"Acho que em qualquer época eu teria amado a liberdade; mas na época em que vivemos, sinto-me propenso a idolatrá-la"
(Tocqueville)
Quando um policial pode usar força letal?
A LEGITIMIDADE DO USO DE FORÇA LETAL POR AGENTES DE SEGURANÇA PÚBLICA.
Cleber de Oliveira Tavares Neto, Procurador da República, ex-Delegado de Polícia
Douglas Santos Araújo, Procurador da República, mestre em Direito Penal pela UERJ
A conduta típica que se enquadra tanto como legítima defesa quanto como estrito cumprimento do dever legal deve ser tratada como dever legal devido à especificidade desta excludente.
O policial em serviço que usa de força letal em legítima defesa própria ou de terceiro o faz no estrito cumprimento do dever legal de preservar a ordem pública e a incolumidade de pessoas.
Se o uso de força letal contra suspeitos portando arma de fogo for o único recurso que atenda à proporcionalidade no caso concreto, será dever legal do policial utilizá-lo.
1) Introdução
O limite jurídico do uso de força letal como recurso possivelmente inicial por agentes das forças de segurança pública (em lugar de primeiramente tentar efetuar a prisão ou impedir a agressão por outros modos) sempre foi um tema espinhoso. A legalidade da ação fica inevitavelmente envolta na discussão sobre a existência de um perigo atual ou iminente, a gravidade do risco para o agente de segurança pública e para terceiros, a proporcionalidade da reação, a inexistência de outros meios menos gravosos e a situação concreta, e a necessidade de analisar todas estas circunstâncias em curto espaço de tempo.
O tema voltou, mais uma vez, aos noticiários com a possibilidade aventada pelo Governador eleito pelo Rio de Janeiro de utilização de tiros de alta precisão disparados por policiais treinados (“snipers”) para neutralizar criminosos que estejam em vias públicas portando fuzis, especialmente em áreas conflagradas, sabidamente dominadas por organizações criminosas de tráfico de drogas. A discussão gira sobre a incidência da excludente de ilicitude da legítima defesa, notadamente a presença dos requisitos de proporcionalidade da ação e a iminência do risco de agressão.
No entanto, antes de tentarmos responder, necessário, primeiro, tentar compreender os exatos contornos jurídicos do problema que, a nosso sentir, parecem em geral deslocados no debate público corriqueiro.
2) O primado da antijuridicidade
A antijuridicidade é condição necessária, mas não suficiente, para que uma conduta seja qualificada como criminosa. Com efeito, a chamada antijuridicidade é a contradição entre a conduta e a norma jurídica, cuja violação gera lesão a um bem jurídico. O injusto penal, para sua formação, precisa de um duplo revestimento: a conduta para ser criminosa tem de contrariar o direito (ou seja, não estar autorizada de alguma forma) e enquadrar-se numa hipótese expressamente prevista na legislação penal.
Em que pese relegada muitas vezes a segundo plano, a antijuridicidade é o coração do crime, possuindo primado sobre os outros elementos da estrutura dogmática. Podemos asseverar que o tipo é o corpo do crime, mas a sua alma, que é a antijuridicidade, existe antes e para além da tipicidade. Isso porque, em regra, toda conduta antes de ser prevista como criminosa, já detinha a qualidade de ilícita pelos outros ramos jurídicos. De fato, imagine que o delito de roubo deixe de ser prevista em norma propriamente penal. Não existe a menor dúvida de que seguiria sendo ilícito sob outras perspectivas, uma vez que inadmissível sua efetiva autorização em lei.
Não é por outro motivo que o Direito Penal possui o caráter fragmentário e subsidiário, uma vez que somente alguns bens jurídicos são selecionados para ser objeto de tutela, quando os demais ramos do direito se revelaram insuficientes para que o Estado cumpra seu dever de proteção, segundo juízo de prudência política dos órgãos com competência legislativa.
O injusto penal é um ser vivo no mundo jurídico. Despido do seu corpo, que é representado pelo tipo penal, o seu espírito sobrevive, mas não no mundo criminoso. Por sua vez, um fato incriminado, mas destituído de alma por ser lícito, não passa de um cadáver insepulto na terra do delito.
A ideia posta remete-nos ao gráfico exemplificado por Toledo no sentido da existência de dois círculos concêntricos em que o maior seria do injusto extrapenal (civil, administrativo etc.) e o menor representa o injusto penal cercado de maiores exigências.
