"Acho que em qualquer época eu teria amado a liberdade; mas na época em que vivemos, sinto-me propenso a idolatrá-la"
(Tocqueville)
Devassar o sigilo médico de Bolsonaro foi uma medida incivilizada
Há mais de dois mil e quatrocentos anos, o pensador Hipócrates já defendia o sigilo médico, com os seguintes dizeres: “…Penetrando no interior das Famílias, meus olhos serão cegos e minha língua calará os segredos que me forem confiados…”
De lá para cá, infelizmente, regredimos.
Não que o direito não esteja consagrado em nossa legislação. Está. E na norma de mais alta hierarquia: a própria Constituição Federal. Ela é firme no sentido de que “são invioláveis a intimidade, a vida privada (…)” (art. 5º, X). Ademais, a mesma Carta também afirma que “ninguém será obrigado a fazer ou a deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”, e inexiste lei que obrigue alguém a expor dados médicos pessoais.
Todavia, em sua escalada ativista, o STF reduziu mais esse direito, a nosso ver, sem qualquer justificativa razoável.
Como amplamente divulgado, em meados de maio passado, por decisão do Ministro Ricardo Lewandowski, houve a revelação de exames do Presidente da República relativos ao coronavírus. Bolsonaro já havia divulgado o resultado negativo, mas houve uma ação judicial requerendo que tornasse público o próprio exame, o que foi acolhido pelo STF.
A medida é incivilizada. Ela materializa a redução de um direito fundamental, sem previsão legal ou qualquer razão jurídica. É um ato de violência à intimidade da pessoa.
Até se tentou dar ares de fundamentação alegando que haveria interesse público em saber sobre a condição de saúde do Presidente ou identificar infectados. Ambos argumentos insuficientes. O primeiro, porque caso estivesse infectado, o Presidente obviamente estaria assintomático, pois fazia aparições públicas diariamente com a disposição habitual. Logo, estar ou não contaminado não tinha qualquer relação com sua função pública. Por outro lado, embora seja importante identificar pessoas infectadas, é fato sabido que há milhares senão milhões de assintomáticos não diagnosticados, de modo que um caso isolado é irrelevante para a estratégia pública de combate à pandemia.
Mais: por parte de alguns, havia a intenção de usar o resultado do exame, a fim de acusá-lo de delito contra a saúde pública, de modo que a decisão, nesse caso, violaria ainda o direito de não produzir prova contra si mesmo. Um barbarismo sem precedentes.
Não só isso. O precedente é fonte de uma enorme insegurança jurídica.
Ora, qualquer juiz desafeto de uma pessoa pode agora mandar revelar seus dados acobertados pelo sigilo médico? E se a pessoa possuir uma doença ou se submeteu a um ato cirúrgico que ela considere constrangedor?
É uma agressão decorrente de uma posição bárbara do judiciário, avalizada pelo STF.
A decisão não só obrigou a revelar o exame, como deu divulgação ao mesmo.
Mais um dado importante para se ter noção do nível de deterioração da igualdade perante a lei a que estamos assistindo: poucos dias após a devassa do sigilo médico do Presidente, a justiça negou pedido de divulgação de receituário contra o Governador de Pernambuco, Paulo Câmara. O magistrado afirmou que o Judiciário “não foi feito para satisfazer curiosidades”. Esta última decisão é correta. O duplo padrão é que é o problema, visto que configura patente violação ao princípio da igualdade perante a lei e os tribunais, traço essencial do Estado de Direito.
É um novo passo na deterioração da Constituição e das liberdades públicas pela pena do próprio órgão que deveria resguardá-las. O fenômeno, apesar de chocante, infelizmente, não é um ato isolado. Reverter essa tendência é necessário e urgente.
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