Charlottesville. Depois que a manifestação da “Alt-Right”, de supremacistas brancos e de neonazistas, se transformou em uma batalha campal contra militantes de esquerda, dos movimentos Black Lives Matter [Vidas Negras Importam] e Antifas (Anti-Fascistas), muita gente se perguntou como isso pode ser possível nos Estados Unidos. Mas é. Há quase 100 anos o país vem construindo uma interpretação da liberdade de expressão que dá ampla proteção a todo tipo de discurso.
Mesmo outros países do direito comum – como Inglaterra, Canadá e Austrália – tentam encontrar algum equilíbrio entre liberdade de expressão e outros valores que podem colidir com manifestações individuais ou coletivas, como a honra, a imagem e a dignidade das pessoas. Alemanha e França também limitam a liberdade de expressão diante de valores conflitantes. Nestes países, assim como no Brasil, manifestações nazistas e negacionistas do holocausto são crimes.
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Já nos Estados Unidos, os neonazistas marcharam em Charlotesville protegidos por uma ordem judicial. Não foi o primeiro caso na história do Judiciário americano. Entre os anos 1920 e 1970, a Suprema Corte dos Estados Unidos, em meio a uma renhida disputa nas ruas e nos tribunais, construiu a mais ampla doutrina judicial de proteção à liberdade de expressão entre as democracias modernas, com base na Primeira Emenda à Constituição do país:
O Congresso não fará nenhuma lei (...) que limite a liberdade de expressão [freedom of speech] ou de imprensa
A princípio, qualquer expressão de uma ideia política, articulada como discurso — seja liberal, comunista, conservador ou até nazista — e mesmo a difamação de personalidades públicas gozam do mais alto grau de proteção. As chamadas “condutas expressivas”, como a queima de bandeiras do país em protestos, marchas silenciosas e códigos de computador, também são, como regra, protegidas da mesma forma.
Liberdade de Expressão
No caso Terminiello vs. Chicago (1949), a Suprema Corte reverteu a condenação de um padre católico por violação da paz pública. Enquanto o padre Arthur Terminiello discursava para um auditório de mais de oitocentas pessoas na Associação dos Veteranos Cristãos da América, criticando grupos raciais e negros, uma multidão protestava do lado de fora. Apesar dos esforços da polícia, o evento terminou em tumulto. Terminiello foi condenado pelo júri por “fomentar ódio no público, criar condições para um tumulto e produzir desordem”. Mas a Suprema Corte considerou que o padre estava protegido pela Primeira Emenda.
Nas instâncias inferiores, o discurso de Terminiello foi classificado como “palavra de guerra”. A decisão tinha fundamentos. Desde o julgamento de Chaplinsky vs. New Hampshire (1942), a Suprema Corte considerava que as palavras de guerra – entendidas como aquelas que, pelo próprio pronunciamento, infligem injúria ou tendem a incitar uma imediata violação da paz pública – estavam fora do escopo da liberdade de expressão. Para a Suprema Corte, esse tipo de manifestação “tem tão pouco valor social como um passo em direção à verdade que qualquer benefício que possa surgir dela é claramente sobrepujada pelo interesse social na ordem e na moralidade”.
Mas o juiz Douglas, escrevendo pela maioria, discordou desse veredito no caso de Terminiello, enfatizando que nem todo discurso que provoque o ódio nas pessoas pode ser visto, somente por isso, como palavra de guerra. “Uma função da liberdade de expressão em nosso sistema de governo é convidar à discordância. Ela pode, inclusive, servir melhor a seu nobre propósito quando induz à inquietação, cria insatisfação com as condições como estão postas, ou mesmo fomenta o ódio nas pessoas. Discursos são, muitas vezes, provocativos e desafiadores. Eles podem atingir preconceitos e preconcepções e ter efeitos perturbadores profundos enquanto impelem a aceitação de uma ideia”, escreveu Douglas.
Não por acaso, juntamente ao juiz Black, Douglas é considerado, por alguns estudiosos, um “absolutista” da liberdade de expressão. De acordo com essa posição, o texto da Primeira Emenda deveria ser lido literalmente, o que não deixaria nenhum espaço para os governos estaduais ou federal criarem leis limitando a liberdade de expressão em qualquer grau.
