"Acho que em qualquer época eu teria amado a liberdade; mas na época em que vivemos, sinto-me propenso a idolatrá-la"
(Tocqueville)
“Promotor de Defesa” proposto pelo senador Anastasia é muito pior do que parece
O Senador Antônio Anastasia, de Minas Gerais, propôs o Projeto de Lei do Senado (PLS) 5.282/19, o qual altera o art. 156 do Código de Processo Penal, instituindo dois parágrafos com a seguinte redação:
“§1º Cabe ao Ministério Público, a fim de estabelecer a verdade dos fatos, alargar o inquérito ou procedimento investigativo a todos os fatos e provas pertinentes para a determinação da responsabilidade criminal, em conformidade com este Código e a Constituição Federal, e, para esse efeito, investigar, de igual modo, na busca da verdade processual, as circunstâncias que interessam quer à acusação, quer à defesa.
§2º O descumprimento do § 1º implica a nulidade absoluta do processo.”
A Gazeta do Povo publicou nos últimos dias uma matéria sobre o projeto de lei, cujo título possui a seguinte redação: “Projeto obriga MP a revelar provas benéficas a réus“. A descrição da matéria na divulgação por meio de apps mensageiros, como WhatsApp, dizia o seguinte: “Senado quer anular processo se MP esconder provas que inocentam réus“.
Nossa finalidade com o presente artigo é demonstrar duas coisas:
1ª) a finalidade da lei não é impedir que o MP esconda provas. Se fosse essa, ela seria inócua, porque o MP já não pode fazer isso, e essa não é uma praxe dos membros da instituição;
2ª) a lei trará gravíssimos prejuízos ao sistema de persecução penal e à efetividade da justiça criminal, especialmente em casos envolvendo investigações complexas, como ocorre em delitos de corrupção, lavagem de capitais e organização criminosa.
Passemos à análise desses pontos.
O Ministério Público já não pode (e nunca pôde) esconder provas. E essa não é uma praxe dos membros da instituição.
São dois, basicamente, os instrumentos mais utilizados para a investigação criminal:
1) inquérito policial, presidido pelo Delegado de Polícia, sob controle permanente do órgão do Ministério Público;
2) Procedimento Investigatório Criminal (PIC) realizado diretamente pelo membro do MP.
No caso do Inquérito Policial, quando encerrado, ele é integralmente anexado aos autos por expressa determinação legal, prevista no art. 12 do Código de Processo Penal:
“Art. 12. O inquérito policial acompanhará a denúncia ou queixa, sempre que servir de base a uma ou outra.”
Ou seja, quando o órgão do Ministério Público oferta a denúncia, necessariamente, a integralidade do que foi levantado durante as investigações segue com a peça acusatória.
No que toca ao Procedimento de Investigação Criminal, embora não haja expressa previsão nesse sentido, é praxe que ele também seja igualmente anexado, na íntegra, à denúncia ofertada, até mesmo em vista do previsto no art. 21 da Resolução do Conselho Nacional do Ministério Público – CNMP a respeito do tema (Resolução 181):
“Art. 21. No procedimento investigatório criminal serão observados os direitos e as garantias individuais consagrados na Constituição da República Federativa do Brasil, bem como as prerrogativas funcionais do investigado, aplicando-se, no que couber, as normas do Código de Processo Penal e a legislação especial pertinente.”.
Ademais, o PIC é, por determinação regulamentar, um procedimento público e, portanto, acessível à parte, estando sujeito a seu acompanhamento. De fato, a mesma Resolução 181 do Conselho Nacional do Ministério Público que regula o PIC, afirma expressamente em seu art. 15: “Os atos e peças do procedimento investigatório criminal são públicos, nos termos desta Resolução, salvo disposição legal em contrário ou por razões de interesse público ou conveniência da investigação.” Quanto à exceção no final do dispositivo, trataremos dela em breve. Apenas gostaríamos antes de ressaltar em que consiste essa publicidade, para que se tenha ideia do nível de transparência desse tipo de procedimento.
A publicidade do feito é tratada no parágrafo único do mesmo art. 15, o qual prevê que “a publicidade consistirá” em “expedição de certidão”, por meio da qual a parte pode requerer dados específicos dos autos; ou mesmo de integral ” extração de cópias”. Caso haja dados sigilosos da parte, o advogado terá de ter poderes especiais para retirar a cópia. A parte ou seu advogado também podem ter “deferimento de pedidos de vista, pelo prazo de 5 (cinco) dias ou outro que assinalar fundamentadamente o presidente do procedimento investigatório criminal”. As investigações ainda estão sujeitas à “prestação de informações ao público em geral, a critério do presidente do procedimento investigatório criminal, observados o princípio da presunção de inocência e as hipóteses legais de sigilo”. Por fim, a publicidade também pode ocorrer por meio de atendimento aos advogados das partes, conforme Resolução 88 do CNMP.
