Ilustração: Felipe Lima/Gazeta do Povo| Foto:

O Brasil possui a terceira maior população carcerária do mundo. O sistema Geopresídios, mantido pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), aponta que atualmente há 702 mil pessoas privadas de liberdade no país. O número de vagas, no entanto, não chega a 400 mil, de acordo com o relatório mais recente do Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen), do Ministério da Justiça, divulgado no fim de 2017. O número, entretanto, poderia ser consideravelmente menor se uma importante aliada dos tribunais fosse melhor utilizada: a audiência de custódia.

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O CNJ determina, por meio da Resolução 213/2015, que todo sujeito preso em flagrante – quando o indivíduo está cometendo ou acabou de cometer o crime – deve ser levado à presença de uma autoridade judicial em até 24 horas. Essa audiência tem a finalidade de avaliar se a prisão foi legal e se ela precisa ser convertida em prisão preventiva ou se a pessoa pode responder ao processo em liberdade. Nesse momento, não se analisa o crime em si, apenas a detenção.

“É uma espécie de controle judicial para a prisão em flagrante, a fim de evitar ilegalidades, como, por exemplo, um flagrante forjado, com abuso ou tortura, ou a prisão de um indivíduo por um crime do qual ele sequer participou. Mas mesmo se o flagrante for lícito o juiz precisa dizer se essa pessoa deve ou não deve responder em liberdade”, explica João Paulo Martinelli, advogado criminalista e professor de Direito Penal.

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O que é importante salientar é que não existe lei federal que regulamente a audiência de custódia, há, somente, a resolução do CNJ. O texto foi elaborado levando em consideração a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, conhecida também como Pacto de San José da Costa Rica, estabelecida em 1969 e recepcionada pelo Brasil por meio do Decreto 678/1992. O documento prevê, dentre outras diretrizes, que:

Toda pessoa detida ou retida deve ser conduzida, sem demora, à presença de um juiz ou outra autoridade autorizada pela lei a exercer funções judiciais e tem direito a ser julgada dentro de um prazo razoável ou a ser posta em liberdade, sem prejuízo de que prossiga o processo.  Sua liberdade pode ser condicionada a garantias que assegurem o seu comparecimento em juízo.

Embora a Convenção não fale em prazo, o CNJ estabelece que “toda pessoa presa em flagrante delito, independentemente da motivação ou natureza do ato” deve ser “obrigatoriamente apresentada, em até 24 horas da comunicação do flagrante, à autoridade judicial competente, e ouvida sobre as circunstâncias em que se realizou sua prisão ou apreensão”.

Falta de legislação é prejudicial

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A falta de uma legislação sobre as audiências de custódia acaba se demonstrando muito prejudicial. Apesar de a resolução do CNJ, em tese, obrigar os tribunais a lançar mão do mecanismo, há juízes que simplesmente ignoram a determinação, conduzem a audiência de má vontade ou simplesmente deixam, no caso dos plantonistas, na mão do titular da Vara, afirmam os especialistas ouvidos pela reportagem.

A pesquisa “Quem Somos – A Magistratura que Queremos”, divulgada pela Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) no último mês de fevereiro, apontou que 37% dos juízes estaduais de primeiro grau entrevistados para o levantamento “discordam muito” da afirmação “a audiência de custódia é um importante mecanismo de garantia processual do acusado e deve ser aperfeiçoada”. Em relação aos magistrados de primeiro grau da esfera federal, o número foi de 35% de discordância.

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Recentemente, o CNJ intimou dois juízes do Rio Grande do Sul para prestar informações sobre a decisão de decretar prisões preventivas sem antes determinar a realização da audiência de custódia. Um dos casos se referia a homens detidos com drogas, enquanto o outro era de um acusado de homicídio. Em defesa, ambos os magistrados alegaram que o órgão extrapolou suas atribuições ao regulamentar um tratado internacional por meio de resolução. O argumento foi de que a tarefa seria do Poder Legislativo, com a aprovação de lei. Ocorre que em 2015 o Supremo Tribunal Federal (STF) confirmou, em duas decisões, a constitucionalidade desse tipo de audiência.

Ter uma lei federal regulando o tema evitaria esse tipo de argumentação, além de facilitar a fiscalização e uniformizar as regras de aplicação das audiências de custódia – atualmente, cada tribunal (Tribunais de Justiça e Tribunais Regionais Federais) tem seu regulamento a respeito.