O julgamento de Brandenbug vs. Ohio (1969) revolucionou a proteção à liberdade de expressão nos Estados Unidos e, por tabela, tem protegido revolucionários de todos os matizes ideológicos desde então. Tudo começou em 1964, quando Clarence Brandenburg, líder da Ku Klux Klan (KKK) de Ohio, convidou um repórter de televisão para cobrir um evento do clã. Nas imagens filmadas, o radical aparece clamando por vingança contra judeus e negros e conclamando uma grande marcha contra o governo em Washington, a ocorrer no Quatro de Julho. Brandenburg disse que “o Presidente, o Congresso e a Suprema Corte continuam a oprimir a raça branca caucasiana”.
O líder da KKK foi condenado a dez anos de prisão com base na lei do sindicalismo criminoso de Ohio por “defender o dever, a necessidade ou a justeza de crime, sabotagem, violência ou métodos ilegais de terrorismo com um meio de alcançar a reforma política ou econômica” e por “reunir-se voluntariamente com qualquer sociedade, grupo ou reunião de pessoas para ensinar ou defender as doutrinas do sindicalismo criminoso”.
O caso foi parar na Suprema Corte, que reverteu a condenação e declarou que “as liberdades de expressão e de imprensa não permitem que o Estado proíba a defesa do uso da força e da violação ao direito, exceto se essa defesa for orientada a incitar ou produzir uma ação ilegal iminente e seja provável que incite ou produza essa ação”. A adoção do teste da ação ilegal iminente deu um passo além do teste do perigo claro e presente, formulado pelo lendário juiz Holmes no julgamento de Schenck vs. United States (1919) e progressivamente alargado a partir dos anos 1920.
Foi no julgamento de Schenck que Holmes formulou sua defesa da liberdade de expressão com base no livre mercado de ideias, que se tornou muito influente no liberalismo americano:
“Quando as pessoas percebem que o tempo contrariou muitas fés combativas, elas passam a acreditar, ainda mais do que nos fundamentos de suas próprias condutas, que o melhor caminho para o bem fundamental que todos almejam é o livre comércio das ideias — que o melhor teste para a verdade é o poder que o pensamento tem de acabar sendo aceito no mercado das ideias”
A decisão a favor de Brandenbug também enterrou de vez o teste da tendência deletéria, que os Estados Unidos haviam herdado do direito comum inglês e que as cortes aplicavam desde o século XVIII. De acordo com essa visão, qualquer discurso que tenha a mera tendência de gerar graves danos não estaria protegido pela garantia constitucional à liberdade de expressão.
Os nazistas são velhos conhecidos dos tribunais americanos. Em 1977, o partido nazista da América queria protestar em Chicago, usando seus uniformes com a suástica, pedindo liberdade de expressão para os homens brancos. Quando a cidade de Chicago pediu um seguro alto contra vandalismo, os nazistas decidiram marchar em Skokie, uma pequena vila onde moravam muitos judeus, alguns até sobreviventes de campos de concentração. Um tribunal ordenou que os homens marchassem sem exibir a suástica ou distribuir panfletos incitando o ódio contra judeus.
Quando a Suprema Corte do estado de Illinois decidiu não suspender a ordem do tribunal inferior antes de julgar a apelação, o partido nazista recorreu à Suprema Corte dos Estados Unidos. As questões processuais dominaram o debate do caso Partido Nacional Socialista da América vs. Vila de Skokie (1977). A Suprema Corte considerou que diante da importância da liberdade de expressão, o tribunal de Illinois deveria ou julgar a apelação imediatamente, ou suspender os efeitos da proibição.
Depois do pronunciamento da Suprema Corte, os nazistas foram autorizados a se manifestar, mas sem exibir a suástica nas roupas ou nos estandartes. Mas, entre idas e vindas, a Suprema Corte de Illinois acabou decidindo que a exibição da suástica não enquadrava como “palavra de guerra”. Em Cohen vs. California (1971), a Suprema Corte tinha atualizado a definição de palavras de guerra como “aqueles epítetos pessoalmente abusivos que, quando direcionados ao cidadão comum, são, na medida do senso comum, inerentemente prováveis de provocar reação violenta”.