3) Panorama geral das excludentes de ilicitude
A ideia sobre a existência de excludentes de ilicitude, também conhecidas como causas ou circunstâncias de justificação, causas objetivas de exclusão do crime, causas de licitude ou eximentes, só foi possível depois da sistematização da ilicitude como elemento autônomo e objetivo do delito, dissociado da tipicidade, culpabilidade e punibilidade.
No passado, as excludentes de ilicitude eram previstas juntamente com as normas que previam os crimes em espécie. De forma gradual é que as causas justificantes foram incorporadas à parte geral do Código Penal, irradiando seus efeitos a todos os crimes.
A legítima defesa é a excludente por excelência. Inicialmente prevista para os crimes de homicídio, depois foi estendida para a defesa de qualquer direito agredido e incluída na parte geral dos Códigos Penais. No Brasil, não foi diferente. O livro quinto, nos títulos XXXV e XXXVIII, das Ordenações Filipinas, justificava o homicídio quando realizado em defesa da própria vida ou pelo marido contra a mulher adúltera ou seu amante. No Código Penal de 1830, a legítima defesa ganhou foro na parte geral, ao qual voltaremos mais à frente.
Há que se pontuar que o processo de deslocamento das causas eximentes de ilicitude para a Parte Geral dos Códigos Penais não pode levar a conclusões distorcidas. Primeiro, nem todas as excludentes de ilicitude podem ser aplicadas a todos os crimes, em razão do raio limitado de ação de alguns de seus requisitos. Segundo, o rol de justificantes constante no Código Penal não é exaustivo, visto que a licitude da conduta pode decorrer da incidência de outras normas extrapenais ao caso concreto. Terceiro, as causas de justificação são normas penais comuns que não se submetem à proibição de interpretação analógica. Quarto, as excludentes de ilicitude não são excludentes opostas entre si, podendo haver justaposição, numa relação de congruência ou subsidiariedade.
O Código Penal prevê quatro causas justificantes – legítima defesa, estado de necessidade, estrito cumprimento do dever legal e exercício regular de um direito. No entanto, apesar de cada ordenamento jurídico prever espécies distintas de causas de excludentes de ilicitude, pode-se asseverar que elas podem ser dividas, ainda que formalmente, em dois grandes grupos. O primeiro agrupamento são ações acobertadas por direito ou faculdade legal titularizada pelo agente. O segundo grupo compreende ações impostas pelo ordenamento jurídico. O critério distintivo reside na discricionariedade ou não da conduta. O primeiro atua, podendo não fazê-lo. O segundo deve atuar, ainda que não o queira.
Dentro de cada grupo, em regra, há elementos coincidentes e especializantes, fazendo que haja uma relação de gênero e espécie e até mesmo de gradação subsidiária. Ademais, uma mesma situação fática pode preencher simultaneamente excludentes de um mesmo grupo ou excludentes previstas em grupos distintos.
No Direito Penal brasileiro, podemos concluir que a legítima defesa, estado de necessidade e exercício regular de um direito integram o grupo de eximentes dos direitos. Nas três espécies acima citadas, o ordenamento jurídico faculta a proteção de um bem jurídico contra uma lesão cuja defesa pode ocasionar prejuízo a outros bens jurídicos. Em comum, encontra-se a discricionariedade da sua tutela pelo agente. Quando uma pessoa mata ou fere um agressor em proteção própria ou ainda quando sacrifica a vida de outro para se salvar, está exercendo o direito natural de autopreservação. O primeiro caso está no âmbito da legítima defesa e o segundo no estado de necessidade. Também o pai ou mãe que, no exercício do poder familiar, repreendem e castigam, de forma moderada, seus filhos, atuando em exercício regular de um direito, no caso, o direito ao exercício do poder familiar.
O estrito cumprimento do dever legal é a única espécie de eximente do gênero que decorre de imposição de deveres de ação e, talvez por isso, mal analisada pela doutrina e jurisprudência, relegada indevidamente a situações menores que não retratam a real serventia a que se destina. Não é raro os manuais omitirem exemplos concretos de sua incidência ou, pior, repetirem os mesmos casos banais do oficial de justiça atuar na penhora de um bem particular ou do policial em efetuar a prisão em flagrante, que quase nunca geram nenhuma controvérsia digna de nota para excluir os crimes de furto e constrangimento ilegal.
A especialização das causas justificantes, inclusive com a previsão de requisitos, delineando precisos limites para a sua incidência, é importante por conferir segurança jurídica tanto ao cidadão, ao agir na sociedade, quanto ao Estado-Juiz, no momento da aplicação da lei penal. Vimos que a ausência de previsão expressa no Código Penal de excludentes de ilicitude não é fator obstativo para que se reconheça a licitude do comportamento típico se o ordenamento jurídico como um todo autoriza a conduta do agente.