Ou seja, tanto o inquérito quanto o PIC são instrumentos absolutamente transparentes.
Agora: é claro que razões de conveniência da investigação ou de interesse público podem levar à decretação de sigilo dos autos. Basta pensar, no tocante à conveniência da investigação, num processo em que há diligências em curso: por exemplo, uma interceptação telefônica ou um pedido de busca domiciliar. E quanto ao interesse público, pense em um processo sobre pedofilia em que há imagens de infantes.
De todo modo, mesmo no caso de sigilo, ele não é – nem de longe – absoluto. Consoante entendimento pacífico e consolidado, inclusive, consagrado em enunciado da Súmula Vinculante do STF (Verbete 14), o sigilo paira apenas sobre as diligências em curso. Explico: digamos que o sigilo tenha sido decretado porque uma busca domiciliar estava pendente. Em primeiro lugar: o sigilo recairá apenas sobre os documentos cujo acesso poderiam levar à frustração da medida; em segundo lugar, uma vez efetuada a diligência e encartado nos autos o teor do auto de busca e apreensão, a defesa passará a ter acesso a ele.
Veja, nesse sentido, o Verbete 14 da Súmula Vinculante do STF:
É direito do defensor, no interesse do representado, ter acesso amplo aos elementos de prova que, já documentados em procedimento investigatório realizado por órgão com competência de polícia judiciária, digam respeito ao exercício do direito de defesa.
Agora preste atenção neste precedente do STF, aplicando idêntico entendimento também aos Procedimentos Investigatórios a cargo do MP:
É direito do advogado, suscetível de ser garantido por habeas corpus, o de, em tutela ou no interesse do cliente envolvido nas investigações, ter acesso amplo aos elementos que, já documentados em procedimento investigatório realizado por órgão com competência de polícia judiciária ou por órgão do Ministério Público, digam respeito ao constituinte. (HC 88190, Relator(a): Min. CEZAR PELUSO, Segunda Turma, julgado em 29/08/2006
O que se percebe é que temos um modelo bastante adequado e apto a fazer conviver tanto a efetividade da investigação quanto o direito dos réus. O problema é que, por vezes, há quem fique insatisfeito de que a investigação seja efetiva e de que se assegure apenas os direitos e não a impunidade de autores de delitos.
Portanto, cremos que fica claro que já nos dias atuais o Ministério Público não pode “esconder” provas favoráveis à defesa. E essa não é – de maneira alguma! – uma praxe dos membros da instituição. Em mais de uma década atuando com direito penal, tanto no Poder Judiciário, quanto na Defensoria Pública e na advocacia privada, ou no Ministério Público jamais presenciei um único processo em que isso houvesse ocorrido. É claro que isso poderia acontecer, mas já há remédios adequados, seja pela anulação do processo, seja pela punição do agente público, caso fique demonstrado o dolo.
Para não deixar dúvidas de que não existe espaço para isso na nossa legislação atual, cito um precedente expresso e contundente do STF nesse sentido:
O procedimento investigatório instaurado pelo Ministério Público deverá conter todas as peças, termos de declarações ou depoimentos, laudos periciais e demais subsídios probatórios coligidos no curso da investigação, não podendo, o “Parquet”, sonegar, selecionar ou deixar de juntar, aos autos, quaisquer desses elementos de informação, cujo conteúdo, por referir-se ao objeto da apuração penal, deve ser tornado acessível tanto à pessoa sob investigação quanto ao seu Advogado. – O regime de sigilo, sempre excepcional, eventualmente prevalecente no contexto de investigação penal promovida pelo Ministério Público, não se revelará oponível ao investigado e ao Advogado por este constituído, que terão direito de acesso – considerado o princípio da comunhão das provas – a todos os elementos de informação que já tenham sido formalmente incorporados aos autos do respectivo procedimento investigatório. (HC 94173, Relator(a): Min. CELSO DE MELLO, Segunda Turma, julgado em 27/10/2009, DJe-223 DIVULG 26-11-20)
Bom, a partir disso, alguém poderia ficar com a impressão que o projeto de lei mencionado apenas “chove no molhado” e, portanto, não mudaria nada. Ledo engano. É o que mostramos no próximo tópico.