O tribunal de Illinois afirmou que, embora “não duvide de que a visão desse símbolo [a suástica] seja horrível para os cidadãos judeus de Skokie e de que os sobreviventes das perseguições nazistas, atormentados por suas memórias, possam ter sentimentos fortes em relação à sua exibição”, isso não justificaria afastar a poderosa presunção a favor da liberdade de expressão contra a censura prévia. “Isso é ainda mais verdade quando os organizadores do protesto tenham avisado de antemão, como neste caso, sobre seu plano, de modo que ele se tornou [...] de conhecimento comum e as pessoas para quem a visão da suástica em estandartes ou uniformes seria ofensiva estão de sobreaviso e não precisam olhar para ela”, acrescentou o tribunal.
Outra demonstração de quem nem só as palavras estão protegidas pela Primeira Emenda é o julgamento de R.A.V. vs. Cidade de Saint Paul (1992). O caso chegou à Suprema Corte depois da condenação de um menor de idade que queimou uma cruz no jardim de uma família de negros na cidade de St. Paul, em Minnesota. O símbolo é historicamente ligado à violência da Ku Klux Klan e, por isso, R.A.V. foi condenado com base em uma lei de Minnesota que criminalizava a exibição de símbolos que pudessem “gerar ódio, alarme ou ressentimento nos outros, com base na raça, cor, crença, religião ou gênero”.
O juiz Scalia, escrevendo pela maioria da Suprema Corte, afirmou que a lei era “claramente inconstitucional porque impõe proibições especiais nos falantes que expressam visões sobre os sujeitos desestimados por ‘raça, cor, crença, religião ou gênero’. Ao mesmo tempo, ela permite símbolos que contenham injúria abusiva se eles não se referirem a esses tópicos”.
Nesse caso, que na prática confirmou a proteção aos discursos de ódio nos Estados Unidos, a Suprema Corte reafirmou que certas modalidades de discurso, como obscenidades, as palavras de guerra, e a difamação, podem ser restringidas, mas apenas se essa restrição não tiver como fundamento o conteúdo desses discursos.
Em 2011, a Suprema Corte decidiu que nem os mortos têm sossego. No julgamento de Snyder vs. Phelps (2011), o tribunal considerou que fazer piquetes em funerais, respeitadas as regras procedimentais estabelecidas pelas autoridades públicas, é uma forma de expressão protegida pela Primeira Emenda.
O caso chegou à Suprema Corte depois que membros da Igreja Batista de Westboro foram protestar no funeral de um soldado americano morto no Iraque. Os membros da igreja carregavam cartazes dizendo “Agradeça a Deus pelos soldados mortos”, “As bichas arruínam a nação”, “A América está perdida”, “Padres estupram garotos” e “Vocês vão para o inferno”. Desde a década de 1990, a igreja de Westboro protesta contra o governo e a Igreja Católica por supostamente tolerarem demais a homossexualidade nos Estados Unidos.
O pai do soldado morto processou a igreja e seus membros, alegando danos morais, mas a Suprema Corte considerou que a expressão dos fieis era de interesse público, e não privado. Matérias de interesse público ocupam o mais elevado degrau de proteção constitucional no direito americano. A corte ponderou que “embora as fronteiras entre o que constitui expressão em matéria de interesse público não sejam bem definidas, esta corte já disse que a expressão é de interesse público quando ela pode está relacionada a qualquer assunto de interesse político, social ou comunitário”.
Discurso de ódio
Seguindo a decisão de R.A.V. vs. Saint Paul (1992), a Suprema Corte da Virginia absolveu, em 2002, réus que tinham sido condenados por queimar uma cruz com base em uma lei que proibia que isso fosse feito em locais públicos com a intenção de intimidar uma pessoa ou um grupo. O tribunal da Virginia argumentou que a lei do estado era “analiticamente indistinguível da lei declarada inconstitucional em R.A.V. vs. Saint Paul” e que “ela discrimina com base no conteúdo e no ponto de vista, já que ela escolhe, seletivamente, apenas a queima de cruzes, em razão de sua mensagem particular”.