No entanto, da forma como redigido o Código Penal ao prever o exercício regular de um direito como causa justificante, praticamente abarca de forma genérica todas as faculdades legais quando exercidas de forma regular. Nessa linha, embora a doutrina, praticamente quase de forma unânime, classifique o consentimento do ofendido como uma causa supralegal de excludente de ilicitude, desnecessário recorrer a esse estratagema, porque nada mais é que o exercício regular do direito de se renunciar a algo.
Frise-se que, embora pouco usual, não há impedimento legal para que incida de forma cumulativa mais de uma causa justificante numa conduta penalmente típica, ressalvados os casos, como pondera ROXIN, em que uma eximente mais restritiva regule de maneira especial uma parte de uma causa justificante, de forma a conferir efeitos diferenciados quanto ao seu modo de incidência, forma ou extensão de seus efeitos, havendo uma verdadeira especialidade no sentido funcional.
3.1) Evolução normativa
O primeiro Código Penal brasileiro de 1830 previu na parte geral as seguintes espécies de causas de justificação:
a) estado de necessidade,
b) legítima defesa própria,
c) legítima defesa dos familiares,
d) legítima defesa de terceiros,
e) cumprimento do dever legal,
e, f) exercício do direito de castigar filhos, escravos e alunos.
O Código Penal de 1890 abandonou a expressão do Código anterior no sentido de que o crime seria justificável, para centrar na figura do autor do crime, não qualificando como criminoso quem agisse em estado de necessidade, legítima defesa própria e de terceiro, no exercício de um ato lícito e em obediência legal.
O Código Penal de 1940, em sua redação original, estabeleceu como causas excludentes de criminalidade o estado de necessidade, legítima defesa, estrito cumprimento do dever legal e exercício regular de direito, que foram mantidas na reforma da parte Geral de 1984 (atualmente em vigor), embora com pequenas alterações no tocante ao excesso, requisitos e própria nomenclatura.
Entretanto, a aparição e evolução da nomenclatura dos vários institutos não significa que antes eles simplesmente inexistiam, ou seja, que as condutas por eles hoje albergadas eram consideradas criminosas. Peguemos, por exemplo, o estrito cumprimento do dever legal. Independentemente do nome que se dê à justificante, é óbvio que os seus mais radicais exemplos: a execução da sentença de morte pelo carrasco e o homicídio de soldados inimigos, jamais foram tomados como ilícitos, independentemente de previsão legal que eximisse seus autores.
Neste ponto, faria todo sentido olhar retroativamente pela perspectiva da teoria da ratio essendi, porque, afinal, não poderiam considerar típica uma conduta determinada pelo ordenamento jurídico.
3.2) A simbiose inadequada entre a legítima defesa e estrito cumprimento do dever legal
3.2.1) Legítima defesa
O instinto de autopreservação tem seu reconhecimento máximo no instituto da legítima defesa, que foi a primeira causa excludente de ilicitude prevista nos Códigos Penais na parte especial e que era restrita ao crime de homicídio.
Não se trata, como parecem pensar alguns, de uma delegação ou autorização do Poder Público ao particular de atuação em razão de uma necessidade de contingente. É um direito anterior, prévio, natural, que hoje se qualifica como um direito humano fundamental de lutar pela própria existência contra uma agressão injusta.
Não se trata de vingança ou punição porque a legítima defesa só incide para cessar ou impedir uma agressão, jamais para punir uma agressão passada. Da mesma forma, a sua aplicação não é subsidiária à ação do Estado em tutelar o bem jurídico agredido, isto é, não se exige que o Estado esteja impossibilitado de naquele momento atuar para defender o bem jurídico agredido, já que o seu titular não está obrigado a suportar a ofensa. A legítima defesa é um direito ético positivo que inibe o Estado de impor aos seus cidadãos a observância de um quadro moral de covardia ou a resignação contra agressões injustas. Portanto, além de uma proteção individual, também possui eco no prevalecimento do Direito sobre a iniquidade.
Desde o Código Penal de 1830, a legítima defesa passou a ser aplicada a todo e qualquer direito sob ameaça, desde que observados os requisitos legais, que hoje estão previstos no art. 25 do CP, a saber:
a) repelir agressão atual ou iminente;
b) uso moderado dos meios necessários; e,
c) finalidade de defender direito próprio ou de terceiro.
