"Acho que em qualquer época eu teria amado a liberdade; mas na época em que vivemos, sinto-me propenso a idolatrá-la"
(Tocqueville)
Entenda por que o STF errou no “caso Bendine”
Conforme noticiou o site jurídico CONJUR, no final de agosto deste ano, “por maioria, a 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal acatou (…) um pedido de Aldemir Bendine, ex-presidente do Banco do Brasil e da Petrobras, para anular a condenação da primeira instância”. “A condenação se deu no âmbito da ‘lava jato’. (…)”.
O argumento utilizado para anular a decisão foi o de que a concessão de prazo simultâneo para alegações finais para todos os réus, inclusive os colaboradores, violaria o direito ao contraditório e à ampla defesa dos delatados, como no caso o condenado Aldemir Bendine.
Como bem explicou a Gazeta do Povo em reportagem:
“As alegações finais são a última palavra das defesas para tentar convencer o juiz da inocência dos réus. No documento, as defesas rebatem todas as acusações feitas aos clientes.
Atualmente, o juiz abre prazo para alegações finais para o Ministério Público, depois para o assistente de acusação e, por fim, para todas as defesas ao mesmo tempo. O Supremo, no caso de Bendine, entendeu que os delatores devem apresentar o documento antes de se abrir prazo para as demais defesas, para que os réus que não são colaboradores possam rebater acusações dos delatores.”
Segundo levantamento do jornal Gazeta do Povo, apenas no âmbito da operação Lava Jato, “‘na hipótese de o entendimento do caso Bendine ser estendido para todas as ações penais em que houve prazo comum para a apresentação de alegações finais de réus colaboradores e delatados, poderão ser anuladas 32 sentenças, envolvendo 143 dentre 162 réus condenados pela operação Lava Jato’.”
A decisão, no entanto, foi equivocada, por três razões:
1) não havia nulidade, visto que o rito seguido é o determinado na legislação, e o prazo simultâneo para alegações por todos os réus não causa – por si só – prejuízo ao exercício do contraditório e da ampla defesa;
2) tratando-se de decisão que afastou em parte a aplicação de norma do CPP, o caso deveria ter sido remetido ao Plenário para apreciação da nova tese;
3) dado que a decisão é inovadora e sua aplicação retroativa possui grande impacto negativo sobre o combate à criminalidade, o STF deveria ter adotado a técnica da sinalização pró-futuro de seu entendimento, não colocando em xeque todas os processos já sentenciados em que tenha havido alegações simultâneas.
Vejamos em detalhe cada um desses pontos.
1) Turma do STF errou ao anular sentença condenatória do Caso Bendine
Nulidade é a consequência jurídica decorrente da prática de um ato processual em desconformidade com uma norma jurídica, causando prejuízo às partes ou à prestação jurisdicional.
Ou seja, caso um ato processual (por exemplo: a oitiva de uma testemunha, elaboração de uma prova, prolação de uma sentença) seja realizado violando uma regra processual ou princípio constitucional e, por isso, cause prejuízo a uma parte ou prejudique a justiça do processo, esse ato deverá ser declarado inválido.
Tendo isso em mente, é possível concluir que no caso Bendine não deveria ter sido declarada a nulidade da sentença condenatória por duas razões: 1) a regra processual foi devidamente observada sem ofensa a princípios constitucionais (como demonstraremos); e, 2) inexistiu prejuízo para o condenado.
Para entender isso, inicialmente, é necessário compreender como funciona a dinâmica de um processo em que há colaboradores.
Em geral, um ou alguns dos investigados ou processados interessados em colaborar manifesta seu desejo. São efetuadas entrevistas preliminares em que se verifica qual a relevância das informações possuídas pelo réu e a consistência das provas que ele possui.
Uma vez que o Ministério Público verifique haver interesse na colaboração, o órgão, conjuntamente com a defesa, passa a formalizar um acordo em que são estabelecidas suas condições, inclusive os benefícios para o réu. Ao final, é elaborado um termo de colaboração já com as declarações formalmente registradas, sendo esse termo encaminhado – em autos próprios – ao juiz da causa, o qual verifica sua legalidade e a espontaneidade no depoimento. Estando tudo regular, o magistrado homologa o acordo.
Sempre que possível, o registro dos atos de colaboração será feito pelos meios ou recursos de gravação destinados a obter maior fidelidade das informações. Nos depoimentos que prestar, o colaborador renunciará, na presença de seu defensor, ao direito ao silêncio e estará sujeito ao compromisso legal de dizer a verdade.
Aqui entra um ponto relevante: durante as investigações, o acordo de colaboração tramita em sigilo. Contudo, assim que recebida a denúncia, o acordo de colaboração premiada deixa de ser sigiloso, consoante previsão do art. 7º, § 3º, da Lei 12.850/13.
Logo, já no início do processo, quando citados, os réus não colaboradores e seus defensores já possuem acesso ao conteúdo da colaboração.