Projeto de lei prejudica a efetividade da justiça penal e favorece a impunidade, particularmente de delitos que envolvam investigações complexas
Na reportagem que a Gazeta do Povo publicou sobre o tema, “o especialista em Direito Penal e Processo Penal, Gustavo Polido, elogia a proposta em tramitação na CCJ. Na interpretação do jurista, o MP não será obrigado a produzir provas que beneficiem o acusado. O que o projeto prevê, segundo Polido, é a obrigação de o Ministério Público disponibilizar todas as provas encontradas durante a investigação, mesmo que ela seja benéfica ao acusado.
“O projeto traz um reequilíbrio no sistema acusatório”, diz o jurista. “Ele [o MP] não precisa buscar prova para defender, mas não pode deixar de fornecer provas que venha a ter acesso só porque não interessam à acusação”, diz. “Garantir que o acusado tenha acesso a todas as provas, favoráveis ou não, que levaram a formação da convicção é a única garantia de que ele terá acesso de fato à ampla defesa, que é uma garantia constitucional”, completa o especialista.”
Vejamos se é mesmo assim. Quanto ao comentário final, já vimos no tópico anterior que o MP já tem de apresentar a totalidade das diligências investigatórias.
Agora quanto à necessidade de estender as investigações, leiamos mais uma vez, com toda atenção, o dispositivo:
“§1º Cabe ao Ministério Público, a fim de estabelecer a verdade dos fatos, alargar o inquérito ou procedimento investigativo a todos os fatos e provas pertinentes para a determinação da responsabilidade criminal, em conformidade com este Código e a Constituição Federal, e, para esse efeito, investigar, de igual modo, na busca da verdade processual, as circunstâncias que interessam quer à acusação, quer à defesa.”
Ora, a leitura atenta parece não deixar dúvida do equívoco no comentário do jurista ouvido pela reportagem.
E mais: o § 2º diz que caso a exigência do § 1º não seja observada – ou seja, se todos os fatos e provas de interesse da defesa não foram abarcados pela investigação -, haverá nulidade absoluta do processo.
Qual o problema disso? Basicamente dois.
Primeiro, por receio de incidir em nulidade, os membros do MP passarão a estender desnecessariamente as investigações, a fim de excluir qualquer margem para alegação que invalide o processo. Com isso, num país já brutalmente atingido pela impunidade e morosidade na capacidade de resposta por parte da Justiça Penal, passaremos a ter um atraso ainda maior das investigações.
Aliás, em investigações complexas, como aquelas que envolvem corrupção, lavagem de capitais ou organizações criminosas, essa obstinação em fechar qualquer brecha para arguições de nulidade poderá inclusive inviabilizar as investigações. Diríamos que isso não é apenas uma possível, mas provável.
Frise-se que a previsão é quase que impossível de ser cumprida: sempre se poderá dizer que alguém não foi ouvido, ou alguma prova não foi realizada e que hipoteticamente poderia ter efeito benéfico à defesa.
E é aí que entra o segundo problema: por mais que o órgão do Ministério Público se esforce – com enorme prejuízo à efetividade e celeridade das investigações – em fechar essas brechas para nulidades, é inviável fazê-lo de modo perfeito. Por isso, em casos complexos e com agentes poderosos, sempre restará uma fresta para alegação de nulidade.
Saliente-se que não se está aqui a defender a efetividade do processo penal “a qualquer custo“, mesmo sob direitos fundamentais dos réus. Aliás, não é esse o problema em geral no Brasil, onde a impunidade é sem dúvida alguma muito mais presente. O problema em nosso país está longe de ser um suposto excesso de punição. De todo modo, no caso, a medida traz prejuízos desproporcionais às investigações – em especial àquelas com alto grau de complexidade -, sem maiores benefícios aos acusados, uma vez que o MP já tem de juntar todos os dados e é garantido ao réu a ampla defesa durante o processo, podendo requerer todas as medidas que entender necessárias.
Logo, a medida é desnecessária e não cria novos direitos; por outro lado, terá efeitos perversos no tocante à efetividade da justiça penal (que também é um instrumento relevante para proteger direitos humanos, inclusive como reconhecem as Cortes internacionais sobre o tema), tanto pela demora – inoportuna e desproporcional – que irá impor às investigações; quanto pelo risco inexorável de ensejar nulidades irrazoáveis.
Ademais, esses efeitos serão sentidos de modo especial em processos complexos e que envolvam corrupção, lavagem de dinheiro e organizações criminosas.
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