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| Foto: GRIZAR JUNIOR / FUTURA PRESSGAZETA

Sempre envolta em polêmicas, a progressão de regime no cumprimento das penas é a regra prevista pela lei brasileira. Esta semana não foi diferente. Na segunda-feira (17), Anna Carolina Jatobá, condenada a 26 anos e oito meses de prisão pelo assassinato da enteada, Isabella Nardoni, conseguiu a autorização judicial para migrar para o regime semi-aberto depois de cumprir nove anos da condenação. A comoção gerada pela decisão traz à tona uma tensão tão antiga quanto persistente entre as finalidades das penas. Afinal, o que esperamos de uma condenação criminal? 

O Código Penal brasileiro prevê três regimes de cumprimento de pena privativa de liberdade: o fechado, o semiaberto e o aberto. Quem for condenado a mais de oito anos, deve começar no regime fechado. Quem não for reincidente e for condenado a uma pena entre quatro e oito anos, pode começar em regime semiaberto; se for condenado a menos de quatro anos, em regime aberto. Nesse dois casos, observando o artigo 59 do Código, o juiz pode considerar uma série de fatores na hora de determinar o regime inicial:

Art. 59. O juiz, atendendo à culpabilidade, aos antecedentes, à conduta social, à personalidade do agente, aos motivos, às circunstâncias e consequências do crime, bem como ao comportamento da vítima, estabelecerá, conforme seja necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime. 

A Lei 7.210/1994, chamada Lei de Execução Penal (LEP), que traz as regras que se aplicam aos criminosos já condenados, determina que as penas no Brasil devem ser cumpridas no regime progressivo, ou seja: alguém condenado em regime fechado deve, em tese, passar pelo semiaberto e pelo aberto antes de estar livre das consequências do seu crime e poder voltar ao pleno convívio social. O artigo 112 dessa lei prevê que essa progressão entre regimes se dá com o cumprimento de um sexto (1/6) da pena – e se o condenado tiver bom comportamento no cárcere. Segundo o Código Penal, deveria ainda haver diferentes tipos de estabelecimentos para receber presos em diferentes etapas da progressão do regime. 

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Mas nem todo preso que cumpre um sexto da pena tem direito à progressão. É o caso dos condenados por crimes hediondos, como Anna Carolina, que foi condenada por homicídio qualificado em 2008. A Lei 8.072/1990 prevê que os condenados por essa modalidade sempre começam a cumprir a pena no regime fechado e só podem progredir de regime depois de cumprir dois quintos (2/5) da pena. Inicialmente, a lei previa o cumprimento integral da pena em regime fechado, mas o Supremo Tribunal Federal (STF) considerou a previsão inconstitucional, em 2006, por ferir a necessidade de individualização da pena. Uma lei de 2007 criou então as regras atuais. 

No julgamento de 2006, o STF considerou que “o princípio da individualização da pena compreende: a) proporcionalidade entre o crime praticado e a sanção abstratamente cominada no preceito secundário da norma penal; b) individualização da pena aplicada em conformidade com o ato singular praticado por agente em concreto (dosimetria da pena); c) individualização da sua execução, segundo a dignidade humana (art. 1º, III), o comportamento do condenado no cumprimento da pena (no cárcere ou fora dele, no caso das demais penas que não a privativa de liberdade) e à vista do delito cometido (art. 5º, XLVIII)”

Remissão

Anna Carolina já alcançou esse patamar de dois quintos da pena, porque trabalhou como costureira no presídio de Tremembé, o que lhe rende um desconto no tempo que deve cumprir. De acordo com o artigo 127 da LEP, cada três dias de trabalho diminuem um dia da pena. Quem estuda também tem direito à chamada remissão: cada 12 horas de estudo abatem um dia de pena. 

A Recomendação 44 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) incentiva que os estabelecimentos prisionais, especialmente os que não oferecem oportunidades de trabalho e de estudo, elaborem projetos de leitura para os detentos. Segundo a norma, cada preso deve ter o prazo de 22 a 30 dias para ler um livro. A cada obra lida, são descontados quatro dias de pena, no limite máximo de 48 dias por ano. 

Saídas temporárias

Com o acesso ao semiaberto, Anna Carolina também ganha o direito às saídas temporárias, previstas pelo artigo 122 da Lei de Execução Penal. No estado de São Paulo, são cinco saídas por ano, que podem durar até sete dias corridos: a saída de Natal e Ano Novo; na Páscoa; no Dia das Mães; no Dia dos Pais; e em Finados. Suzane von Richthofen, condenada a 39 anos pela morte dos pais, já usufrui desses direitos por estar no regime semiaberto desde 2016.

A lei garante que, nas saídas temporárias, o preso não terá vigilância direta, como escolta ou guardas armados, mas permite que o juiz peça a instalação de “equipamento de monitoração eletrônica”, como as tornozeleiras.

