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Segunda-feira. Você acorda, vai para o trabalho, briga com o chefe, fica preso em reuniões, resolve algumas pendências. No fim do dia, chega em casa cansado. Para você, um dia normal de trabalho. Mas o país mudou sutilmente enquanto você estava distraído – e, sem notar, sua vida ficou um pouco mais regulada, uma vez que, em cada dia útil, em média, 769 novas normas são publicadas no Brasil. O dado é de um estudo feito pelo Instituto Brasileiro de Planejamento e Tributação (IBPT), divulgado em julho deste ano, mostrando que, desde a promulgação da Constituição de 1988, foram editadas cerca de 5,4 milhões normas legislativas, entre leis, medidas provisórias, instruções normativas, emendas constitucionais, decretos, portarias, instruções normativas, atos declaratórios, entre outras. 

A obsessão brasileira em legislar abrange tanto a esfera civil quanto a criminal. De acordo com o professor Luiz Flávio Gomes, doutor em Direito Penal, desde a edição do Código Penal de 1940, o Brasil já aprovou mais de 150 leis penais, das quais aproximadamente 80% trazendo alterações no sentido de tornar a lei mais dura ou severa. “Nenhum crime, no entanto, em médio ou longo prazo, foi reduzido. Ao contrário, a criminalidade aumenta a cada dia”, analisa o professor Gomes. Na visão do jurista, que já atuou como promotor, juiz e advogado criminalista, instituir ou mudar uma lei é uma saída muito fácil (e barata) por parte dos políticos, mas pouco efetiva no mundo jurídico. “E quanto mais o povo acredita na magia da lei penal mais severa, mais ele é vitimizado pelos políticos e governantes demagogos, aproveitadores e aduladores da vontade popular”, diz. 

A opção do criminoso pelo cometimento do crime se dá não só pela severidade da pena, mas, principalmente, pelo cálculo do risco de ser pego. Para o professor Gomes, a pena não precisa ser necessariamente severa – e sim, justa e infalível. “É muito mais importante para o controle do crime a certeza do castigo do que o volume intenso do castigo previsto na lei, que, como se sabe, raramente é aplicada”, diz.“De outro lado, paralelamente à certeza do castigo, é preciso cuidar da educação assim como das reformas socioeconômicas”, aponta o jurista. 

A avidez legislativa por parte dos políticos reflete um senso comum que cristalizou a ideia de que criar ou alterar leis resolve os problemas reais. Tanto que uma métrica comumente utilizada pela opinião pública para medir o “sucesso” da atividade parlamentar é o número de projetos de lei apresentados no poder legislativo. Assim, o legislador muitas vezes opta por criar uma lei com efeito apenas simbólico, mesmo ciente de sua ineficácia jurídica. Esse fenômeno embasou a proposição do conceito de “legislação simbólica”, cunhado pelo constitucionalista Marcelo Neves, professor da Universidade de Brasília. 

Na descrição de Neves, há três razões para se criar uma legislação simbólica. A primeira é a tentativa de se adiar a solução de conflitos sociais mediante compromissos dilatórios, ou seja, a tentativa de aplacar pressões de determinados grupos, sem necessariamente ter que resolver o problema. A segunda razão é uma mera confirmação de valores sociais, que serve aos legisladores mais como um posicionamentofrente a seus eleitores do que um real propósito de mudança, especialmente junto àqueles que compõem ou defendem nichos sociais específicos. E a terceira é o que o autor chama de “legislação-álibi”, ou seja, uma tentativa de demonstrar a capacidade de ação do Estado, passando a impressão de que se está resolvendo o problema, mas sem a necessidade de se enfrentar toda a complexidade que uma verdadeira solução implicaria. 

Usar a lei como uma ferramenta do que os anglófonos chamam de “advocacy”, ou seja, uma estratégia deliberada para a aceitação e disseminação de alguma ideia no âmbito das políticas públicas, está por trás das tentativas de se especificar crimes para grupos populacionais determinados, como a discussão sobre o “idosicídio” (ainda em debate no Congresso Nacional) e sobre o “feminicídio”, tipificado em 2015 como mais uma modalidade de homicídio qualificado, quando o crime for praticado contra a mulher por razões da condição de sexo feminino. 

“Há muita diferença entre um beijo forçado ou uma passada de mão e um estupro de fato – e a falta dessa tipificação gera insegurança na aplicação da lei”.