Quando o caso chegou à Suprema Corte, veio a surpresa. No julgamento de Virginia vs. Black (2003), o tribunal até manteve a absolvição dos acusados, porque considerou inconstitucional uma parte da lei que presumia a intimidação em toda queima de cruzes, mas afirmou que a conduta pode ser proibida ser for pura ameaça – que são atos “pelos quais o falante tenciona a comunicar a expressão séria de uma intenção de cometer um ato de violência ilegal contra um indivíduo ou um grupo”.
A juíza Sandra O´Connor, escrevendo pela maioria da corte, afirmou que quem faz a ameaça “não precisa de fato ter a intenção de levar a cabo [essa] ameaça. Ao contrário, a proibição de puras ameaças ‘protege os indivíduos do medo da violência’ e ‘do rebentamento que o medo engendra’, além de proteger as pessoas ‘da possiblidade de que a violência ameaçada ocorra’”.
Ao rechaçar a presunção genérica de ameaça, porém, O´Connor ponderou que “o dispositivo acerca da evidência prima facie ignora todos os fatores contextuais necessários para decidir se uma cruz em chamas tem, particularmente, a intenção de intimidar. A Primeira Emenda não permite esse tipo de atalho”. O tribunal também considerou que é preciso diferenciar das puras ameaças as meras “hipérboles políticas”, próprias do discurso público esquentado e, assim, protegidas pela Primeira Emenda.
O julgamento de Beauharnais vs. Illinois (1952) é visto por muitos estudiosos como um ponto fora da curva na enorme proteção à liberdade de expressão nos Estados Unidos. Nesse caso, a Suprema Corte manteve a condenação de Joseph Beauharnais por difamação contra negros. Em janeiro de 1950, o réu, que era presidente da White Circle League of America em Chicago, distribuiu panfletos que conclamavam o prefeito a “frear a usurpação, a perseguição e a invasão de pessoas brancas, de suas propriedades, vizinhanças e pessoas por negros”. O panfleto dizia ainda que “se a persuasão e a necessidade de prevenir a raça branca de misturar-se com a raça negra não nos unir, então as agressões [...], estupros, roubos, facas, armas e a maconha dos negros certamente nos unirão”.
Beauharnais foi condenado por uma lei de Illinois que proibia a distribuição de material que “retrat[asse] depravação, criminalidade, falta de castidade ou virtude dos cidadãos da raça negra e de cor [e] exp[usesse] os cidadãos de raça negra ou de cor de Illinois a desprezo, escárnio ou descrédito”. A defesa do réu alegou que a lei de Illinois era muito vaga e que, para haver condenação, o material deveria produzir um perigo claro e iminente, mas o tribunal local negou o pedido e Beauharnaiss acabou condenado pelo júri.
A Suprema Corte manteve a condenação, pois considerou que a lei de Illinois era “especificamente direcionada a um mal bem definido” e que “sua linguagem baseava-se na história e na prática de Illinois”, onde muitos tumultos e crimes, inclusive o assassinato de lideranças negras, tinham ocorrido em virtude de informações falsas e difamatórias. Embora Beauharnais vs. Chicago nunca tenha sido revogado – o que deixaria algum espaço para os estados criarem leis específicas e bem delimitadas para frear a difamação de grupos de pessoas e, assim, o discurso de ódio –, a jurisprudência mais recente da Suprema Corte dificulta muito sua aplicação.
No julgamento do divisor de águas New York Times vs. Sullivan (1964), a corte considerou que as leis de difamação estão sujeitas aos parâmetros da Primeira Emenda; em Brandenburg vs. Ohio (1969), o tribunal decidiu que mesmo a incitação de conteúdo racista à violência só poderia ser punida em caso de violência iminente; finalmente, em R.A.V. vs. St. Paul (1992), o tribunal reafirmou que o discurso de ódio não pode ser restringido exclusivamente por seu conteúdo, atingindo apenas alguns grupos. Trocando em miudos, uma cruz em chamas poderia ser proibida não porque é um símbolo da KKK, mas pelo risco de provocar um incêndio.
Todas as citações são traduções livres do inglês feitas pelo autor da reportagem
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