"Acho que em qualquer época eu teria amado a liberdade; mas na época em que vivemos, sinto-me propenso a idolatrá-la"
(Tocqueville)

Sabe aquele papo de que o número de abortos não aumenta se ele for liberado? É mentira.

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Post escrito conjuntamente por:

Isabella Mantovani, especialista em Bioética e mestre em Odontologia e Saúde Coletiva;

André Borges Uliano, cujo minicurrículo pode ser acessado no link “Quem Somos“.

Foto: Bigstock

Foto: Bigstock

O blog Instituto Politeia publicou em janeiro deste ano post falando de modo amplo sobre o aborto. O artigo foi escrito conjuntamente por Clarisier Azevedo Cavalcante de Morais, Katie Coelho e André Uliano.

Naquela oportunidade tratamos do fundamento da proteção jurídica do nascituro, do modo como a legislação brasileira cuida do assunto e dos impactos da proibição do aborto na saúde materna e na prevenção ao abortamento.

Neste post queremos nos deter e aprofundar em apenas um dos pontos lá tratados: a proibição do aborto reduz sua prática, é inócua, ou pode inclusive aumentar a quantidade de abortos praticados?

Vejamos.

Qual o efeito da tutela penal da vida intrauterina no número de abortos praticados?

Pezinhos

Um dos argumentos mais suscitados contra a tutela penal do direito à vida intrauterina é o de que a criminalização das práticas abortivas seria inócua, irrelevante, ineficiente.

A razão apontada é de que, havendo ou não proibição legal, os casais que pretendessem abortar, fariam-no de um modo ou de outro. A “prova” seria que, mesmo sendo o aborto previsto como crime no Brasil, ele não deixa de ocorrer.

Bom… de fato, a vedação legal ao aborto não é capaz de evitar todos os casos de abortamento, e assim salvar a vida de todos os seres humanos em fase gestacional.

Todavia, se esse fosse um motivo razoável para desacreditar da importância da tutela jurídico-penal da vida intrauterina, todos os delitos deveriam ser revogados. Isso dado que o direito penal também não é capaz de evitar todos os homicídios, estupros, latrocínios etc.

Não obstante, o que ocorre é que – ainda que não de modo absoluto – a tutela penal é sim capaz de reduzir o número de práticas previstas como criminosas.

Não é à toa que, ao contrário do constantemente propalado, os números demonstram que a criminalização do aborto reduz sua incidência, com consequente preservação de milhares e milhares de vidas.

É verdade que existe uma certa “guerra de números“, em que os defensores do aborto tentam comparar a quantidade de abortamentos em dois grupos de países: 1) aqueles em que o aborto é penalmente vedado; e 2) outras nações em que é permitido. Tentam, então, concluir que, por vezes, neste último grupo há menos casos de aborto.

No entanto, essa metodologia é falha por dois motivos: primeiramente não existe certeza do número de abortos nos países em que a conduta é criminalizada, uma vez que praticada na clandestinidade. Isso permite que esses quantitativos sejam artificialmente hipertrofiados. E de fato é o que acontece por parte de grupos militantes.

Um exemplo: no Uruguai, antes da liberação do aborto, falava-se em até 55 mil abortamentos por ano. Após, ativistas passaram a trabalhar com o número de 33 mil. Com a legalização, no primeiro ano houve pouco mais de 6 mil. Ou seja: os números chegaram a ser inchados em quase 10x.

Em segundo lugar, mesmo que se utilizem dados realistas, essa sistemática pode acabar deixando de lado outras variáveis importantes. O jornal americano esquerdista New York Times publicou matéria em que compara Uganda (onde o aborto é proibido) com os Estados Unidos ou os países da Europa Ocidental. Isso obviamente desfigura a análise, por deixar de lado variáveis como renda, nível educacional, acesso a métodos de evitar gestações indesejadas etc.

Por isso, a melhor metodologia para examinar a questão parece ser a seguinte: averigua-se o número de abortos no primeiro ano após sua legalização (primeiro ano em que a prática não ocorrerá na clandestinidade, sendo possível levantar números oficiais); e então observa-se se esse número cresce acima da taxa de crescimento da população nos anos seguintes. Se isso ocorrer, há indícios de que a legislação permissiva acabou impactando e estimulando o comportamento.

Pois bem. Utilizando essa metodologia, é perceptível que países que legalizaram a prática tiveram incremento nas taxas de abortos efetuados.

Alguns exemplos:

Uruguai:

Foto: Pìxabay
Foto: Pìxabay

No primeiro ano após a legalização houve pouco mais de 6 mil abortamentos no pais, sendo que no primeiro mês tinham ocorrido apenas 200.

No segundo ano, o número já deu um salto de 20%.

No terceiro ano, novo aumento de 9% no número de abortos realizados.

Ou seja: em um único biênio, houve incremento de quase 1/3 no número de crianças abortadas.

Estados Unidos:

Foto: Saul Loeb AFP
Foto: Saul Loeb AFP

O aborto foi liberado nacionalmente mediante decisão ativista da Suprema Corte invadindo atribuição dos representantes do povo no Poder Legislativo, no caso Roe Vs. Wade. Mas antes disso, desde 1970, quando o estado de Nova Iorque liberou pela primeira vez o aborto sem exigência de requisitos, mediante simples pedido (até o quinto mês), o número de abortos já vinha crescendo.

