Desde que o Santander Cultural anunciou, no último dia 10, o encerramento prematuro da mostra Queermuseu, que estava aberta ao público desde o dia 15 de agosto e ficaria em cartaz até o dia 8 de outubro, o país mergulhou em uma disputa política e judicial ainda sem data para acabar. Em pouco mais de uma semana, foram dois quadros retirados de exposições, uma liminar suspendendo uma peça de teatro e outra mantendo a mesma peça em cartaz e sucessivas tentativas de reabrir a mostra encerrada. No centro da polêmica, as fronteiras tênues entre liberdade artística, nudez e pornografia, proteção das crianças, apologia a crime e o crime de ultraje a culto.
Em 2014, o Supremo Tribunal Federal (STF) teve a oportunidade de analisar um caso que poderia orientar a jurisprudência brasileira nesses temas, mas lavou as mãos ao recusar-se a apreciar o Agravo em Recurso Extraordinário em Agravo (ARE) 790.813, por não ter visto repercussão geral na matéria. A controvérsia que chegou ao Supremo surgiu da publicação, em 2008, de um ensaio da Revista Playboy com a atriz Carol Castro. O Instituto Juventude Pela Vida acionou a Justiça pedindo que a edição de agosto daquele ano fosse impedida de circular. Uma das fotos mostrava a atriz nua, segurando um terço na mão direita, cujo crucifixo roçava os seios.
Opinião da Gazeta: O Queermuseu e a liberdade artística
O Instituto alegava ofensa ao sentimento religioso, com base no inciso VI do artigo 5º da Constituição, e ao artigo 208 do Código Penal, que proíbe “vilipendiar publicamente ato ou objeto de culto religioso”, entre outras condutas. A primeira instância atendeu parcialmente o pedido e ordenou que as revistas que ainda não estivessem nas bancas fossem impedidas de circular.
Art. 208 - Escarnecer de alguém publicamente, por motivo de crença ou função religiosa; impedir ou perturbar cerimônia ou prática de culto religioso; vilipendiar publicamente ato ou objeto de culto religioso: Pena - detenção, de um mês a um ano, ou multa.
O Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) reverteu a decisão e o Instituto acionou o Supremo. A Editora Abril afirmou ao tribunal que a fotografia era “uma verdadeira manifestação de arte” e que estava “dentro dos valores constitucionais permitidos no Estado Democrático de Direito”. A editora defendeu também que não se tratava de pornografia, mas de atividade de imprensa e invocou a autonomia e o discernimento do público adulto, alvo da revista.
O relator do recurso no STF, ministro Marco Aurélio, enxergou o conflito: “os recorrentes alegam que atividades pornográficas não se confundem com imprensa e que a associação do rosário a imagem erótica revela abuso da liberdade de expressão e ofensa ao sentimento religioso”, escreveu em seu voto. Haveria um limite para a nudez e o conteúdo sexual explícito serem protegidos pela liberdade de expressão e de imprensa? Quais as balizas para a aplicação do artigo 208 do Código Penal, que criminaliza o ultraje a culto? Existe algum critério para diferenciar a exposição de uma situação criminosa e a apologia ao crime? São perguntas cujas respostas o STF perdeu a oportunidade de pacificar.
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“Presente conflito entre direitos fundamentais, compete ao Supremo definir, com vista à orientação de casos futuros, o equilíbrio adequado entre bens tão caros à Constituição e à sociedade brasileira como o são as liberdades religiosa e de expressão artística”, escreveu ainda o ministro relator da matéria. No entanto, apenas o ministro Luiz Fux votou com Marco Aurélio: os demais recusaram-se a apreciar o ARE 790.813, negando-lhe repercussão geral.
Queermuseu
O objetivo do ministro Marco Aurélio de buscar uma “orientação de casos futuros” soa premonitória diante da disputa que se acendeu desde o fechamento da mostra Queermuseu em Porto Alegre, após protestos de religiosos, encampados posteriormente pelo Movimento Brasil Livre (MBL). Nesta segunda-feira (18), o Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4), negou um pedido liminar para reabrir a exposição, confirmando uma decisão da primeira instância.
A ação, movida por um morador de Pelotas, alegava risco de prejuízo aos cofres públicos e falta de fundamentação constitucional do fechamento da mostra, pois teria sido motivado “por um discurso preconceituoso e obscurantista”. O juiz relator do caso no TRF-4 não viu risco de dano para as obras e argumentou que a Justiça avaliar os motivos que levaram o Santander a fechar a exposição seria uma ingerência indevida do Estado na gestão de uma instituição privada.
