em que se preserva a ampla defesa e o contraditório. Tal procedimento possui uma demora natural. Por isso, para casos de pessoas perigosas, o que implica na urgência de retirá-la do território brasileiro, a lei autoriza que o procedimento seja sumário, ou seja, com prazos mais exíguos (§ 6º do art. 50 da Lei de Migração). Esse procedimento sumário de deportação foi regulado pela nova portaria do Ministério da Justiça.
A quem esses institutos se aplicam, segundo a portaria do Ministério da Justiça?
Todos os institutos mencionados têm por alvo estrangeiros legalmente qualificados como “pessoas perigosas” ou que tenham “praticado ato contrário aos princípios e objetivos dispostos na Constituição Federal”, assim compreendidos, segundo os incisos do art. 2º da Portaria, aqueles suspeitos de envolvimento em:
i) terrorismo;
ii) grupo criminoso organizado ou associação criminosa armada ou que tenha armas à disposição;
iii) tráfico de drogas, tráfico de pessoas ou tráfico armas de fogo;
iv) pornografia ou exploração sexual infantojuvenil.
Durante a realização de evento esportivo que possa ser colocado em risco, aqueles institutos também se aplicam a membros de torcida com histórico de violência em estádios.
No caso de estrangeiros em alguma dessas situações, ele é enquadrado legalmente como pessoa perigosa e fica impedido de gozar dos benefícios de requerentes de status de refugiado, consoante previsão legal do art. 7º, § 2º, do Estatuto dos Refugiados (Lei 9.474/97).
Saliente-se, portanto, que a categoria da pessoa perigosa não foi criada pela portaria, mas apenas regulamentada por ela. A categoria, em si, foi criada pelo mencionado dispositivo do Estatuto dos Refugiados, que ao tratar do pedido de refúgio assevera que “o benefício previsto (…) não poderá ser invocado por refugiado considerado perigoso para a segurança do Brasil“.
Segundo a portaria em análise, a suspeita de envolvimento nas práticas criminosas acima descritas será analisada pela autoridade migratória (hoje o Departamento de Polícia Federal), com base em:
I) difusão ou informação oficial em ação de cooperação internacional, por exemplo, difusões relatando envolvimento em crime pela INTERPOL;
II) lista de restrições exaradas por ordem judicial ou por compromisso assumido pela República Federativa do Brasil perante organismo internacional ou Estado estrangeiro, alcançando por exemplo pessoas constantes de “listas negras” do terrorismo de organismos internacionais ou países perante os quais o Brasil tenha se comprometido via tratado;
III) informação de inteligência proveniente de autoridade brasileira ou estrangeira (informações de inteligência são dados obtidos por órgãos dessa natureza, como a ABIN no Brasil, em geral mantidos em sigilo e que norteiam a tomada de decisões de autoridades públicas);
IV) investigação criminal em curso, ou seja, mediante elementos constantes em um inquérito aqui ou no estrangeiro, dando conta do envolvimento da pessoa com tais atividades; e,
V) sentença penal condenatória: isto é, a pessoa foi condenada, no Brasil ou no exterior, por alguma daquelas práticas.
Percebe-se, assim, que as fontes exigidas são restritas e exigentes, figurando entre elas apenas dados oficiais de autoridades reconhecidas.
Caso as informações que motivem a imposição das medidas estejam ainda sob sigilo (por exemplo, por constarem de investigação sigilosa ainda em curso), a publicidade dos motivos da decisão da autoridade migratória ficará sujeita às restrições da Lei de Acesso à Informação, caso isso seja necessário para preservar investigações criminais nacionais ou estrangeiras ou à preservação de informações sigilosas providenciadas por autoridade estrangeira.
A portaria deixa claro que “ninguém será impedido de ingressar no País, repatriado ou deportado sumariamente por motivo de raça, religião, nacionalidade, pertinência a grupo social ou opinião política”, bem como que “não será impedido o ingresso no País ou não será submetida à repatriação ou à deportação sumária a pessoa perseguida no exterior por crime puramente político ou de opinião”.
Do procedimento sumário de deportação
No caso do impedimento de ingresso e da repatriação, sua execução é relativamente simples, dispensando uma regulamentação mais detalhada do respectivo procedimento.
O mesmo não ocorre em relação à deportação. Nesse caso, a lei impõe um procedimento com possibilidade de defesa e contraditório previamente à efetivação da medida, sendo sua efetiva execução uma consequência da decisão exarada no bojo do processo administrativo.
O procedimento ordinário de deportação, previsto nos parágrafos do art. 50 da Lei de Migração, inicia-se com a notificação do estrangeiro, com indicação das irregularidades verificadas e concessão de um prazo não inferior a 60 (sessenta) dias, podendo ser prorrogado, por igual período, por despacho fundamentado e mediante compromisso de a pessoa manter atualizadas suas informações domiciliares. Esse prazo serve para que a pessoa possa regularizar sua condição. Durante esse prazo, ainda é possibilitado à parte, em procedimento que respeite o contraditório e a ampla defesa, manifestar-se e recorrer. Vencido o prazo sem regularização, passa a ser possível que se efetive a deportação.
Como já mencionado, no caso de pessoa que “que tenha praticado ato contrário aos princípios e objetivos dispostos na Constituição Federal“, a Lei de Migração, no § 6º do art. 50, permite que aquele prazo de 60 (sessenta) dias seja reduzido.
Esse procedimento sumário de deportação é que foi o objeto de regulamentação pela portaria do Ministério da Justiça. E como ficou esse procedimento?
A portaria diz que, caso a pessoa que já tenha ingressado no Brasil se enquadre como suspeita em algum daqueles delitos, seu prazo de permanência poderá ser reduzido ou cancelado. Em caso de cancelamento, ela será submetida à deportação sumária.
No caso de deportação sumária, a pessoa “será pessoalmente notificada para que apresente defesa ou deixe o País voluntariamente, no prazo de até quarenta e oito horas, contado da notificação”.
Na hipótese de a pessoa não ter condições de arcar com os custos de um advogado, a Defensoria Pública poderá defendê-la.
Havendo decisão que conclua pela deportação, “caberá recurso, com efeito suspensivo, no prazo de até vinte e quatro horas, contado da notificação do deportando ou de seu defensor”.
É perceptível, assim, que o procedimento descrito respeita o direito de defesa e contraditório, além de prever a possibilidade de recurso dotado de efeito suspensivo.
Apesar de exíguos, os prazos se justificam em vista da singular gravidade dos delitos em questão. De fato, existe um relevante interesse de afastar, com urgência, do território nacional pessoas sob as quais pairam fundadas suspeitas de envolvimento com terrorismo; organização criminosa armada; tráfico de drogas, pessoas ou armas; e pornografia ou exploração sexual infantil.
Ademais, consoante parecer jurídico da Associação de Juristas ANAJURE, os prazos previstos na portaria estão em linha com a prática de países como Chile, Argentina, Canadá, Espanha ou Estados Unidos.
Veja a seguinte tabela extraída daquele parecer:
Conclusão:
Tendo em vista que a portaria limita-se a regular hipóteses previstas legalmente, aplicando-se apenas a delitos de excepcional gravidade, de modo proporcional e com observância dos direitos fundamentais envolvidos (particularmente, segurança pública e proteção de possíveis vítimas dos delitos que ensejam aplicação dos institutos, além do contraditório e ampla defesa), estando ainda em linha com a prática internacional de outras nações, é possível concluir que a portaria é absolutamente válida e legítima.
Não só. Ela representa um enorme e excepcional avanço em matéria de segurança pública e combate aos delitos gravíssimos que ensejam sua aplicação.
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