Vale repisar que a previsão legal da legítima defesa decorre do reconhecimento de um direito natural e, como tal, não pode ser imposto coativamente ao agente, sob pena de transformar um direito em um dever. Com efeito, o Estado, da mesma forma que não obriga o agente a fugir da agressão, também não o impele a reagir, não podendo deste comportamento extrair qualquer consequência negativa para a vítima. Embora evidente, grande parte da doutrina e jurisprudência vem utilizando indevidamente o instituto da legítima defesa em situações em que o agente atua em razão do dever legal de proteção a terceiros.
Um particular que atua de forma a impedir um roubo à mão armada em defesa própria ou de terceiro e que, na ação, estando preenchidos os requisitos legais do art. 25 do CP, mata o agressor, atua claramente em legítima defesa. Mas e o profissional de segurança pública? Também atua em legítima defesa? É o que veremos no próximo tópico.
3.2.2) Estrito cumprimento do dever legal
Agora, troquemos o agente da situação acima por um policial. Quando um policial se vê vítima de uma agressão injusta de um assaltante que atente gravemente contra sua incolumidade física, pode, se necessário, usar força proporcional e necessário – até mesmo letal, se for o caso – para afastar o risco a sua vida. Ele estará amparado pela legítima defesa própria quando preenchidos os requisitos do art. 25 do CP. Nesse caso, em nada muda quanto à conclusão acima.
No entanto, quando o policial em razão ou no exercício de suas funções intervém para defender a vida de terceiro, ameaçada por uma agressão injusta, atua no estrito cumprimento dever legal de proteção dos cidadãos. Reconhecer neste caso a situação de legítima defesa de terceiro é contradizer os seus próprios fundamentos e fazer tábula rasa do dever constitucional dos agentes de segurança pública.
Os agentes de segurança pública possuem, dentre de suas funções, o dever constitucional de preservar a ordem pública e assegurar a incolumidade das pessoas e de seus patrimônios, conforme previsto no art. 144 da Constituição da República Federativa (CRFB/88). Esses deveres são a contrapartida estatal ao direito fundamental à segurança, inscrito no caput dos art. 5º e 6º da mesa Constituição.
Perceba que, se por um lado a legítima defesa é um direito, uma faculdade legal que pode ou não ser exercida. O policial, neste caso, não tem mera discricionariedade em atuar caso vislumbre que a vítima está sofrendo um sério risco a sua vida e que é possível agir, com razoável previsão de segurança para todos, de forma a afastar a agressão injusta. Se assim não proceder, poderá inclusive ser responsabilizado funcionalmente e até como co-autor por crime comissivo por omissão, já que se encontra na posição de garantidor, na forma do art. 13, parágrafo 2º, alínea “a”, do Código Penal.
Incompreensível que parcela relevante da doutrina encaixe a situação narrada como legítima defesa de terceiro, sob o argumento de não existir no ordenamento jurídico o dever legal de matar, salvo nos casos de condenação por crime militar a pena de morte e em situações de guerra declarada. O simples fato de a atuação do policial ser vinculada, por si, afasta a legítima defesa que, como já vimos, é facultativa.
Mas não e só. O policial, ao usar de força letal para neutralizar de forma imediata a ameaça, empreende esforços para o fiel cumprimento de seu dever de proteção. Não o faz em cumprimento ao dever de matar, mas ao contrário, o faz no dever de preservar a vida. Inadequado tomar o resultado como a própria causa da ação. Se a morte do agressor resultar do dever de proteção empreendido pelo policial, não se deve tomar a consequência como efetivo objeto da ação policial.
Ademais, ainda que o uso da força letal fosse apenas para resguardar a própria vida, não haveria aqui apenas a legítima defesa. A função constitucional de preservar a ordem pública tem como corolário o dever de fazer cessar crimes que presencie em flagrante. O Código de Processo Penal traz como consequência desse dever a ordem de que as autoridades policiais prendam quem quer que se encontre em flagrante delito (se possível, já que o próprio código traz a hipótese da resistência).
Ora, todas as excludentes de ilicitude aceitam (embora não pretendam diretamente) o resultado morte como um resultado licitamente possível, não só em caso de legítima defesa. Os livros trazem o caso da “última tábua de salvação em naufrágio” como exemplo de homicídio em estado de necessidade. No caso de exercício regular de direito, o típico exemplo é o dos esportes de luta: se um dos atletas morre e todas as regras para o exercício regular (do direito) para a prática daquele esporte foram observadas.
Em situação específica, o Código Penal também prevê a morte dolosa como exercício regular de direito. É o caso do aborto realizado por médico em situações determinadas (art. 128, II, do Código Penal). E o que é a legítima defesa senão uma espécie de exercício regular de direito? Afinal, o direito à vida, assim como à posse, obviamente incluem o direito de defendê-las. Por isso o Código Civil prevê o direito de defesa ou manutenção da posse por meio da força (que seria simplesmente legítima defesa, caso não estivesse prevista na lei civil). Assim, há tanto legítima defesa quanto exercício regular de direito no caso de manutenção da posse; já no caso do desforço imediato visando à restituição da posse, o que há é somente o exercício regular do direito previsto no artigo 1210, § 1º do Código Civil.
