No final do filme O Povo Contra Larry Flint, do diretor Milos Forman, o personagem homônimo, depois de uma vitória decisiva na Suprema Corte dos Estados Unidos, resume seu sentimento de satisfação, dirigindo-se ao povo americano: “Se a Primeira Emenda protege um ser desprezível como eu, então ela protegerá todos vocês”. Flint enfrentara uma guerra judicial durante os anos 1970 e 1980 para conseguir publicar suas revistas de pornografia e diatribes nos Estados Unidos: o editor da revista Hustler argumentava que estava protegido pela liberdade de expressão.
Na terça-feira (15), o Superior Tribunal de Justiça (STJ) confirmou uma decisão do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (TJ-DFT), condenando o deputado Jair Messias Bolsonaro (PSC-RJ) a indenizar por danos morais a deputada Maria do Rosário (PT-RS). A primeira instância também já havia condenado o parlamentar. O deputado argumentou – e continua a afirmar – que está protegido pelo artigo 53 da Constituição Federal:
“Art. 53 - Os Deputados e Senadores são invioláveis, civil e penalmente, por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos”
Não há segredo sobre o que ocorreu. Em dezembro de 2014, ocupando a tribuna da Câmara, Bolsonaro dirigiu-se à Maria do Rosário: “Fica aí, Maria do Rosário, fica. Há poucos dias, você me chamou de estuprador, no Salão Verde, e eu falei que não ia estuprar você porque você não merece”. Bolsonaro se referia a um episódio ocorrido em 2003. Um dia depois, Bolsonaro explicou-se em entrevista ao Jornal Zero Hora: “Ela não merece porque é muito ruim, porque ela é muito feia, não faz meu gênero, jamais a estupraria. Eu não sou estuprador, mas, se fosse, não iria estuprar, porque não merece”. O deputado compartilhou a entrevista nas redes sociais, em um vídeo editado, gerando milhares de acessos.
O que Bolsonaro disse, por mais desprezível que seja, não deveria estar em discussão neste caso. Não estamos diante de uma clássica colisão de princípios constitucionais genéricos, como nas disputas entre liberdade de expressão, honra e imagem das pessoas – todos valores protegidos pela Constituição, sem nenhuma hierarquia aparente entre eles. Equilibrar essa proteção pode ser difícil nos casos concretos e a linha entre o proibido e permitido é sempre tênue. Na prática, caberá sempre aos juízes encontrar esse equilíbrio em cada julgamento.
Imunidade parlamentar
Nos casos envolvendo parlamentares, entretanto, há uma regra clara expressa no artigo 53 da Constituição, que escolheu proteger as palavras de deputados e senadores de qualquer perseguição penal ou civil em virtude da sua importância para o exercício republicano da democracia. O intuito da imunidade parlamentar é justamente não deixar que os juízes decidam, no caso concreto, se houve ou não crime ou responsabilidade por danos morais, evitando assim que os parlamentares comecem a medir cada palavra. Isso acabaria privando a democracia do debate plural, e muitas vezes esquentado, necessário para sua fecundidade.
A imunidade opera também para evitar achaques judiciais contra os representantes do povo em virtude de suas opiniões, palavras, e votos – é bom frisar, porque qualquer outro crime que envolva um ato poderia ser julgado pela Justiça, observadas as formalidades constitucionais necessárias. Nenhum deputado ou senador tem carta branca para sair roubando ou matando por aí.
As mesmas declarações de Bolsonaro geraram uma denúncia por queixa-crime de incitação ao estupro e injúria, que foi recebida pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em junho de 2016, graças ao foro privilegiado de Bolsonaro. A ação ainda não foi julgada – se condenado, Bolsonaro poderá ficar de fora das eleições de 2018. A Primeira Turma do tribunal afastou a imunidade parlamentar, argumentando que “a entrevista concedida a veículo de imprensa não atrai a imunidade parlamentar, porquanto as manifestações se revelam estranhas ao exercício do mandato legislativo” e que “a imunidade parlamentar incide quando as palavras tenham sido proferidas do recinto da Câmara dos Deputados: despiciendo, nesse caso, perquirir sobre a pertinência entre o teor das afirmações supostamente contumeliosas e o exercício do mandato parlamentar”.
De fato, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF) já tinha reafirmado, no julgamento do Agravo de Instrumento 473.092, em 2011, uma distinção que não está na letra da lei: só haveria imunidade material plena, garantida pelo artigo 53, para opiniões, palavras e votos proferidas dentro do parlamento. Para o que for dito fora da Casa Legislativa, só se tiver relação ao desempenho da função legislativa. Palavras e opiniões “meramente pessoais”, sem vínculo com o “debate democrático de fatos e ideias”, proferidas fora do parlamento, não estariam protegidas.