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“Deveria ter lei federal regulamentando, para que fosse uma regra única para todos os tribunais. A lei teria que determinar a necessidade de sempre haver um juiz, um membro do Ministério Público e um defensor público, caso o acusado não tenha advogado, de plantão. Não um plantão ‘fajuto’, das 9h às 13h. A pessoa presa deveria ser levada imediatamente à autoridade, independentemente da hora, do dia. Há flagrantes legais, mas também há pessoas presas ilegalmente”, opina João Paulo Martinelli, que afirma que há tribunais, por exemplo, que não exigem a presença de representante do Ministério Público na audiência de custódia, ainda que a resolução do CNJ determine isso.

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Já Alexandre Knopfholz, coordenador do Núcleo de Direito Criminal do Escritório Professor René Dotti e professor de Direito Penal, conta que há magistrados que parece que “esquecem” qual seria o verdadeiro objetivo dessa audiência.

“O Conselho Nacional de Justiça prevê que não se pode, na audiência de custódia, discutir se teve crime ou não. É unicamente para analisar a prisão em flagrante e os requisitos e condições para convertê-la em preventiva. Mas há juízes que discutem, sim, o mérito da causa”, afirma. Assim, a finalidade das audiências acaba desvirtuada.

Ao Projeto de Lei (PL) 8045/2010, que reformula o Código de Processo Penal e tramita na Câmara dos Deputados, foi apensado um projeto que regulamenta as audiências de custódia. No fim de fevereiro, o CNJ encaminhou nota técnica a respeito do texto ao Congresso. A proposta traz que o prazo para a realização da audiência pode ser estendido para até 72 horas, caso haja justificativa fundamentada do juízo. O órgão não concorda com esse ponto, pois acredita que o prazo de 24 horas é o que mais se adequa aos objetivos da audiência de custódia para evitar a manutenção de prisões ilegais e desnecessárias.

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“A aprovação do projeto de lei que autoriza a prorrogação desse prazo por até 72 horas pode prejudicar os objetivos da audiência de custódia. Outrossim, é permitir que a exceção vire a regra em muitas comarcas do país”, traz a nota técnica.

Combate ao encarceramento em massa

De acordo com o Mapa de Implantação das Audiências de Custódia, do Conselho Nacional de Justiça, foram realizadas 258 mil audiências do gênero desde meados de 2015 até junho de 2017 (dados mais atualizados). 45% dessas audiências resultaram em liberdade provisória do acusado – ou seja, menos gente superlotando as prisões. Ao mesmo tempo, o sistema Geopresídios aponta que dos 702 mil presos no Brasil hoje, 243 mil são presos provisórios, que ainda não foram condenados. Muitos desses estão presos por crimes patrimoniais de baixo valor ou porte de pequena quantidade de drogas, e poderiam estar respondendo em liberdade se tivessem sido submetidos a uma audiência de custódia adequada.

“Se fosse realizada uma análise técnica bem-feita da possibilidade ou não de liberdade provisória, a gente teria uma população de presos provisórios infinitamente menor. Tenho certeza que desde 2015, com as audiências de custódia, o cenário melhorou, mas ainda é preciso uma aplicação mais atenta para que se diminua ainda mais essa população de presos provisórios, que são inocentes até que se prove ao contrário”, afirma Alexandre Knopfholz.

Para o professor de Direito Penal, muitas vezes, a impressão que dá é de que a Justiça esquece que toda prisão que ocorre durante um processo é cautelar, meramente instrumental, e acaba utilizando esse tipo de detenção como uma execução antecipada da pena. Ele diz que “é difícil para a sociedade entender que o preso em flagrante tem o direito de responder ao processo em liberdade; as pessoas não entendem por que uma pessoa que furtou sua carteira poderia ficar solta”. Mas ocorre que a prisão preventiva só deve ser decretada se houver uma necessidade clara.

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Para João Paulo Martinelli, essa má-aplicação das audiências de custódia é reflexo da cultura punitiva que se experimenta no Brasil. Para ele, há uma banalização da prisão, com a ideia de que ela deve ser regra, quando, na verdade, trata-se de uma exceção.

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“Pouca gente fica sabendo depois que é frequente uma pessoa ser presa preventivamente e depois ser absolvida. O pior: a jurisprudência nacional entende que se houve processo e a pessoa foi absolvida, não cabe indenização. Caberia apenas se não houvesse processo. E mesmo que seja inocentada, fica o estigma da prisão, o trauma, porque é uma situação de estresse muito grande. E é importante conversar muito sobre isso porque a população em geral pensa muito no culpado, mas esquece que tem gente inocente que pode acabar sendo presa”, opina.

Na visão do advogado, em vez de pensar em medidas para aprisionar mais, o foco deveria ser “pensar em medidas para tornar o sistema judicial mais eficaz, para que a polícia tenha mais estrutura, para que o processo não demore tanto. A duração razoável do processo, prevista constitucionalmente, nem sempre é respeitada. Para o culpado é até boa a demora, mas para quem é inocente é uma tortura”.