4) Consequências práticas do enquadramento como estrito cumprimento do dever legal
Se todos esses institutos possuem a mesma natureza jurídica de excludente de ilicitude, por que se discute a aplicação de um ou outro?
Os atos das autoridades possuem presunção de legitimidade. Dessa forma, a ação policial terá, normalmente, presunção de que foi feita nos estritos limites do dever legal de preservar a ordem pública e a incolumidade de bens e pessoas (inclusive de criminosos em flagrante delito). Essa presunção é relativa, podendo ceder ante elementos probatórios robustos em contrário. Mas caberá a quem alega o abuso demonstrá-lo.
Assim, no caso de uma ação em legítima defesa, coloca-se o agressor e aquele que se defende em patamar de igualdade, precisando a autoridade policial de mais elementos (testemunhos, evidências físicas) que comprovem as declarações da pessoa que afirma ter praticado a ação típica em legítima defesa. Já no caso do exercício do dever legal por parte de um agente estatal, estará ele, a princípio, resguardado pela presunção acima referida.
Por isso, embora processualmente tanto o Auto de Resistência, relativo ao estrito cumprimento do dever legal, quanto o Auto de Prisão em Flagrante, para situações de legítima defesa, possuam o mesmo destino (o Ministério Público e, após, Poder Judiciário), eles se referem a situações distintas.
A jurisprudência dos vários tribunais é farta em apontar casos de ação policial que resultam em morte como sendo no estrito cumprimento do dever legal e, cumulativamente, como legítima defesa. A diferença na aplicação dos institutos é colocada de modo claro nesta decisão de rejeição de denúncia em que um policial rodoviário federal fora acusado de homicídio. Transcrevo alguns parágrafos pela clareza com que se analisaram fato e direito:
14. Nesse ponto específico, destaco que o agente de segurança, diante do diminuto tempo para decidir como atuar, conforme asserido pelos peritos, não pode hesitar em agir, no estrito cumprimento de seu dever legal – que é o de velar pela segurança da sociedade – sendo indiscutível que o receio de atuar, valendo-se dos meios necessários e conferidos pelo aparato estatal, pode acarretar o comprometimento da promoção da segurança dos cidadãos.
15. Na forma dos artigos 6º e 144, ambos da Constituição Federal, a segurança, direito social e dever do Estado, deve ser exercida também pela Polícia Rodoviária Federal, a quem incumbe resguardar as rodovias federais, mediante o uso do aparato posto à disposição do agente de segurança, inclusive, de armas de fogo, como na situação analisada.
16. Não se mostra razoável exigir-se do policial, ora acusado, que aguardasse, de modo passivo, para além do risco assumido em razão do exercício de suas atividades funcionais, a concretização do disparo de arma de fogo pelo suspeito, expondo-se a perigo concreto, para somente a partir de tal momento fazer uso da arma que lhe foi conferida para o cumprimento de seu munus que é o de garantir a segurança da coletividade.
(…)
21. Registro, por fim, que a presunção de atuação regular e de boa-fé do Policial Rodoviário Federal, que se coloca, cotidianamente, em situação de risco em proteção da sociedade, somente pode ser afastada diante de elementos concretos que evidenciem a conduta criminosa, inocorrente na espécie, repito. (sem destaques no original, Autos 0044047-59.2012.4.01.3400 – 12ª VARA – BRASÍLIA. Decisão publicada em 23/10/2017)
O caso se referia a um policial rodoviário federal que, ao abordar criminosos em situação de flagrante delito, resistiram à prisão. O criminoso que veio a falecer fez uso de uma arma de fogo que, porém, não chegou a disparar por falha na munição. A juíza do caso entendeu que não é exigível aguardar o funcionamento da arma para só então se poder fazer uso de força letal. Superou-se, portanto, a falsa ideia de que o policial somente pode usar força letal após tentar todos os outros meios existentes.
5) O mito da progressividade do uso da força
Existe um mito de que o policial, ao se deparar com uma situação de flagrante delito, deve selecionar meios progressivamente mais incisivos conforme a reação do suspeito progrida em resposta à abordagem.
O raciocínio é, em princípio, correto. Mas ele erra ao transmitir a imagem de que essa seria uma regra inexpugnável.