Daniella Meggiolaro, especialista em Direito Penal Econômico e diretora do Instituto de Defesa do Direito de Defesa

Para Flávio Pansieri, professor da Pontifícia Universidade Católica do Paraná(PUCPR)e presidente da Academia Brasileira de Direito Constitucional, a proposta desses projetos de lei tem mais a finalidade de afirmar bandeiras do modelo de sociedade que se pretende construir do que efetivamente de sancionar os agressores das diversas modalidades de crime. Mas o professor vê isso como uma estratégia legítima, tanto para estabelecer parâmetros do modelo que se quer de sociedade, quanto para explicitar situações graves de abusos, especialmente a grupos mais vulneráveis. “Eu até tinha uma posição diferente sobre este assunto, mas hoje estou convencido de que nós vivemos em um momento que estas afirmações normativas em defesa de determinadas categorias são fundamentais”, diz o professor Pansieri. “Hoje, a maior parte dos registros de ocorrência só ocorre em razão dessaspolíticas de Estado que pretendem a afirmação dodireito dessas minorias, que eram até há pouco tempo oprimidas, não procuravam apoio, nem faziam registros de violência”, analisa. “Eu não acredito que nós tenhamos aumentando o número de ocorrências, o que acontece é que nós estamos registrando mais: antigamente aviolência ocorria e não havia registro, hoje as pessoas se sentem mais confortáveis em buscar a atenção e a tutela do Estado – e isso mascara o índice”, avalia Pansieri. 

A advogada Daniella Meggiolaro, especialista em Direito Penal Econômico e diretora do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD), considera que os esforços de ajuste legislativo deveriam ser focados não na especificação de crimes baseado na condição da vítima, como no caso do feminicídio, mas pelo preenchimento das lacunas da legislação penal. “A dificuldade está nos casos em que a previsão legal é do tipo ‘tudo ou nada’, ou seja, não especifica condutas intermediárias, como é o caso dos crimes sexuais”, explica. Para Meggiolaro, como não há previsãoespecífica de diferentes condutas relacionadas ao assédio sexual, os juízes se veem em meio a uma escolha difícil entre classificar a conduta entre dois extremos: como uma mera contravenção ("importunar alguém em local público de modo ofensivo ao pudor") ou como um estupro, que é um crime hediondo. “Há muita diferença entre um beijo forçado ou uma passada de mão e um estupro de fato – e a falta dessa tipificação gera insegurança na aplicação da lei”, diz a advogada. 

“Um homicídio, por exemplo, é errado em qualquer circunstância. Quando se começa a tratar os diferentes de forma desigual, em lugar de estar criando uma suposta igualdade, como querem alguns, estamos criando mais desigualdade, pois se grupos mais articulados conseguem condições diferentes de outros grupos, isso gera mais conflito social e político, criando uma espiral negativa da qual é difícil sair”.

Adriano Gianturco, cientista político e professor do IBMEC

Raízes do inchaço legislativo 

Buscando compreender quais tipos de leis deveriam existir em uma sociedade livre, o advogado americano Stephan Kinsella, autor de diversos livros na área do direito de propriedade intelectual, observa uma tendência histórica de mudança na estrutura do pensamento jurídico: antigamente, do direito romano ao direito consuetudinário inglês, as leis eram originalmente formadas por um conjunto de decisões judiciais descentralizadas, que iam se sucedendo e formando o entendimento jurídico daquela sociedade, refletindo seus valores e princípios norteadores. Ao longo do tempo, as leis positivas, aprovadas por um poder legislativo, cada vez mais foram se tornando as fontes primárias do direito. 

Na visão de Kinsella, há mais certeza e previsibilidade em um sistema jurídico descentralizado do que em um sistema centralizado, baseado em leis escritas. Para o autor, quando o Estado tem o poder de alterar as leis diariamente, é impossível ter certeza sobre quais regras serão aplicáveis no futuro. Por outro lado, decisões judiciais descentralizadas geram maior segurança jurídica, por três razões apontadas por Kinsella. A primeira é que juízes podem tomar decisões apenas quando provocados pelas partes interessadas. A segunda é que cada decisão jurídica tem abrangência limitada ao caso em questão – apenas raramente afeta terceiros ou a sociedade como um todo. Por fim, a arbitrariedade de um juiz é sempre limitada pela necessidade dese referir a precedentes similares. 