A Queermuseu está fechada desde o dia 10. Os críticos da exposição, que começaram a se movimentar na internet, apontavam que algumas representações, dentre as 270 obras que compunham a mostra, faziam apologia da “pedofilia” e da “zoofilia”. Apontaram também crime de ultraje a culto nas hóstias em que havia a inscrição de palavras mundanas e reclamaram do desrespeito a imagens religiosas. O fato de a mostra ter recebido a visita de crianças e captado mais de R$ 800 mil em isenções fiscais pela Lei Rouanet também botou lenha na fogueira.
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O Santander recuou diante da pressão, prometeu devolver os recursos públicos e afirmou em nota, ainda no dia 10: “entendemos que algumas das obras da exposição Queermuseu desrespeitavam símbolos, crenças e pessoas, o que não está em linha com a nossa visão de mundo. Quando a arte não é capaz de gerar inclusão e reflexão positiva, perde seu propósito maior, que é elevar a condição humana”.
O presidente do banco, Sérgio Rial, não contemporizou: “As críticas já não se centram, como se viu nas redes sociais, só na ação de alguns grupos intolerantes e deturpadores da informação, que desqualificavam a exposição. Os ataques têm enfoque na censura — ‘como não se via desde a ditadura’, para os mais fervorosos”, escreveu em comunicado interno aos funcionários da instituição.
Na sexta-feira (15), os procuradores do Ministério Público do Rio Grande do Sul (MP-RS) Alexandre Lipp e Sílvio Munhoz divulgaram uma nota afirmando que “a exposição tinha o nítido propósito de erotizar o público alvo e induzi-lo a tolerar condutas como orgias, zoofilia e vilipêndio a símbolos religiosos”. Ambos visitaram a exposição no dia anterior, mas não estão a cargo da investigação no MP. Eles criticaram o fato de a exposição não ter uma classificação indicativa adequada.
De acordo com a assessoria de imprensa do MP-RS, o promotor de Justiça Júlio Almeida, da Infância e da Juventude de Porto Alegre, instaurou expediente para apurar eventual violação das normas de proteção à Infância e à juventude. O promotor não iniciou investigação criminal porque não viu, nas obras, indício de crime de pedofilia, mas nada foi dito sobre o crime de ultraje a culto.
A promotoria recomendou ainda que seja criado espaço nas exposições ao qual crianças e adolescentes não possam ter acesso sem os responsáveis legais, se houver obras com cenas de sexo explícito ou pornografia.
Jesus, Rainha do Céu
Parte da polêmica em torno da Queermuseu foi saber se um boicote organizado pela sociedade civil, e de certa forma acatado por uma organização privada, seria censura ou não. Mas, na sexta-feira (15), enquanto a discussão ainda fervia, o braço do estado se fez presente em Jundiaí, no interior de São Paulo.
O juiz Luiz Antonio de Campos Júnior concedeu uma decisão liminar para suspender a exibição da peça “O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu”, em exibição no SESC Jundiaí. De acordo com o juiz, uma advogada entrou com a ação argumentando que a exibição “vai de encontra à dignidade cristão, posto apresentar JESUS CRISTO como um transgênero, expondo ao ridículo os símbolos como a cruz e a religiosidade que ela representa” [destaque no original].
O juiz aceitou o argumento para conceder a tutela de urgência, dizendo que não se pode expor figuras religiosas e sagradas ao ridículo e que a peça é de “indiscutível mau gosto”. “De fato, não se olvide da crença religiosa em nosso Estado, que tem JESUS CRISTO como o filho de DEUS, e em se permitindo uma peça em que este HOMEM SAGRADO seja encenado como um travesti, a toda evidência, caracteriza-se ofensa a um sem número de pessoas” [destaques no original], escreveu ainda.
O magistrado escreve que levou em conta a liberdade de expressão, mas que ela “não se confunde com agressão e falta de respeito”. “Não se pode admitir a exibição de uma peça com um baixíssimo nível intelectual que chega até mesmo a invadir a existência do senso comum, que deve sempre permear por toda a sociedade”, escreveu na liminar.
