No estado onde resido nos Estados Unidos, a Flórida, conheço uma senhora discreta, mas decidida, chamada Nancy Nemhauser que vou entrevistar para meu programa de rádio “A Neighbor’s Choice” (A Opção de um Vizinho). Ela traz uma boa notícia, mas seu rosto mostra cansaço. A prefeitura de Mount Dora, cidade onde ela vive, a poucos quilômetros de onde estamos, decidiu arquivar a intimação em que ameaçava com uma multa de milhares de dólares.
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Mount Dora é uma cidade minúscula e artística, conhecida por seus murais e festivais de arte. Um ano atrás, Nancy e seu marido, Lubomir, decidiram pintar a o muro da casa deles com uma interpretação da tela “Noite Estrelada”, de Vincent van Gogh. Eles não faziam parte de nenhum condomínio. Checaram as normas da prefeitura e viram que não haveria objeções. Mesmo assim, depois de terem pintado o muro, receberam uma citação da prefeitura dizendo que o desenho era uma pichação – que a parte externa tinha que corresponder à cor da casa. Então, o casal decidiu pintar a casa inteira, para evitar problemas.
Esse gesto – pintar a casa inteira deles no estilo de “Noite Estrelada” – não foi bem recebido pelos magistrados da cidade, que passaram a emitir multas de US$100 para cada dia que o casal Nemhauser descumprisse a ordem de remover a pintura especial.
Intrometidos se arrogam o direito de controlar a vida alheia
Nancy e Lubomir encomendaram a pintura como presente para seu filho, que tem autismo. Descobriram que “Noite Estrelada” era uma fonte especial de tranquilidade e fascínio para o rapaz. Além disso, caso ele viesse a se perder, sem saber como voltar para casa, poderia superar sua dificuldade de comunicação, dizendo a alguém a quem pedisse ajuda que morava na “casa de Van Gogh”.
Posso pedir um conselho? Se eu não gostar das cores da casa do meu vizinho, tenho o direito de ir à casa dele e exigir que ele me pague US$100 por dia até ele resolver o problema? Se ele resistir por tempo suficiente, estarei autorizado a levar homens armados para expulsá-lo da casa dele?
Esse tipo de comportamento soa insano. E é.
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Mas quando formamos grupos, começamos a achar que podemos fazer coisas realmente cruéis ou insanas e sair impunes. O pensamento coletivo tóxico pode ser como crianças em um playground que maltratam um coleguinha, imitando e satirizando seu jeito singular de falar. E isso pode também gerar pensamento coletivo tóxico nos governos, que podem se arrogar o direito de fazer coisas que seus integrantes, individualmente, achariam repulsivas – apenas porque a maioria dos eleitores de um lugar os designou para isso. No caso de Nancy e Lubomir, eles não infringiram nenhuma lei. Apenas foram vítimas do uso arbitrário do poder por intrometidos que se arrogam o direito de controlar a vida alheia. Contudo, quer essa norma existisse ou não no papel, o princípio em questão aqui é um que suspende a própria natureza que nossa sociedade deveria ter.
Quem somos nós para fazer isso?
Existe algum caso em que deveríamos usar a ameaça de roubo – um ato de violência – para modificar o comportamento ou as escolhas não violentas de alguém? Deveríamos ter uma cultura que cria leis para coagir a expressão das pessoas, suas escolhas pessoais, o uso que fazem de seus bens ou seus meios de cuidar de seus filhos? Se não existe uma vítima de carne e osso que possa ser identificada numa citação ou boletim de ocorrência policial sobre um acontecimento, como podemos acusar uma pessoa de um crime ou infração?
Desde que os humanos não estejam mentindo, defraudando ou incitando violência, devem poder desfrutar sua vida livres de interferência externa.
Quem somos nós, que flutuamos sobre esse mármore magnético de terra e água, para afirmar nosso domínio sobre a casa de terceiros, reivindicando o dinheiro deles, fruto de seu tempo finito sobre a Terra?
Contratos particulares são acordos mutuamente decididos que podem ser implementados se as pessoas violam seus termos. Mas contratos públicos – que estão sob a égide do poder público – muitas vezes são decididos arbitrária e individualmente, com base nos caprichos das pessoas próximas ao poder.
Ninguém é dono verdadeiro de um pedaço da Terra, em qualquer sentido cósmico. Mas desde que vivemos em sociedade, precisamos conviver de maneira harmoniosa e sustentável, pautada pelo respeito pelas diferenças e a liberdade. Desde que os humanos não estejam mentindo, defraudando ou incitando violência, devem poder desfrutar sua vida livres de interferência externa.
Vitória sobre os interferentes
Cabe a nós, como exemplo para as gerações futuras, não deixar que as leis sejam usadas de modo tão farsesco.
Graças à coragem deles e à Pacific Legal Foundation, Nancy e Lubomir saíram vitoriosos. Confrontada com o risco de uma disputa sobre direitos constitucionais que seria levada ao âmbito federal e com uma onda de atenção da mídia, a prefeitura de Mount Dora fechou um acordo judicial com eles. Como parte do acordo, o prefeito pediu desculpas publicamente em entrevista coletiva à imprensa.
Nancy me disse que o problema todo teve um custo pesado para eles em matéria de saúde, estresse e muitas noites em claro. Tudo isso porque ela e seu marido pintaram a casa deles para ajudar um filho.
Sempre haverá pessoas abelhudas, mas, como exemplo para as gerações futuras, cabe a nós não deixar que as leis sejam utilizadas de modo tão farsesco que burocratas sem envolvimento pessoal na questão em pauta possam prejudicar outras pessoas.
*** David Gornoski é vizinho da casa – e também empreendedor, orador e redator. Ele lançou recentemente um projeto intitulado “A Neighbor’s Choice” (a opção de um vizinho). “A Neighbor’s Choice” é também o nome de seu programa semanal de rádio.
©2018. FEE. Publicado com permissão. Original em inglês.
Tradução: Clara Allain
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