O erro aqui está em achar que a ação do policial independe da situação concreta que já se apresenta a ele desde o princípio de sua atuação. Isso passa a ideia equivocada de que mesmo ao se deparar com um crime em andamento com uso de arma de fogo para emprego letal imediato pelo criminoso, deveria o agente de segurança sempre antes se valer de comando verbal (dar voz de prisão ou negociar uma rendição) e ir ampliando o nível de força a ser utilizada progressivamente. Nem sempre.
O próprio conceito do que seria o uso progressivo da força já desmente essa ideia, pois esta seria a “seleção adequada de opções de força pelo policial em resposta ao nível de submissão do indivíduo suspeito ou infrator a ser controlado”. (vide: MOREIRA, Cícero Nunes; CORRÊA, Marcelo Vladimir. Manual de Prática Policial. Belo Horizonte, 2001, p. 77. Apud HEMANN, Egon Ferreira Plat. O emprego legítimo da força letal na atividade policial como medida extrema de preservação da ordem pública. Trabalho de concusão de curso de bacharelado em Segurança Pública da Universidade do Vale do Itajaí. Florianópolis. 2007. p. 51. Disponível em <http://biblioteca.pm.sc.gov.br/pergamum/vinculos/000001/00000110.pdf> ).
Os modelos usados pelas polícias para avaliação da força a ser empregada pelo policial, em cada caso concreto, são muito assemelhados, sempre se apoiando implicitamente no trinômio do princípio da proporcionalidade: adequação, necessidade e proporcionalidade estrita.
Pegando-se o modelo mais genérico, tem-se o seguinte quadro (Tabela do estudo ”Abordagem Policial” retirado da decisão de rejeição de denúncia no processo N° 0044047-59.2012.4.01.3400 – 12ª VARA – BRASÍLIA.):
Nível de Resistência do Suspeito |
Nível de Força usada pelo Policial |
Presença do suspeito |
Posição de abordagem |
Resistência verbal |
Comando verbal |
Resistência passiva |
Técnicas de condução do preso |
Resistência defensiva |
Agentes químicos |
Resistência física ativa |
Táticas físicas/outras armas |
Uso de arma de fogo e força letal |
Uso de arma de fogo e força letal |
Demonstrando que se trata de um padrão de comportamento baseado numa simples observação da realidade, vejamos também o quadro do Departamento de Polícia de Phoenix (EUA) (Hemann. op cit. P. 81 a 83):
Em quaisquer dos quadros que se olhe, é fácil observar que, ao uso de arma de fogo ou qualquer outro meio letal pelo suspeito, corresponde o uso de força letal pela polícia.
Isso obviamente não quer dizer que se usará de força letal de imediato em qualquer situação em que o suspeito estiver portando uma arma letal, mas que isso, em conjunto com as demais circunstâncias (local propício ou não para abordagem, possibilidade de resistência, possibilidade de a reação matar ou ferir gravemente o policial ou terceiros etc.), será considerado pelo policial na abordagem ao escolher qual das categorias ou níveis de força empregar.
A decisão de disparo pelo policial, ou seja, o uso da força letal, também pode ser avaliada por meio do Triângulo do Tiro (Hemann. op cit. P. 81 a 83), em que o policial avalia três itens relativamente ao agressor: primeiro, a sua habilidade, que, no nosso caso hipotético, é a capacidade de um suspeito armado usar a arma que porta para atingir o policial ou terceiros; segundo, a oportunidade, que é a possibilidade de o suspeito efetivamente atingir o policial ou terceiros (que no exemplo de criminosos portando fuzis em flagrante delito é larga, tendo em vista o alcance e energia dos seus projéteis e a certeza da resistência no caso de aproximação policial); terceiro item é o perigo, que é a intenção do uso de força letal pelo suspeito, gerando risco ao policial ou terceiros inocentes.
Combinando-se todas as hipóteses acima em uma situação concreta, o uso de força letal pode surgir como melhor decisão a ser tomada pelo policial e, portanto, como dever legal.
Essa visão equivocada de que o uso da força deve ser absolutamente progressivo e só se inicia após a resistência do agressor à prisão é, provavelmente, fruto de má interpretação de nosso Código de Processo Penal, quando fala da hipótese de resistência pelo criminoso ou terceiros no artigo 292, que gerou o Auto de Resistência para casos de tentativa de prisão que resultam em morte. Analisando friamente o texto legal, observa-se que ele deveria ser usado para casos em que há prisão, não (somente) nos casos em que há morte. Entretanto, dele se extraem (erroneamente) a necessidade de primeiro se tentar efetuar a prisão apenas oralmente para só então se usar dos meios “necessários” para vencer a resistência, o que poderia ser interpretado como progressividade no uso da força.