Em 1970 foram cerca de 190 mil.

Em 1973 a trágica marca já atingiu o patamar de mais de 615 mil.

O número não parou então de subir, como pode ser visto no gráfico abaixo, em que a coluna da esquerda aponta o ano; a do meio, o número absoluto de abortos; e a da direita, a proporção de abortos para cada mil nascimentos:

Center for Disease Control and Prevention: https://www.cdc.gov/mmwr/preview/mmwrhtml/ss5212a1.htm#fig1
Center for Disease Control and Prevention: https://www.cdc.gov/mmwr/preview/mmwrhtml/ss5212a1.htm#fig1

Após mais de uma década o número cessou sua trajetória ascendente e ficou quase estagnado. Em 1990, mais um triste recorde em números absolutos, ultrapassando um milhão e quatrocentos mil abortos.

Em 1992, a Suprema Corte no caso Casey v. Planned Parenthood decidiu que os estados podiam impor restrições administrativas – embora não penais – a práticas abortivas (como exigência de consentimento esclarecido, com exposição de informações sobre um aborto aos que procurem esse serviço; notificação dos pais caso menores de idade solicitem aborto; imposição de períodos mínimos de espera após o pedido etc.).

Imagem da Marcha pela Vida (March for Life) em Washington DC: http://marchforlife.org/home/
Imagem da Marcha pela Vida (March for Life) em Washington DC: http://marchforlife.org/home/

Desse ano em diante, vários estados passaram a criar e reforçar a aplicação de leis antiaborto, de modo que o número voltou a cair, muito embora sem jamais voltar aos patamares prévios à descriminalização.

Austrália:

Foto: Pixabay
Foto: Pixabay

O aborto é liberado na Austrália desde 1970. Em 1985, foram executados na Austrália cerca de 66.000 abortos. Esse numero saltou para 71.000 em 1987; 83.000 em 1991; 92.000 em 1995, e 88.000 por ano até 2002.

A mesma tendência pode ser constatada nos exemplos da Espanha, Inglaterra ou Suécia.

Abortos Espanha

Imagens extraídas da apresentação de Isabela Mantovani na Comissão de Direitos Humanos do Senado: https://www.senado.gov.br/noticias/TV/Video.asp?v=405297
Imagens extraídas da apresentação de Isabela Mantovani na Comissão de Direitos Humanos do Senado: https://www.senado.gov.br/noticias/TV/Video.asp?v=405297

Após várias décadas, o número de abortamentos acabou se estabilizando e até tendo certa queda em alguns casos, mas nunca retornando ao patamar anterior à legalização. Essa estagnação ou pequena redução muito provavelmente deveu-se à evolução nas outras variáveis mencionadas: renda, escolaridade, acesso a novas tecnologias etc.

E não… em regra, não ocorrem no Brasil mais abortos do que em países em que ele é liberado.

O Brasil, mesmo tendo outros dados que impactam negativamente (como renda, escolaridade, acesso a tecnologia etc), apresenta proporcionalmente 10x menos abortos do que a França; 8x menos do que a Suécia; e 4x menos do que Inglaterra ou Japão.

Ademais, além do empirismo, é possível apontar três razões teóricas pelas quais as práticas abortivas experimentam redução quantitativa quando penalmente proibidas:

a) Primeiramente, muitos cidadãos extraem seu código de ética e conduta pública da própria legislação, utilizando-a em grande medida como marco das ações que julga poder ou não fazer. Para esse cidadão que vê no cumprimento da legislação uma virtude cívica e, portanto, uma obrigação moral, a legislação penal acaba bastando por si só para impedir as práticas previstas como criminosas. E por outro lado, a simples liberação legal representa o desaparecimento de um impeditivo de consciência suficiente para que evite determinado comportamento.

b) Em segundo lugar, mesmo para o cidadão que não se vê moralmente compelido pela legislação, a possibilidade de punição é vista como um custo para a prática criminosa. Como já demonstrou o economista prêmio Nobel Gary Becker, o cálculo para a realização de uma ação é em grande medida um cálculo racional: as pessoas preveem um benefício de suas ações. E examinam se esse benefício supera os custos. A previsão de algo como crime, e portanto como passível de aplicação de sanções, é uma técnica de elevação desses custos, fazendo com que a conduta seja evitada em maior medida.

c) Por fim, a criminalização do aborto ajuda a manter presente a consciência de que o nascituro é um ser humano digno de proteção. Com a descriminalização, a noção da dignidade da vida humana em fase gestacional cai em processo de esvaimento.

Com isso, percebe-se que – assim como acontece em relação a outros delitos – a criminalização do aborto, ainda que insuficiente por si só para zerar sua prática, é um instrumento eficiente para reduzi-la.

Em conclusão: a criminalização do aborto é um mecanismo relevante para salvar a vida de seres humanos em gestação.

Importante, porém, registrar que a criminalização do aborto não é uma panaceia: é fundamental melhorar o acesso aos serviços de saúde e sua qualidade, bem como prover uma rede adequada de apoio psicológico, legal e material para gestantes.

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