Recebida a denúncia, passa-se, então, à instrução processual, em que a prova oral é colhida perante o Poder Judiciário, sendo os réus, inclusive os colaboradores, ouvidos em interrogatório. Nessa ocasião valerá a regra já mencionada que obriga os delatores a renunciarem ao direito ao silêncio, tendo de declarar tudo o que sabem sobre o objeto da colaboração, dizendo apenas a verdade, sob pena de responsabilização.
Encerrada a instrução, vem a fase das alegações finais. Em processos complexos (como em geral são os que demandam colaboração), as alegações são feitas por escrito, isto é, por meio de documento que chamamos memoriais.
Qual a ordem na apresentação dos memoriais finais? A regra que no Brasil rege essa sequência está nos artigos 403 e 404 do Código de Processo Penal – CPP, dispositivo muito claro no sentido de que as razões serão apresentadas “respectivamente, pela acusação e pela defesa”, oralmente ou por escrito no prazo sucessivo de 5 (cinco) dias.
Frise-se que o colaborador, quando corréu, segue sendo defesa. Não existe para ele qualquer regra que excepcione a determinação legal de que os memoriais sejam apresentados primeiro pelo MP; e, por fim, por todos os réus conjuntamente, sejam eles colaboradores ou não.
Portanto, a conduta do magistrado no Caso Bendine – e outros idênticos nesse tocante – estava totalmente respaldada em dispositivo expresso de lei.
Nesse sentido, em artigo recente, afirmou o processualista e Procurador Regional da República Douglas Fischer:
não existe qualquer previsão legal expressa no sentido de que colaboradores-réus devam falar antes dos demais réus envolvidos na ação penal. Quem sempre fala primeiro é a acusação. No caso, todos os réus falaram por último. O que pretendia o impetrante é que ele falasse depois de outro réu que foi colaborador.
O que o Código de Processo Penal determina é que, nos termos dos arts. 403 e 404, sejam abertos prazos sucessivos para as partes (primeiro acusação, depois defesa). Mas não refere que se, dentre um dos réus, houver colaborador, tenha que ele falar antes que os demais envolvidos e que foram referidos pelo colaborador.
Ademais, esse modus operandi, por si só, não viola o contraditório e a ampla defesa.
De fato, o conteúdo do princípio constitucional do contraditório pode ser sumarizado na garantia de “ciência e reação” durante o processo. Ou seja, a parte tem direito a conhecer – isto é, ser devidamente intimada – da acusação e das provas contra ela produzidas, e ter aberta a possibilidade de se manifestar sobre elas, isto é, reagir.
Quanto à ampla defesa, ela exige que todos os meios de prova em direito admitidos sejam franqueados para que a parte possa tentar convencer o magistrado de suas alegações.
Bom, nada disso é violado pela alegação simultânea dos réus, visto que os não colaboradores já têm acesso aos termos da colaboração desde o início do processo judicial. Ademais, suas alegações são posteriores ao interrogatório e à manifestação do MP, quando todo o conteúdo da colaboração utilizado para fundamentar eventual condenação já está revelado. Ou seja: a parte têm conhecimento do que foi contra ela produzido, teve toda a instrução para elaborar contraprovas, e poderá reagir a tudo isso em seus memoriais. Por último, ainda está aberta para a parte a possibilidade de recurso da sentença.
Claro que, caso o colaborador, eventualmente, inove em suas alegações, aí sim o magistrado deverá reabrir o prazo para manifestação das partes. Caso não o faça, poderá haver invalidade do processo; porém, não decorrente do prazo comum em si, mas sim da não abertura de prazo para manifestação acerca de conteúdo novo na prova dos autos.
Do contrário, inexistindo inovação (o que é a regra), nada há que macule o uso do prazo conjunto para todas as defesas.
Saliente-se que, apesar de o uso de colaborações por meio de acordos formais ser algo relativamente recente no direito brasileiro, é antiquíssima a possibilidade de um dos réus, ao confessar a prática delitiva, entregar seu comparsa. Essa conduta, no direito processual, foi apelidada de chamada de corréu.
Ocorre que a chamada de corréu jamais determinou a abertura de prazos distintos para as defesas, sem que os tribunais viessem anulando processos por isso.
Assim, conclui-se que o prazo conjunto para a defesa, inclusive de colaboradores, por si só, não é causa de nulidade, salvo se algum prejuízo in concreto for constatado.
Inclusive, a 1ª Turma do STF possui precedente, julgado por unanimidade, em que decidiu que até mesmo a inversão da ordem de alegações finais – a defesa apresentando antes do Ministério Público – é incapaz de, por si só, gerar nulidade, salvo demonstração de prejuízo. Confira:
“(…) inexiste previsão legal de nulidade decorrente da mera inversão na ordem das Alegações Finais, sendo certo que as nulidades processuais são numerus clausus e, à luz do princípio da instrumentalidade das formas, rege-se pelo princípio pas de nullité sans grief (…).” (AP 968, Relator(a): Min. LUIZ FUX, Primeira Turma, julgado em 22/05/2018)
Ora, se mesmo a apresentação de alegações finais pelo MP após a defesa não é capaz de anular, por si só, um processo; muito menos a apresentação de memoriais em prazo conjunto pela defesa de réus colaboradores. Até mesmo porque a colaboração, isoladamente, é incapaz de fundamentar um decreto condenatório, salvo se corroborada por outros elementos, consoante art. 4º, § 16, da Lei de Organizações Criminosas (Lei. 12.850/13): “§ 16. Nenhuma sentença condenatória será proferida com fundamento apenas nas declarações de agente colaborador“.