Ocorre que, nesse julgamento de 2011, discutia-se o caso de um parlamentar que deu uma entrevista com o mesmo teor de um discurso que havia feito no plenário. Eis como a corte resolveu o problema: “no caso, o discurso se deu no plenário da Assembleia Legislativa, estando, portanto, abarcado pela inviolabilidade. Por outro lado, as entrevistas concedidas à imprensa pelo acusado restringiram-se a resumir e comentar a citada manifestação da tribuna, consistindo, por isso, em mera extensão da imunidade material”.
Decisão do STJ
Para tentar afastar-se desse empecilho, a ministra Nancy Andrighi, relatora do recurso de Bolsonaro ao STJ, afirma em seu voto que “considerando que a ofensa foi veiculada em imprensa e na Internet, a localização do recorrente, no recinto da Câmara dos Deputados, é elemento meramente acidental, que não atrai a aplicação da imunidade”. É no mínimo estranho que a ministra afirme exatamente o oposto do que decidiu o STF em 2011. Essa posição da ministra, se levada às últimas consequências, destruiria a garantia do artigo 53: qualquer discurso, postado pelo próprio parlamentar, que viralizasse na internet, poderia ensejar danos morais ou denúncia criminal.
O voto da ministra Nancy Andrighi escorrega em vários momentos. Certa altura, a ministra afirma, ecoando as decisões anteriores do STF, que “a imunidade não é um privilégio pessoal dos parlamentares, mas é uma garantia para o desempenho de suas funções nesta qualidade”. Mas se o parlamentar – e o parlamento como um todo – não for ele mesmo o juiz do desempenho de suas funções, o que restará de conteúdo para essa garantia da imunidade? Se qualquer juiz puder interpretar as palavras de um parlamentar e encontrar algum crime ali, o que restará do artigo 53? Não haveria qualquer diferença entre as garantias gerais de liberdade de expressão dos cidadãos comuns e as dos parlamentares, o que contraria não só a letra da Constituição, mas seu propósito.
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Para reforçar seu argumento, a ministra Andrighi afirma ainda que é “óbvio” que um deputado não “deveria precisar se manifestar” sobre se uma mulher “mereceria” ser estuprada. Ela também diz que “tampouco está compreendida entre as funções dos representantes democráticos a emissão de juízo de valor sobre atributos femininos, positivos ou negativos”. É mesmo aos juízes que cabe dizer isso?
Os processos judiciais contra Bolsonaro em razão dessas declarações arvoram-se, no fundo, no direito de controlar o que pode ser dito no debate parlamentar – e em toda retórica que é umbilicalmente ligada a ele –, contrariando a razão mesma da existência do artigo 53 da Constituição. Por mais execráveis que tenham sido as palavras do deputado, têm os juízes a prerrogativa de desenhar o manual de etiquetas dos deputados em uma democracia? E se esse tipo de declaração de Bolsonaro opera para angariar votos para o deputado? E se fizer parte de sua estratégia de movimentação e construção de apoio político dentro do parlamento? Podem os juízes, do alto de seus cargos não eleitos, tentar fazer a profilaxia do debate parlamentar?
Desafios
É verdade que a imunidade parlamentar, interpretada corretamente, poderia trazer desafios. Imagine um deputado que todo dia subisse à tribuna da Câmara e dissesse: “Matem todos os negros que encontrarem, estuprem todas as mulheres que vocês conhecem quando estiverem sozinhos com elas, pois isso é imprescindível para o projeto político da supremacia do homem branco”.
Haveria como frear esse deputado que estivesse abusando, além de qualquer dúvida razoável, da imunidade parlamentar? O próprio STF respondeu a essa questão em 2011: “se o membro do Poder Legislativo, não obstante amparado pela imunidade parlamentar material, incidir em abuso dessa prerrogativa constitucional, expor-se-á à jurisdição censória da própria Casa legislativa a que pertence”. Trocando em miúdos, nada impediria a cassação do mandato desse parlamentar por quebra de decoro.
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As palavras de Larry Flint, que abriram este texto, ensinam algo valioso sobre as garantias constitucionais: um caso nunca é um caso isolado e ele vale tanto por si quanto pelas possibilidades que abre. Os precedentes que os tribunais superiores escrevem hoje – com um Poder Judiciário fortalecido pelo repique da Lava Jato, enquanto o Congresso está desmoralizado, contra um deputado execrado pelos meios bem pensantes – valerão amanhã, quando sabe-se lá quais juízes serão ministros e sabe-se quem será o réu da vez.
As últimas polêmicas nas redes sociais mostraram que não é difícil, pelo menos retoricamente, construir o argumento de que a defesa do ideário socialista representa, na verdade, incitação à violência e à ruptura democrática e, portanto, não tem qualquer conexão com o desempenho da função legislativa em uma República democrática; ou de que alguma bravata dos “companheiros” seja apologia ao crime; ou ainda de que chamar os adversários políticos de “fascistas” seja crime de difamação, injúria e até calúnia. Os parlamentares de esquerda, por enquanto, estão protegidos pela imunidade parlamentar. Flexibilizando-a ainda mais, não se sabe até quando.
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