De qualquer forma, é possível extrair desse dispositivo que é dever legal do policial usar de força necessária e proporcional contra criminosos e contra quem quer que os auxilie (embora o dispositivo empregue o verbo “poderão”, é certo que, caso não efetuem a prisão por não quererem enfrentar o perigo, o policial responderá por prevaricação ou mesmo pelo próprio crime cometido pelo agressor, na condição de garantidores omissos). E, pela própria prática jurídica, sabemos que só se lavram Autos de Resistência quando a morte é causada por policiais no exercício da função. Portanto, o uso de força letal já é encarado pela nossa prática jurídica como cumprimento de dever legal do policial. Embora se use em alguns casos o termo “legítima defesa” e os critérios da legítima defesa ao se avaliar a conduta do policial (porque a situação fática que justifica a conduta do policial é a mesma tanto no caso da legítima defesa quanto no cumprimento do dever legal), não se desconsidera a sua especial condição de agente público no exercício de uma função constitucionalmente determinada.
Se há o dever constitucional de o policial preservar a ordem pública e a incolumidade de pessoas e bens, e se há o dever de usar dos meios necessários para vencer a resistência à prisão em flagrante, devemos nos questionar se, antes de usar força letal, o agente público deve expor a incolumidade de pessoas a risco. Mais especificamente, se o risco a que pessoas próximas estão expostas é de morte, o que impede o policial de usar diretamente de força letal para neutralizar a ameaça promovida por criminosos em flagrante delito e na iminência de agredir injustamente pessoas no seu entorno? Parece claro, diante de nossa ordem jurídica e do dever humano de proteger inocentes, que a resposta só pode ser negativa.
6) As circunstâncias reais no uso de força letal
Neste ponto, os requisitos da legítima defesa se somam aos deveres legais do policial para justificar o uso de força letal como primeiro recurso em certas situações. Genericamente falando, há situações em que um crime está ocorrendo ou na iminência de ocorrer e o emprego de qualquer medida não letal (taser, mera “voz de prisão” etc.) gerará risco de morte às pessoas no entorno ou ao próprio policial.
Na prática, podemos mencionar terroristas que estejam portando arma letal em situações que indiquem o seu emprego imediato ou quaisquer integrantes armados de organizações que alcançaram um ponto de não-retorno na “espiral da morte”. Além dessas, também se vislumbram situações cotidianas hoje no Brasil: pessoas portando ostensivamente armamento de guerra em locais dominados pela criminalidade. São, por exemplo, os “soldados do tráfico”, que permanecem de sentinelas prontos para defender o território de sua organização criminosa contra invasões de organizações rivais e para executar qualquer agente de segurança pública que tente se aproximar.
É necessário olhar para a realidade desses locais, saber dos conflitos anteriores, para entender que a prisão é praticamente impossível, que toda tentativa de ingresso das forças policiais leva inevitavelmente ao confronto e ao resultado morte, seja dos criminosos, seja dos policiais, seja de terceiros. Em situações como essa, o agente de segurança pública (sempre me referindo tanto ao policial individualmente quanto ao comandante de uma operação) tem que decidir de que forma cumprir o seu dever legal de fazer cessar o crime e o atentado contra a ordem pública e a incolumidade das pessoas, restituindo o direito à segurança.
A proporcionalidade, a ponderação de direitos e deveres e as opções do agente de segurança pública.
A primeira opção que se apresenta ao agente em uma situação real de crime é a de simplesmente se omitir. Como se sabe, a omissão da autoridade policial em enfrentar o crime é, via de regra, criminosa em si. Uma hipótese legal de “não ação” seria a ação controlada prevista na lei 12.850/2013. Outras hipóteses seriam situações em que qualquer atuação do policial o colocaria em um risco desnecessário ou inútil, além do razoável mesmo àquele que se exige enfrentar o perigo, porém do qual não se pode exigir o martírio para um fim incerto. Isso se extrai do artigo 13, §2º, do CP: “podia agir para evitar o resultado”. Outras hipóteses incluiriam ponderar os direitos que podem ser atingidos em caso de ação ou omissão, que é o que se chama de “colisão de deveres”.
Pela lógica da colisão de deveres, o agente público tem o dever de cumprir o seu mister legal, contudo, também tem o dever de não realizar condutas típicas (como qualquer outro cidadão). Assim, apenas quando o dever legal se referir, no caso concreto, a um interesse igual ou superior ao direito vulnerado é que a sua conduta estará justificada. Isso desde que o ato em si não atente gravemente contra a dignidade da pessoa humana ou que se use um ser humano como mero instrumento (o que, de uma perspectiva kantiana, seria basicamente a mesma coisa).