Por conseguinte, como no caso Bendine não houve a demonstração de qualquer prejuízo in concreto, tendo o STF declarado a nulidade pela simples alegação genérica e abstrata de concessão de prazo comum para alegações finais de réus colaboradores, pode-se concluir que a 2ª Turma do STF se equivocou ao anular a respectiva sentença condenatória.
2) A tese utilizada pela 2ª Turma do STF no caso Bendine deveria ter sido submetida ao Plenário da Corte
O STF, no Verbete 10 de sua Súmula Vinculante, equipara juridicamente a conduta do órgão jurisdicional de deixar de aplicar – no todo ou em parte – uma regra, à sua declaração de inconstitucionalidade. Ou seja: quando um Tribunal, inclusive o STF, decide afastar a incidência de uma norma que, a princípio, seria aplicável, isso equivale juridicamente a declará-la inconstitucional.
No caso, como vimos, o STF afastou a incidência dos artigos 403 e 404 do CPP, ainda que apenas em parte (somente para processos com réus colaboradores). No jargão jurídico, pode-se dizer que o STF efetuou uma declaração de nulidade parcial sem redução de texto. Ele afirmou que os artigos 403 e 404 são inconstitucionais em processos que contem com colaboradores. Como essa hipótese não está expressa no artigo, ele simplesmente foi afastado, sem declaração de nulidade de parcela da redação dos dispositivos.
Assim, aplicável na hipótese o art. 97 da Constituição Federal, que diz que apenas o plenário, por maioria absoluta, poderia fazer a declaração de inconstitucionalidade – ou afastamento de incidência na hipótese.
Nesse sentido, inclusive, o Regimento Interno do STF, em seu art. 11, I, prevê: “A Turma remeterá o feito ao julgamento do Plenário independente de acórdão e de nova pauta: I – quando considerar relevante a arguição de inconstitucionalidade ainda não decidida pelo Plenário, e o Relator não lhe houver afetado o julgamento”.
De fato, tendo em vista que o órgão habilitada a fixar precedentes com caráter vinculante é o Pleno, segundo art. 927, V, do Novo CPC, as novas teses devem ser apreciadas por aquele órgão, até mesmo a fim de proceder à unificação e estabilidade da jurisprudência, e segurança jurídica sobre o direito aplicável no país.
Hoje, como a decisão foi proferida pela Turma, como os juízes devem se portar? Devem seguir a decisão de uma Turma, sem autoridade para fixar precedentes vinculantes, ou a lei? Outra coisa: se os magistrados de primeiro grau passarem desde já a seguir a decisão da Turma (equivocada, diga-se de passagem), e ela não vingar no Plenário, não haverá nulidade contra os coréus colaboradores que apresentaram alegações antes dos demais acusados sem previsão legal para tanto?
Logo, a decisão deveria ter sido remetida ao Plenário e não tomada pela 2ª Turma. Tanto assim, que nos casos seguintes que se valiam da mesma tese, o relator, Ministro Edson Fachin, remeteu o feito ao Pleno do STF.
3) Tendo em vista que a tese do STF inova na ordem jurídica, ela deveria ser adotada apenas para casos futuros
Ainda que o STF, por meio do Plenário, acate a tese de que as alegações finais dos colaboradores deve ser apresentada antes das dos demais réus, ele deveria fazer o que em direito chama-se “modulação dos efeitos temporais da decisão“, aplicando-a apenas a casos futuros.
Isso porque, ante razões de segurança jurídica, o STF pode decidir que uma norma é inconstitucional, porém rejeitar sua incidência apenas de forma prospectiva. Em teoria dos precedentes, esse tipo de decisão é chamado de prospective overruling, isto é, um precedente que se aplica apenas a casos futuros.
Seria a melhor saída, porque ainda que o Pleno do Tribunal entenda que a concessão de prazos sucessivos concretizaria em maior medida o contraditório, é inegável que isso inova a ordem jurídica processual; e que os juízes não tinham como seguir uma lei e um precedente que não existiam quando decidiram seus casos. Assim, a adoção abrupta da tese em casos em que há apenas a alegação genérica e abstrata de prazo comum, sem indicação de prejuízo concreto, prejudica de modo desproporcional a persecução penal.
Essa é uma técnica de sinalização, em que o Tribunal rejeitaria o pedido da parte no caso sob exame, mas sinalizaria que dali para frente adotaria a tese, preservando os processos anteriores, salvo prova de prejuízo real e efetivo.
Seria a melhor saída, caso a tese prosperasse no Tribunal Pleno, uma vez que harmonizaria os vários valores constitucionais em jogo.
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