Novembro de 2003. Escondido dos pais, os estudantes Liana Friedenbach, 16, e Felipe Silva Caffé, 19, decidem passar um final de semana acampando em um sítio abandonado em Embu-Guaçu, a 40 km de São Paulo. Abordados por um grupo, liderado por Roberto Aparecido Alves Cardoso, o Champinha, o casal de namorados é executado brutalmente. Ela, sequestrada por quatro dias e violentada várias vezes por quatro homens, foi esfaqueada com diversos golpes. Ele foi baleado na nunca, sem a menor chance de defesa.
Na época do crime, Champinha tinha 16 anos. Menor de idade, foi encaminhado para a antiga Febem, hoje Fundação Casa. Em maio de 2007, chegou a fugir da Unidade 1 do Complexo Vila Maria. Acabou detido no mesmo dia, após sua própria família avisar a polícia de seu paradeiro.
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Seus cúmplices foram condenados a penas que variam entre 47 e 124 anos de prisão. Mas como era adolescente quando participou dos assassinatos, Champinha se submeteu à disciplina prevista no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e não ao Código Penal. De acordo com o estatuto, ele poderia ter ficado internado na entidade por até três anos ou no máximo até completar 21 anos (artigo 121, parágrafo 5º).
Justamente ao completar 21, o Ministério Público requereu sua interdição civil com base na Lei 10.216/2001, também conhecida como Lei da Reforma Psiquiátrica. Sancionada pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso, em 2001, a legislação visa proteger os portadores de transtorno mental. A Justiça acolheu a solicitação. Desde então, a custódia dele se tornou responsabilidade do estado de São Paulo.
Sem poder permanecer onde estava, foi transferido para uma Unidade Experimental de Saúde (UES), destinada à recuperação de jovens infratores com distúrbios mentais, onde permanece até hoje. O local foi construído pelo governo em 2006 justamente para casos como o dele.
Champinha já teve pedidos de liberdade negados por Supremo Tribunal Federal (STF), Superior Tribunal de Justiça (STJ) e Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP). A defesa sugeria a ida dele à casa de um parente e reavaliações periódicas em um hospital psiquiátrico até que se atestasse a existência de condições do seu retorno ao convívio social.
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Mestre e doutor em direito pela USP, Sérgio Salomão Shecaira aponta total ilegalidade no caso. Ele cita a lei de 2001, que não prevê internações de longo período, mas apenas em casos específicos, como crises e surtos. O especialista também destaca que, pelo Código Penal brasileiro, ninguém pode ficar preso por mais de 30 anos. Ainda com a possibilidade de regressão de regime, dificilmente alguém fica todo esse período detido.
“Ele já está internado há 15 anos. Provavelmente ficará mais tempo privado de sua liberdade do que seus comparsas, maiores de idade na época dos crimes”, diz.
Shecaira destaca ainda que, pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, Champinha cometeu um ato infracional, e não um crime. Assim sendo, a nova internação, na unidade experimental de saúde, não é cabível.
‘A internação não decorre de um ato judicial. Não foi respeitado o devido processo legal. É uma situação totalmente sui generis’, afirma o professor da USP.
Essa é a mesma opinião do advogado criminalista João Paulo Martinelli, do curso de pós-graduação em Direito Penal do IDP-SP. Para Martinello, “houve uma gambiarra jurídica, pois Champinha foi interditado judicialmente, considerando incapaz, e internado compulsoriamente para tratamento. Esse procedimento não tem previsão em lei federal”.
“Leis que restringem liberdade e direitos individuais devem ter amparo na Constituição Federal, e nesse caso não há. Por isso, há muita contestação sobre a legalidade das Unidades Experimentais de Saúde”, afirma Martinelli.
Medo de novos crimes
O Ministério Público Federal (MPF), com apoio do Conselho Regional de Psicologia, já pediu, sem sucesso, o fechamento da Unidade Experimental de Saúde, por entender que o tratamento destinado aos internados está longe do adequado.
Em 2015, o STF analisou o caso e entendeu que Champinha deve ficar internado até que cesse sua periculosidade. Não se discutiu, porém, a legalidade da própria UES.
Na ocasião, a Procuradoria-Geral da República (PGR) se manifestou no processo pelo não conhecimento do recurso e elencou duas razões para o posicionamento: o fato de não haver qualquer violação aos dispositivos constitucionais invocados e de ser inviável a rediscussão de matéria fático-probatória em sede de recurso extraordinário. A argumentação foi atendida pelo então ministro relator Teori Zavascki, morto em 2017, que negou seguimento ao recurso.
“Apesar de os internados serem perigosos e possuírem graves problemas psiquiátricos, é necessário resolver a questão pelos instrumentos corretos: por meio de lei federal”, opina Martinelli.
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Já de acordo com o advogado criminalista Alexandre Ribeiro Filho, Champinha “não está cumprindo pena, mas medida de segurança” e, por isso, não há prazo para que ele deixe a unidade. “Dura enquanto perdurar a inimputabilidade, que deve ser atestada periodicamente”, afirma.
O advogado constitucionalista e criminalista Adib Abdouni tem opinião semelhante à de Ribeiro. Ele também diz que Champinha não cumpre pena, mas responde “a um processo civil que resultou no decreto de sua interdição, face à declaração de sua incapacidade absoluta para exercer os atos da vida civil”.
Para Abdouni, pelo quadro de transtorno mental e de personalidade, é importante impedir Champinha de cometer no futuro outros crimes em prejuízo da sociedade – e, por um caminho inédito, ainda que contestado, a Justiça está conseguindo esse fim.
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