O juiz José Antonio Coitinho, de Porto Alegre, não poderia discordar mais. Nesta segunda-feira (19), Coitinho negou um pedido de liminar contra a mesma peça, que está programada para ser exibida na cidade. O advogado Pedro Geraldo Cancian Lagomarcino Gomes acionou a Justiça alegando ultraje a culto e discriminação religiosa.
“Não há falar em agressão à cultura ou à formação do caráter de quem quer que seja. No popular, diríamos, irá quem quiser ver. E, sem citar um único artigo de lei, vamos garantir a liberdade de expressão dos homens, das mulheres, da dramaturga transgênero e da travesti atriz, pelo mais simples e verdadeiro motivo: porque somos todos iguais. Je suis Charlie”, escreveu o magistrado na sentença, fazendo referência ao caso dos jornalistas da revista Charlie Hebdo, assassinados por radicais islâmicos em janeiro de 2015. A peça entra em cartaz na cidade nesta sexta-feira, dia 21.
Mundo Canibal
Nem só conservadores e religiosos acionam a Justiça contra manifestações culturais. Nesta segunda-feira (18), o juiz Guilher Madeira Dezem, da 44ª Vara Cível de São Paulo, negou um pedido da Defensoria Pública de São Paulo para que se removesse da internet conteúdo produzido por um canal de humor por supostamente ter “conteúdo ofensivo” que atacaria frontalmente “os direitos de minorias, a saber: população LGBT, mulheres, criança e adolescentes”. A defensoria também pedia indenização por danos morais coletivos.
Dezem reconheceu que “a liberdade de expressão deve ser exercida de maneira harmônica com os demais valores constitucionais de igual estatura” e que “a liberdade de expressão não permite manifestações de conteúdo imoral que configurem ilícito penal”, mas afirmou que não viu, nos vídeos, o cometimento de crimes, nem meso de apologia à violência.
“É de se notar que, por mais desprezíveis que as mensagens veiculadas pelos réus possam parecer (e a meu juízo são desprezíveis), não se tem a caracterização de ilícito penal a justificar a intervenção estatal”, afirmou o magistrado. “Neste caso estão em uma linha limítrofe”, ponderou ainda, referindo-se à possível ilicitude presente no conteúdo “e, nesta linha, tenho por princípio que, na dúvida, deve prevalecer a liberdade de expressão”.
Cadafalso
Na quinta-feira (14), o braço do estado se fez sentir também, mesmo sem qualquer decisão judicial. Policiais foram até o Museu de Arte Contemporânea do Mato Grosso do Sul, em Cuiabá, após três deputados estaduais registrarem boletim de ocorrência, e apreenderam o quadro “Pedofilia”, da artista mineira Alessandra Cunha, que estava exposto na exposição Cadafalso. “Ao ver as imagens da exposição vimos a gravidade de que isso poderia representar contra aquilo que a gente defende, que é a família, a moral e os bons costumes, a defesa das crianças. Entendemos que aquelas gravuras representavam uma apologia à pedofilia”, declaram os deputados.
Ao site Campo Grande News, a artista declarou que o quadro não faz apologia da pedofilia, mas um “protesto para alertar o que acontece”. “É uma coisa que é tão tabu que não pode nem usar a palavra que incriminam", disse. O secretário de cultura do estado, Athayde Nery, considerou o ato da polícia uma forma de censura. “Qualquer obra passa pelo crivo de uma curadoria e neste caso três especialistas avaliaram a exibição. As obras estavam em uma sala do museu, havia indicação de limite de idade mínima de 12 anos e os estudantes que passaram por lá eram sempre acompanhados pelos professores”, declarou.
Segundo o portal G1, a obra voltou para exposição depois de um acordo com a polícia para que fosse respeitada a classificação etária de 18 anos.
Crack is Wack
Nesta terça-feira (19), uma obra do artista Gervani de Paula foi retirada de uma exposição em um Shopping em Cuiabá, por decisão da administração do estabelecimento, depois de uma frequentadora gravar e divulgar um vídeo dizendo que a obra era imprópria para famílias e crianças.
A obra retrata duas pessoas fumando crack, com uma inscrição em inglês “Crack is Wack” que, em tradução livre, significa “Crack é Ruim”. Ao portal G1, o artista declarou que a obra não faz apologia do consumo de drogas. “É uma droga terrível e nos assistimos o terror que ela causa todos os dias. A pessoa que reclamou não percebeu a forte referência que a obra faz ao tema, ficou mais interessada em outros pontos da tela”, disse.