Laudo criminológico

Além do bom comportamento confirmado pelo diretor do presídio, Anna Carolina Jatobá foi submetida a uma perícia técnica, o chamado laudo criminológico, que atestou suas condições psicológicas de ter acesso ao semiaberto. Em 2003, com a reforma da LEP pela Lei 10.792, esse laudo deixou de constar entre os requisitos obrigatórios para a progressão de regime e, por isso, o STF e o Superior Tribunal de Justiça (STJ) têm entendido que sua realização fica a critério do juiz de Execução Penal. 

Além disso, a Súmula Vinculante 26 do STF proíbe que os juízes neguem a progressão de regime, em casos de crimes hediondos, apelando apenas para a gravidade genérica desse tipo de delito. Os tribunais superiores têm entendido que a falta de laudo, nesses casos, não pode impedir, por si só, a progressão. Diversos projetos de lei, como o PLS 499/2015, aprovado em maio na CCJ do Senado, almejam trazer de volta a obrigatoriedade do laudo criminológico como requisito da progressão de regime. 

Entenda 

O advogado Jovacy Peter Filho explica que o sistema penal brasileiro vê três finalidades nas penas. “Existe a retribuição: o mal do crime deve ser pago com o mal da pena, que é a segregação. Existe a prevenção geral: a pena deve servir como exemplo para todos, para evitar o cometimento de crimes. E existe a prevenção especial, destinada a evitar que o criminoso volte a delinquir”, explica o advogado. “O que se entende é que a finalidade de prevenção especial é atendida no momento em que, durante o cumprimento da pena, o infrator já tenha os canais de diálogo com a sociedade para onde ele vai retornar”, completa. A ideia é que os condenados possam voltar a ter condições de viver em sociedade sem recorrer ao crime quando cumprirem sua pena.

Casos que envolvem presos polêmicos – como a própria Ana Carolina Jatobá ou Suzane Von Richthofen– acabam por trazer à tona uma demanda que alguns setores da sociedade já têm: acabar com o regime semiaberto no Brasil. O Movimento Brasil Livre (MBL), por exemplo, declarou apoio, no mês passado, ao Projeto de Lei (PL) 3.174/2015, que extingue o regime semiaberto no país. Pela proposta, todos os condenados a penas maiores que quatro anos começariam a cumpri-las no regime fechado e, depois de dois terços (2/3) do tempo, passariam direto para o regime aberto. A proposta, entretanto, vem sendo criticada por estudiosos, que veem a necessidade do semiaberto para garantir o preparo paulatino do preso na volta à vida fora da cadeia. 

Peter Filho também destaca que o principal problema do sistema brasileiro não é a progressão de regime em si, mas a falta de investimentos. “A sociedade não vê investimento em presídio, porque são investimentos de longo prazo e acabam não valendo como capital eleitoral”, diz. “Faltam estabelecimentos adequados para o regime semiaberto. Praticamente não há vagas no regime aberto. Presídio é infraestrutura do sistema de segurança pública; é preciso investir em material humano e em infraestrutura, além de fornecer os instrumentos necessários para que a mão de obra carcerária possa cumprir suas funções”, afirma. 

Supremo

O STF chegou a editar a Súmula Vinculante 56 para lidar com esse problema: “A falta de estabelecimento penal adequado não autoriza a manutenção do condenado em regime prisional mais gravoso”, diz o texto do tribunal. A determinação da súmula é que “não deverá haver alojamento conjunto de presos dos regimes semiaberto e aberto com presos do regime fechado. Havendo déficit de vagas, deverão ser determinados: (i) a saída antecipada de sentenciado no regime com falta de vagas; (ii) a liberdade eletronicamente monitorada ao sentenciado que sai antecipadamente ou é posto em prisão domiciliar por falta de vagas; (iii) o cumprimento de penas restritivas de direito e/ou estudo ao sentenciado que progride ao regime aberto”. 

Porém, segundo Peter Filho, a ordem do STF vem sendo descumprida. “Na prática, os juízes de Execução não obedecem a súmula do STF”, afirma. “O que me parece é que há um discurso, especialmente depois da ADPF 347, que declarou o sistema prisional brasileiro um ‘estado de coisas inconstitucional’, mas na prática tudo continua da mesma forma. É preciso construir uma cultura de respeito à legislação e abrir a sociedade para fiscalizar e contribuir com a segurança pública”, avalia o advogado. 

Ao mesmo tempo causa e consequência da calamidade do sistema prisional brasileiro, a tensão entre o sistema progressivo e o desejo de justiça da sociedade exaspera os ânimos a cada notícia sobre o tema. “Essa tensão não se resolve facilmente. No caso de um homicídio, a retribuição perfeita seria a pena de morte. Mas, no Brasil, a Constituição proíbe a pena de morte, porque não há evidências internacionais de que, do ponto de vista político-criminal, essa pena é eficaz”, diz Peter Filho. “Então, do ponto de vista prevenção especial, não é o tempo de segregação que vai compensar [o mal do crime], mas a qualidade da pena: a celeridade entre a data do fato e o efetivo cumprimento da pena e a efetividade dessa pena para reduzir a sensação de impunidade”, conclui.

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