Para o jurista americano, da prerrogativa do legislativo de poder criar a qualquer tempo leis sobre qualquer assunto decorre uma proliferação incontrolável de um número cada vez maior de normas. Para Kinsella, como o cidadão comum não é capaz de sequer conhecer todas as regras a que está submetido, acaba necessariamente descumprindo alguma norma – o que faz com que fique à mercê da seletividade das autoridades estatais, que podem, de forma arbitrária, escolher quando, como e a quem punir. 

Já na Grécia antiga, algumas correntes filosóficas separavam o conceito de physis, que se remetia às leis da natureza, ao conceito de nomos, que se referia às normas criadas pelo costume. Para esses filósofos, haveria um direito natural imutável, principiológico e universal, sob o qual eram criadas normas temporais, falíveis e que, como poderiam ser injustas, também poderiam ser eventualmente transgredidas. Parte dessa compreensão a ideia de que um maior número de leis não necessariamente torna uma sociedade mais virtuosa. Como diz o escritor português João Pereira Coutinho, a obsessão do Estado em controlar todos os comportamentos dos cidadãos tem como resultado um enfraquecimento de sua responsabilidade moral e cívica.

“A lei deveria ser o último recurso —depois da educação, da ética, da negociação e do compromisso entre os indivíduos. É agora o primeiro recurso”. 

João Pereira Coutinho, escritor português

Uma obra importante sobre esse assunto foi escrita em 1850, pelo francês Frédéric Bastiat. No livro, intitulado A Lei, Bastiat faz uma distinção entre os conceitos de lei e de legislação. Para o autor, a lei se refere a certos direitos naturais que precedem toda a legislação escrita: a vida, a liberdade e a propriedade. Bastiat vê no Estado e na Constituição uma maneira de as pessoas se organizarem coletivamente para defender seus direitos individuais com base nesses três pilares. Para ele, a única função da lei é fazer com que reine a justiça –ou, mais precisamente, impedir que reine a injustiça. Entretanto, quando o Estado extrapola essas funções, começa a incorrer em opressão ou em espoliação legal. Para Bastiat, quando a legislaçãopassa a ser usada como instrumento de espoliação, a atividade legislativa se torna uma disputa entre vários grupos para se apoderar das normas e, no fim das contas, espoliar os demais. 

No Brasil, um exemplo dessa espoliação pode ser observado na recente norma que disciplinou, por meio de medida provisória, o distrato entre construtoras e consumidores que queriam desistir de negócios firmados no campo imobiliário. Sem uma regra definida, os consumidores tinham na disputa entre as construtoras uma possibilidade de defesa de seus interesses, ao dispor de opções para tentar conseguir melhores condições de negócio.

A princípio, edição de uma norma única pode até parecer atrativa, mas na realidade acaba tornando os consumidores reféns de uma espécie de cartel criado artificialmente pelo próprio Estado, uma vez que a regra única anula a competição entre os fornecedores. E pior: como as empresas têm muito mais poder de lobby, como costuma ocorrer nesses casos, a norma aprovada acabou privilegiando fortementeas empresas, cujos interesses nessa matéria são concentrados, em detrimento dos consumidores, que têm interesses difusos. Basta ver que, tão logo a medida provisória foi publicada, em agosto de 2017, as regras estabelecidas – mais favoráveis às empresas do que o até então entendimento da jurisprudência sobre o tema – foram amplamente criticadas por entidades de defesa do direito do consumidor. 

O cientista político Adriano Gianturco, professor do Instituto Brasileiro de Mercado de Capitais(IBMEC), em Belo Horizonte, considera que proliferação da legislação – tanto na esfera civil quanto na esfera criminal – é o caminho certo para sua ineficiência, pois em vez de se tratar os desafios em sua essência, permite a politização dos problemas. “E quando se politiza algo, isso é a receita perfeita para nunca resolver o problema”, diz. “Um homicídio, por exemplo, é errado em qualquer circunstância. Quando se começa a tratar os diferentes de forma desigual, em lugar de estar criando uma suposta igualdade, como querem alguns, estamos criando mais desigualdade, pois se grupos mais articulados conseguem condições diferentes de outros grupos, isso gera mais conflito social e político, criando uma espiral negativa da qual é difícil sair”.

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