Como se sabe pela própria lógica do instituto da legítima defesa, o Direito no caso concreto autoriza o uso de força letal por parte de policiais para sua salvaguarda e a de inocentes contra a vida de alguém que os agride injustamente (considerando aqui o suspeito, como já se disse acima, como pessoa armada e na iminência do uso ilícito de força letal).
Entretanto, ainda assim é necessário verificar se o cumprimento do dever legal do policial não poderia se dar de forma menos gravosa para o suspeito em flagrante delito. Ou seja, é necessário olhar a conduta do agente público do ponto de vista da proporcionalidade.
A ação do policial, portanto, deve ser apta a fazer cessar o crime, expondo ao menor risco possível o policial e terceiros inocentes, porém usando apenas da força necessária para que a conduta delitiva mencionada seja interrompida. Lembrando: a ideia do direito aqui não é matar o criminoso, mas neutralizar a ameaça a inocentes, sendo a morte uma consequência tolerada, embora não diretamente buscada.
Finalmente, o direito a ser sacrificado pela atuação do agente público deve ser (como já analisado pela ótica da colisão de deveres) proporcional ao direito que se quer proteger. Portanto, se são as vidas do policial ou de terceiros o que se busca manter intacto, juridicamente no caso concreto, a possibilidade de protegê-las por meio de força proporcional e necessária terá preponderância sobre a incolumidade do injusto agressor.
Assim, podem surgir hipoteticamente mais duas opções de ação ao policial (além da primeira, de omissão). A segunda opção é, mesmo sabendo que o confronto é iminente e inevitável, tentar efetuar a prisão usando meios não letais. Considerando as tabelas do uso da força e o triângulo do tiro, percebe-se que essa opção será inadequada se o suspeito já estiver portando arma de fogo e estiver demonstrada a intenção do seu uso para resistir à prisão.
Exemplificativamente, essa intenção pode ser comprovada por meio de ocorrências anteriores em que policiais, integrantes de facções rivais ou mesmo turistas desavisados foram recebidos a tiros por simplesmente entrarem no mesmo local onde se encontra o suspeito portando arma de fogo (ou seja, a intenção aqui decorre da função desempenhada pelas pessoas ilegal e ostensivamente armadas naquele local, desde que, obviamente, as circunstâncias não tenham se modificado).
Nessa segunda opção de ação tendente a tentar prender o suspeito, se a intenção de resistência letal é claramente aferível, como no caso de confrontos com criminosos em flagrante delito portando armamento bélico em locais densamente povoados, o policial viola o seu dever de preservar a incolumidade de terceiros ao expô-los a um risco maior do que o bem que se quer proteger ao não usar de força letal contra o suspeito. Nesse caso, perceba que a força utilizada pelo agente de segurança é desproporcional, porquanto insuficiente. Esta alternativa só deve ser adotada se for possível tentar a captura sem expor a vida de terceiros (e a própria) a grave risco, ou se não for possível adotar desde logo a terceira opção, analisada a seguir.
A terceira opção é o uso de força letal como recurso imediato, por ser necessário e o único proporcional à ameaça. Ao se deparar com uma situação de confronto iminente, de injusta agressão iminente e letal por parte do suspeito e que gere riscos desproporcionais às vidas de policiais e terceiros inocentes, o policial ou o comandante da operação deverão considerar todas as hipóteses de ação visando à neutralização do agressor. Inexistindo dentre os meios disponíveis naquele momento e local algum meio ou estratégia que se mostre suficientemente eficaz para a finalidade de capturar o suspeito sem a exposição de inocentes a risco de morte, o uso de força letal pelos agentes de segurança pública se mostra como dever legal.
Uma vez que em determinadas hipóteses o uso de força letal para neutralizar a ameaça criminosa se mostra como única opção juridicamente aceitável, a morte do injusto agressor será uma situação de estrito cumprimento do dever legal de preservar a ordem pública e a incolumidade das pessoas, além de efetivar os direitos fundamentais à vida e à segurança.
7) Conclusões
A conduta típica que se enquadra tanto como legítima defesa quanto como estrito cumprimento do dever legal deve ser tratada como dever legal devido à especificidade desta excludente.
O policial em serviço que usa de força letal em legítima defesa própria ou de terceiro o faz no estrito cumprimento do dever legal de preservar a ordem pública e a incolumidade de pessoas.
Se o uso de força letal como recurso necessário contra suspeitos portando arma de fogo for a única opção que atenda à proporcionalidade no caso concreto, será dever legal do policial utilizá-la.
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